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Tag: romance
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A sereia suicida
Andersen já começa a punir sua personagem com um recado claro e sinistro de que não há margem para o fracasso. De que o preço é alto quando se trata de desobediência. “Por que se diz afogar, como em: ‘Houdini morreu afogado’? Afogado não é quando se morre queimado? Com fogo? Afogar não é com…
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A tudo, faltava um algo
Quem visse a fachada desse prédio animava-se com uma puta boa impressão. Mas a maioria das empresas é assim, com jardins que nos convencem. Eu trabalhava como escravo num escritório dito de advocacia, mas por onde circulava toda sorte de documentos e barbaridades. Nos primeiros dias, tentava familiarizar-me com a ideia algo incômoda, meio nebulosa,…
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Marcas de gentis predadores. Abertura (O jogo que ele não quer mais)
Contar o pior. Será que ela quer saber o pior? Quase sempre, saber o pior é saber a verdade. Quem quer saber o pior? “Por que você ainda quer saber sobre ela?” “Por que não? Fico curiosa.” “Sobre a morte dela, quero dizer.” “Por que não? Quero saber. Só isso.” O entendimento entre a claridade…
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Não são fotos como as outras. 3
Por toda parte, as coisas continuam acontecendo pela única vez. Pouco antes do fim da tarde, os inválidos vão desaparecendo, resguardando-se da noite. As calçadas ficam vazias, e ninguém mais precisa ter piedade. Ainda um guardião (com certa persistência ao longo de outros dias) Assim como os mendigos e os inválidos, o homem do realejo…
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Eu, um mentiroso crônico
Perdi oportunidades. Rompi contratos. Sempre fui inoportuno e desastrado, porém, estranhamente, essas perdas nunca me incomodaram muito. Sou o que ninguém quer ser Tornei-me um mentiroso crônico e devo isso a Verena. Foi ela quem fez esclarecer parte de minha aversão pelos meios literários, acadêmicos e outros de rotina não menos aborrecida. “Você é ou…
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Fria manhã dos que se procuram
Era uma fase confusa, como a de todo mundo nessas idades. Pensei seriamente em estudar, mas, por essa época… eu já era triste. “Gosto muito de andar assim com você. Conversando…” “Também.” Braços dados, por causa do frio. Os cabelos dela oscilam, sobem e descem pouca coisa, a cada passo. Retraindo o queixo, ele sopra…
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Não são fotos como as outras. 2
Afinal, todos nós nos consideramos especiais e eternos, só o tempo sabe que não o somos. Viver é difícil, velha novidade. E aqui estamos todos. Arautos do fim dos tempos O mulato de bigodinho grisalho, terno escuro, bem passado, agourento, discursa agitando a bíblia que reabre periodicamente, vociferando, entre aleluias, ameaças e pragas coletivas. Parece…
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Um último projeto em ruínas
Nessa mesma noite, fiquei pensando no fato de ele estar morto e de ter sido alguém, assim ter vivido, viajado, dormido e copulado, como eu. Acendi um cigarro. Arnowitz começava a me impressionar. Logo compreendi que não estava lidando com um homem comum – isto é, não apenas um estudioso de renome, um erudito de…
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Borboletas com relógio ao fundo
O personagem deve manter o leitor dividido entre o riso e a piedade. Bons personagens são os que manipulam e confundem. “Bercedes!”, gritou a velha. “Bercedes!” A moça chegou em seguida, trazendo-lhe o chá. Desde que fora trabalhar naquela casa, Mercedes passara a renunciar a certas Técnicas esgotadas. Truquezinhos baratos. Que tédio. A morte não…
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Não são fotos como as outras. 1
Sol e moedas brilham. Dia de intensa claridade. Nunca o bastante para atenuar-lhe a escuridão. Tome. Não são fotos como aparentam à primeira vista. Trago-as também em minha memória de palavras. Sei o que lhe ocorre, isso de um quadro e mil palavras, vá lá. Não, nunca foi assim. Se eu nada dissesse, você se…
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Era ela, a minha maior inimiga
O jogo maior deriva do plano inapreensível que os homens menosprezam e evitam, mas que os vencerá a todos: o tempo. E o tempo, queira ou não, tudo atravessa. Ao que interessa. Minha incontida necessidade de expressão decorre de minha tremenda dificuldade em compreender as coisas. Não só isso. Algumas vezes não se tem ainda…
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Triste do mesmo jeito
Minha cabeça só ficou nisso o dia todo, o tempo todo. Tudo em que eu pudesse pensar acabava subvertido pela possibilidade de encontrar essa figura apaixonante e vulgar que era… ela. “Que problema vocês têm com isso! Diz que ama, é tão bom. Te amo! Te amo muito! Tão bom dizer isso…” “Sei. Ela não…
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Dona Norma e o último Coelho
