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Tag: romance
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Bom dia, ontem
Quando se olha por uma janela e se observa o mesmo panorama, com os mesmos recortes de telhados, através dos mesmos vidros, por entre a mesma moldura, tanto no dia de ontem como no dia de hoje, o pensamento alonga-se como se espreguiçando, que as coisas todas parecem não passar nunca, e a nossa janela…
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O capitão na corte dos cadáveres
Respiro, ao entrar, o silêncio hostil desses que me aguardam na sala do general. Caminho com segurança mas sem presunção. Sei que deste último confronto dependem minha vida e minha morte. O que tenho feito nos últimos meses, cada lance como sobre um vasto tabuleiro de xadrez, desde as ações de bravura até meus romances…
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Nas escadas, mas não muito
“Ora, Júlio, você é livre. Livre para tudo. Pois não vai o tempo dissolvê-lo como a todos, não é esse o jogo do futuro? Do que então podem ameaçá-lo?” “Não sei, Pablo. Ainda falta algo. Não compreendo. Ainda não. O que acha, Cândido?” “Vendo você aí, sentado nos degraus da escada, como se tudo estivesse…
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Os jovens peregrinos e o profeta
Permanecemos atentos às nuvens, no fundo esperando que de fato ocorresse algo diferente e devastador: a chuva. Fez uma noite abafada, opressiva, seca e sem vento. A calma do campo era relaxante, mas não afugentava o tédio. Só à noite, uns grupos ruidosos apresentavam-se no palco. Durante o dia, não tínhamos porcaria nenhuma para fazer,…
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Dormindo com as bonecas
“Ela uma vez me disse, quase sorrindo, de olhos cintilantes e talvez mais abertos que o normal: ‘Já pensou que a gente, depois de morrer, nunca mais vai existir?’ Eu fiquei quieto. Ela não podia estar feliz com aquilo. E não estava mesmo. ‘Já pensou?’ ‘Já.’ Puxa, quase vejo tudo outra vez, como se ela…
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Uma das mil noites
Era mais fácil naquele silêncio, o quarto bem isolado aos fundos, um motel que lhes proporcionava justamente o necessário para que desenvolvessem em segredo aquela sequência de amenidades pulsando sem controle. Ainda pareciam estar sonhando. Cama larga, com almofadas extras. Carpete no chão e nas paredes, como se tudo ali fosse confortável e desenhado para…
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Um único tiro
“É, eu estava com ela, já disse”, pegando o nariz de Liana, rindo. “Eu não disse não, menina?” Beijos na orelha e no pescoço dela, a mesma estratégia adolescente de tentar neutralizar a companheira, fazendo-a arrepiar-se num frêmito de desejo, uma palavra, uma expressão que ele adorava imaginar enquanto isso acontecia de fato. Fssss… –…
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Papéis com imagens, ossos para não esquecer
Quinze anos. Violentada pelo cunhado. Perdera o filho de um mês. Sombras de família. Segredos, escândalos. Foto-grafada no pomar, sorri em meio às laranjas. Saudável, cati-vante, pernas e pés à mostra convidando a um ato brutal de volúpia. O sorriso, o pomar de laranjeiras. O que busca a natureza afinal? Momentos de violento desejo gerando…
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Arca com retratos do pai. Parte 2
Tudo em mim fica retido, antes de tudo. E fere ou fascina. O odor característico do papel plastificado, a tinta de impressão que até hoje reencontro em certos periódicos – eu começava a aprender dos textos, ao decifrá-los. O fascículo ilustrado com animais do Cretáceo, que ele me compra numa banca de esquina – também…
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De falsas princesas
Ao vê-la, pelo que percebeu como um breve instante, estendendo-se para o alto, apoiando um pé sobre a cama para alcançar o cabide vertical (Liana era baixa, mas não muito), as pernas tão bonitas bem ao lado do rosto dele, a tensão de uns músculos suaves logo acima do tornozelo, as coxas praticamente uniformes em…
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Treze pode acontecer
Júlio estranhou que seus cabelos, repartidos ao meio, descessem só até o pescoço e a nuca, não chegando a tocar os ombros, e assim mesmo caíssem frontalmente qual fossem mais longos do que aparentavam, como se não pertencessem a um mesmo corte, e pudessem prender-se atrás das orelhas. Que coisa observar isso tudo. Foi sem…
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Suínos, símios, restaurante
Três ou quatro restaurantes médios, cardápio variado e preços razoáveis, serviam de solução fácil às exigências de sua fome noturna, isso quando se animava a sair a pé pelo bairro, também por desejar romper com a tirania dos sanduíches que muitas vezes despedaçava sobre a cama ou à mesinha-estante-criado-mudo. Era preciso ao menos experimentar. Lembrar…
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Invisíveis no intervalo
Ele a segura pelos ombros. Com carinho. “Ana, sabe, posso te dizer?” Coragem. “Tenho muita saudade daquela noite.” De frente um ao outro, mas já reativando uns passos lentos que os farão voltar à trajetória anterior – corredor da faculdade, percurso repetido do intervalo, quando de repente (com carinho, claro) ele a deteve. “Que noite?”…
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Café com neblina imprevista