São apenas histórias. Pouco importa sejam verdadeiras, o que vale é que sejam contadas e que alguém se identifique com elas. Nem isso, nem é preciso tanto. Como todos os que contam, também corro o risco de me perder. Houve da parte de Júlio um esforço diplomático para convencer dona Norma a aceitá-los como inquilinos,…
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Chora, menino
Que estranho caminho para um pensamento. Que bobagem. Ainda bem que eu não falava isso em voz alta. Um grande ponto de interrogação montado com pedras, cortadas geometricamente, como pequenos tijolos. Logo abaixo da lápide. Era a parte superior, exposta, de uma sepultura que ele lembrava ter visto em algum cemitério da região, alguma cidade…
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Persistência dos labirintos
Eu finalmente parecia ter encontrado um quarto. O que em princípio me impressionou foram os estranhos ruídos que… Escrevo movido por desesperados ideais de busca. Obstinação, é certo. Há gestos imensos na tentativa de compor cada trecho. Acima disso, a morte e a indiferença humana. Alguém se interessa? Teseu executa o Minotauro, com isso dando…
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Espirais desnecessárias
Predadores e presas, um jogo de forças, mesmo que não o percebam. Mesmo que não o admitam – e mesmo que usem tantas vezes a palavra amor. “Depois eles encontraram a Ana. Digo, encontraram o corpo dela. Eu contei tudo: disse onde tinha jogado, por que tinha jogado…” “Por quê? O que você disse a eles?”,…
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Quita, a estrela distorcida. Bruno, mal resgatado.
Com o tempo, nós nos perdemos de vista. Até nunca mais nos vermos. Eu sim, revi seu rosto em sonhos que me fizeram sofrer. Estela, desde o início, me lembrava Quita – a expressão de seus olhos atentos, ela que talvez fosse minha primeira namorada se de minha parte se houvesse consumado o beijo que…
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Júnia
O caso era o mais antigo do mundo: a atração entre um homem e uma mulher. O caso eram eles. Encontros são carências. Júnia é o estopim de uma bomba. Mas Danilo não sabe disso. E segue, como todos. Não pode prever o futuro. Tem de se arriscar. Se quiser encontrar o amor. Se…
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Retomadas e recaídas: de volta ao baile de máscaras
Pouco me importava ter nascido no passado ou no futuro, pois estaria sempre no presente. O que, principalmente, realmente importava era vencer a neblina. A neblina. Quando por fim recobrei a calma (eu estava chorando) e ergui os olhos para o mundo, senti que havia alguém, e voltei-me para ver. O menino esquivo e silencioso…
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Páginas claras, penumbra
Seus sentidos já pressentem o que há de vertigem sob esta superfície, e assim prossigo. Sei que contar não ajuda muito. Contar é já fazer esquecer. Ainda assim, preciso que me ouça. Você também provou de um veneno infalível, tornando-se desde então essa figura silenciosa, sobrevivente como eu. Duas vezes, diz. Em tudo está um…
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Você ainda tem essa arma?
Liana pensa por um instante que Ana Lúcia não seria dele. Nunca. Mesmo pensando nela como uma menina fácil. “Não. Eu a joguei fora naquela noite. Não podia ficar com ela, imagine.” “Por que não?” “Por que não? Ora, porque… Porque não. Se a polícia conseguisse um mandato e revistasse a minha casa e eu…”…
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Sem rumo, entre rascunhos lamentáveis
E minha enxaqueca não ajuda muito. Cefaleia, no caso, fica mais bonito. Mas dói como qualquer palavra. Aqui começa a segunda parte do romance A seta de Verena, Cadernos (I), que revela as tentativas do personagem de escrever algo que o satisfaça e o justifique como autor, oscilando entre as tentações da técnica e os…
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A Walther PPK
Eu via o metal refletindo uns pontos de luz que vinham de algum lugar a que nem prestei atenção. Os olhos dela, no motel, brilhavam como o metal. Hidratado ou não, Danilo sentiu sua boca seca, com gosto de pedra ou areia. Ficou quieto. Depois, quase sorriu. Depois, pareceu irritado. “Grávida? Não, não. Não acho…
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Os últimos dias de agosto. Abertura
Ao fim do jogo de contas, a coleção de detalhes associados, o precário compêndio de paralelos que talvez não fosse mesmo mais do que isso, assim prevendo outra noite de unhas, outra manhã de fuga, e ignorando sempre…
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Pedras, cometas, fichas alucinantes
A harmonia não pode durar muito, ela depende de sua própria desorganização para se reorganizar, como sempre. A simetria é oposta à vida, sim, foi o que você mesmo disse. O bar, você quer. Pista de dança no centro do retângulo. Longo balcão de impermeável, densamente estampado com estrelas, espirais, meias-luas e outros míseros sinaizinhos…
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Sentimentos são defeitos nossos
“Na hora passou pela minha cabeça aquilo de ela encarar os sentimentos como defeitos nossos. Que era esse o problema. Era essa a nossa imperfeição, a nossa desgraça: ter sentimentos.”
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Apodrecendo ao seu lado
A vida se cruzava por toda parte, entre fluxos de tráfego, pedestres nas calçadas, nas faixas de segurança… Todos sempre se deslocando em busca de alguma coisa, vivos, tentando se realizar de alguma forma. Enquanto isso, em silêncio, ela apodrecia ao meu lado.
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O nome dela era Vanda
Após tê-la conhecido de perto, sentiu que se fazia, a corça, muito mais inalcançável, mais do que antes, quando não passava de uma sombra indefinida, e como se desde o primeiro momento ele desejasse, sem saber, alcançá-la. Ousadias avulsas. Resultado de superfície. Cansativos rituais de acasalamento. Mas no momento incerto, depois tornado certo, o desejo…
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Assim são as festas
A desconhecida voltou à sala, acenou a uns amigos, o que fazia ver que não estava na festa até então. Especialmente abraçou outra garota. Perguntou por ela e por alguém mais, antes de iniciar o ritual de trocar beijos contados à altura da orelha ou estalados em falso, no ar, com uns rapazes que aparentemente…
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Vanda vence a água e as nuvens
Mal podia vê-la, a roupa que fosse, eu chegando ao apartamento, já a desejava com toda a saliva a sufocar-me a garganta, essa sensação inconfundível que precede e já desencadeia os estados de grande excitação, e isso me cegava, impedia-me considerá-la ainda como pessoa, mal tinha tempo de pensar em qualquer outra coisa caso ela…
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Sem adeus
Os grandes, pai, talvez fossem apenas médios. Não, não me diga de novo que não sou ninguém. Estou aqui ao seu lado, não quero criar discussões desnecessárias. Estou caminhando, carregando seu peso. Parte dele, nessa alça da frente. Não pense que não sou grande à minha maneira. Tento ser humilde, tenho essa coragem. Busco respostas…
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Na cama, depois de tudo
Mônica vinha se transformando a cada fim de semana. De certa forma, ela também me preocupava. O pior de tudo era não termos dinheiro, acho. Não tenho certeza. O pior de tudo era o país. O pior era eu. Acho. Fiquei olhando seu rosto inclinado no travesseiro. Gosto de ver sua boca relaxada, entreaberta, mesmo…
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A bela e as esferas
Foi então que, abrindo os olhos, voltando dessa experiência mística, esse meu rápido e estúpido transe, me aconteceu perceber o interesse de uma jovem púbere, de agradável semblante, que a mim observava discretamente de sua mesa, relativamente próxima. Estava com os pais – veja-se se isto são lugares para se levar uma garota dessas numa…
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Perdemos o fim da missa
Eu olhava ao fundo o retrato de Machado de Assis, menino de morro, ascensão social e exemplo que querem os outros como encarnação de seus métodos de controle, este à minha frente, eu considerava, se não finge tanto quanto eu, espera como todos que eu escreva por ele, que eu veja o que ele ainda…
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“Pois eu faço questão!”
Por essa época, nada me parecia suficiente. Mas eu pressentia estar me aproximando de alguma nova efervescência de meus valores. Dois capítulos sobre isso é mais do que o gosto do leitor médio pode suportar, eu sei. Foi mesmo uma recaída. Arcádio Raposo vai querer cortar tudo. Ora, não. Talvez não. “Somos uma editora.” É…
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Retrato de meu hábitat quando jovem
Voltei para casa, mas sem grandes preocupações. No caminho, havia decidido levar adiante meu projeto, mesmo que não pudesse editá-lo. Deve ser algum distúrbio, eu sei. Cheguei menos cansado que o normal, suspirando assim mesmo, olhei com má vontade a pasta com meus textos sobre a escrivaninha (eu pretendia levá-los à editora, mas no último…
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O Arcádio do Conselho Editorial
Antes de ir até lá, eu havia telefonado para confirmar a entrevista. Ela me deixara esperando por um tempo razoavelmente longo, pois fora o bastante para despertar-me o tédio, enquanto a gravação no aparelho entoava: Há um mundo bem melhor, todo feito pra você…, aquela incrível canção com a qual tentam nos motivar desde as…
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Memórias de gentis predadores
E o que é essencial à vida (a atração pelo sexo, o prazer da conquista e da sedução) se repete intensamente, com uma energia provinda de nossos genes, que não respeitam nenhuma estética criada por nós. Só o que podemos, com toda sinceridade, é admitir isso.