O caminho para o trabalho, os dias úteis, calendário. Supõe-se a agulha de um disco gigantesco, percorrendo as mesmas faixas conhecidas, o mundo à frente. Mesma rua, algumas quadras, quem diria. Quem diria? Estela: “Ora, somos vizinhos de serviço”, ela dissera. Sim, de coincidências também se nutre a história. E por que não? Dona Norma…
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Não diga! Eu também…
“Desculpe, qual é mesmo o seu nome?” “Estela. E o seu?” Sim, o que ele merecia. Consagrando e consolidando seu caos de motivos siderais. O meu? Júlio. Muito bem. Fácil. “Estela, me diga”, segurando aquela xícara enorme com as duas mãos. “Você costuma trazer estranhos para a sua casa?” “Não. Mas vi que você era…
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Um puta abraço, os dois
Ele tirou a capa de sua antiga máquina de escrever, anos sem uso, nem serviria mais para nada, claro. Claro que não. Porque agora… Agora as teclas enchiam seus ouvidos, a vertigem fazia desfilar páginas arrancadas do cilindro com felicidade, os textos prontos, os estampidos sequenciais de uma metralhadora louca sobrepostos no tempo, registrando com…
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Enquanto seu ônibus não vem
Regina tinha os lábios finos mas tentadores. Com a mesma nitidez daquelas noites, o rosto dela aproximava-se para mais um delicioso beijo, sempre um delicioso beijo – o nariz pequeno, as maçãs do rosto, os cabelos curtos e loiros soltando pontas irregulares ao redor das orelhas, o contorno de seu rostinho quadrado desaparecendo conforme os…
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Os mocinhos da matriz
Foram a uma cidade próxima, a trabalho, acompanhando um gerente que tinha muita esperança no futuro deles. (Ah, se ele soubesse…) As meninas da filial, que eles estavam a poucos quilômetros de conhecer, representavam, para alguns, uma agradável esperança. Para Danilo, certamente. Acreditava no destino, sabia que mais cedo ou mais tarde encontraria a mulher…
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Um dia, você abriu o jornal…
“Mas você a subestimava mesmo, não? Olha só, como ela era sensível! Puxa, acho que só as mulheres se entendem afinal. Essa das conchinhas… Estou gostando dela, cada vez mais. E se ela estivesse viva, eu estaria preocupada agora, me contorcendo de ciúmes.” Danilo sorriu com o cantinho da boca, vaidoso. Mas baixou os olhos…
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O segredo das conchas
“Não importa se você vai rir de mim, não importa mesmo.” “Ora, Ana, imagine…” Ela remexia a bolsa. Buscava uma coisa. Algo se prendeu, depois se soltou, em meio a algum ruído de chaves ou qualquer outra quinquilharia de metal.
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Todos nós, de vez em quando…
Cris e seus periquitos australianos. Eram dos pais dela, melhor dizendo. Ela morava com eles – com os pais e com os periquitos. Havia um grande viveiro na área externa do apartamento, que tinha o privilégio de ser no térreo. Cris convidara Danilo e mais uma colega a estudar inglês em sua casa naquela tarde,…
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Mas como isso começou?
“Mas como isso começou? Você, com a Ana Lúcia? Como começou de verdade? Quando vocês ficaram juntos e…” Liana esperava, de frente, olhava a boca e os olhos dele, alternadamente.
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A foto deles dos Beatles
Os Beatles também concordaram em expulsar um ou outro baterista, tudo em nome da estética, da arte, da posteridade, do sucesso. E porque, mesmo parecendo rebeldes, obedeciam ao empresário, seu patrão. Queremos ser como o americano (Presley), declaravam, pretensiosos. Queremos ser os palhaços do mundo. Querem ser todas as coisas.
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Arranjo para impedir Ana Lúcia
Solte essa arma, não faça isso. Não se vá, Ana, não vá embora, não vá. Não há destinos para todos nós. Não há destinos suficientes para todos nós.
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Eu, datilógrafo
Desde que pressionara, canhestramente, as primeiras teclas daquela antiga máquina de escrever… Bem, podemos tentar outra coisa. Essas nostalgias não poderão salvá-lo agora.
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Lemuel
A máquina de escrever? Funcionando sim, barulhenta e produtiva. Enquanto os colegas repartiam cerveja e conceitos efervescentes, ele os observava, observava por algum momento a si mesmo em meio àquilo tudo, ruminava: não importa o que eles dizem, todos os dias e noites vão passar, tudo isso vai deixar de ser, todas essas ideias e…
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O azul-âmbar do dia seguinte
Ciprestes escuros ou azuis, difícil dizer. Agitam-se com a ventania. Penso captar seus movimentos, mas estranhamente é também uma densa imobilidade o que equilibra sua fúria de labaredas, sua ondulação em busca de uma inércia maior.
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Caminhavam mais lentamente…
Caminhavam mais lentamente, mãos nos bolsos, cada um, a seu modo, lutando contra a pressa e o hábito, uma resistência consciente e difícil. “De onde vem sua coragem? Você já pensou nisso?”
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Velhas novidades
De toda parte os caminhos pareciam convergir para conduzi-lo ao que fosse seu centro secreto, o que seria inverter as coisas: seu centro é que buscava realizar-se e se utilizava do que mais lhe acorresse ao redor. Como dizer algo assim aos seus amigos, para quem todos os bares eram apenas território de caça? Fala-se…