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Passeio (forçado) com Mônica
Mônica esperava em meu quarto. Sentada na cama, curvada para a frente, a mão direita apoiando o queixo, os últimos dedos mordiscados entre os dentes, a outra esquecida no colo. Pernas cruzadas, um pé como solto no ar desenhando voltas sobre si mesmo, depois refazendo o giro a girar no sentido contrário. “Então? Vamos?” Entregou-me…
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Noções de origem
Por uma questão de dignidade, eu queria continuar contando mentiras bem elaboradas, e nunca passar à frente nenhuma mentira que não fosse de minha própria autoria. Sim, isso me animou em muitas fases difíceis da vida. E talvez me motive sempre. Ah, como é bom escrever. Como é bom mentir.
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Sonho 811. O livro que falta
A coleção consistia de quatro livros ilustrados, uma enciclopédia adaptada para adolescentes, com artigos sobre inúmeros assuntos. Com o tempo, algumas imagens desapareceram de suas páginas, e eu nunca mais as encontrei – um menino deitado sob uma groselheira, o rosto malvado de um corsário e uma jovem grega portando uma ânfora. Talvez eu as…
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Dilemas inofensivos, obsessões horrendas
Como me irritam pessoas que leem tudo tão rápido. De uma enfiada, elas dizem. Bem-humoradas, contentes com essa capacidade boba. Como já disse, sou lento para ler (ou lerdo, o que melhor servir), devo reprimir uma faísca de inveja dos rápidos. Não sei se é só isso. Você fica cinco anos escrevendo um livro, relendo…
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Beckett lhe dá as boas-vindas
Cheguei mesmo a impedir que ela se apoderasse de uns exemplares meio carcomidos, que poderiam destroçar-se de vez – porque eu guardava umas edições muito velhas, de um papel que teria sido branco noutro século, tão antigas que, ao lerem-se alguns de seus parágrafos em voz alta e com alguma boa vontade, seriam capazes de…
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Consumação mínima
Ela fez questão de mencionar a última vez que estivemos num restaurante. Um sujeito simpático, meio garçom, meio porteiro, não sei, sorria às pessoas que entravam e saíam, desejando-lhes boa noite, bom apetite, bom isto, bom aquilo. Abriu-nos a porta de vidro e um sorriso que não o impedia de nos radiografar dissimuladamente, tanto quanto…
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Meu amigo poeta-patriota
Glauco Pinheiro de Pádua, engenheiro civil, emprego público, Prefeitura Municipal. Poeta por prazer – ou necessidade? Às vezes aparece para trocar ideias, sua tal expressão, na verdade não é uma troca de ideias, ele nunca me dá ideias. De minha parte, evito anunciar-lhe as minhas – não que mereçam qualquer segredo, mas porque normalmente ele…
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O Arsênio da Editora Circular
Um arrepio. Conheço essa batida. Lenta, repetida três vezes, como se zombasse de quem está dentro. Outra vez. Digo, mais outras três vezes. Sim, só pode ser. “Bom dia”, diz ele quase cantando. Mas assim: grave, insinuante.
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Duas linhas, literalmente
O jornal dedicou-me duas linhas, literalmente, numa de suas colunas mais estreitas, o tópico cultural. E não que merecesse mais do que isso. Aquele era, sem dúvida, um de meus contos mais execráveis: convencional, descritivo, tinha até uma mensagem. Escrevi muitos contos ruins, e quase todos foram premiados. Por sorte, nem todos foram publicados, e…
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O fim (e seu avesso)
Muitas vezes pensamos que tudo está sob controle. Que estamos a salvo e imunes. Só então é que as coisas de fato acontecem.
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A seta de Verena. Abertura 2 (Meigos pastores, secretos assassinos)
Todo artista compreende um dia, ainda que se deixe classificar como criativo ou mesmo que continue fingindo-se inocente, que nunca foi senão o resultado da convergência de inúmeros outros que ele próprio elegeu. Vivemos entre os invisíveis limites de um mistério que se deixa entrever por espasmos, como cristais guardados só para alguns momentos, nas…
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A seta de Verena. Abertura 1 (Guardo-o como quero)
Você se levantou e não pôde evitar o dia. Você se desvia do espelho que também encontrará em pouco, mas não deve admitir que seu rosto esteja inteiramente arruinado. Afinal, bem perto de onde vive, e por grandes extensões de terra, seus semelhantes compartilham misérias tão mais graves que as suas, embora de outro gênero.…