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Tag: ficção
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Os últimos dias de agosto. Abertura
Ao fim do jogo de contas, a coleção de detalhes associados, o precário compêndio de paralelos que talvez não fosse mesmo mais do que isso, assim prevendo outra noite de unhas, outra manhã de fuga, e ignorando sempre…
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Pedras, cometas, fichas alucinantes
A harmonia não pode durar muito, ela depende de sua própria desorganização para se reorganizar, como sempre. A simetria é oposta à vida, sim, foi o que você mesmo disse. O bar, você quer. Pista de dança no centro do retângulo. Longo balcão de impermeável, densamente estampado com estrelas, espirais, meias-luas e outros míseros sinaizinhos…
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Sentimentos são defeitos nossos
“Na hora passou pela minha cabeça aquilo de ela encarar os sentimentos como defeitos nossos. Que era esse o problema. Era essa a nossa imperfeição, a nossa desgraça: ter sentimentos.”
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Apodrecendo ao seu lado
A vida se cruzava por toda parte, entre fluxos de tráfego, pedestres nas calçadas, nas faixas de segurança… Todos sempre se deslocando em busca de alguma coisa, vivos, tentando se realizar de alguma forma. Enquanto isso, em silêncio, ela apodrecia ao meu lado.
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Queremos o fim do Quixote
Sempre me impressionou muito que as pessoas andassem com calma – mesmo entre conhecidos e em suas próprias cidades. Também muitas vezes acreditei que a maneira de andar, assim como alguns gestos viciados ou cacoetes, fosse a sugestão de que a natureza orgânica começasse por eles a apresentação dos sinais de alguma desarmonia mais profunda.…
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O nome dela era Vanda
Após tê-la conhecido de perto, sentiu que se fazia, a corça, muito mais inalcançável, mais do que antes, quando não passava de uma sombra indefinida, e como se desde o primeiro momento ele desejasse, sem saber, alcançá-la. Ousadias avulsas. Resultado de superfície. Cansativos rituais de acasalamento. Mas no momento incerto, depois tornado certo, o desejo…
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Assim são as festas
A desconhecida voltou à sala, acenou a uns amigos, o que fazia ver que não estava na festa até então. Especialmente abraçou outra garota. Perguntou por ela e por alguém mais, antes de iniciar o ritual de trocar beijos contados à altura da orelha ou estalados em falso, no ar, com uns rapazes que aparentemente…
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Passe para pequenas viagens
Eu me detinha finalmente, após a tarde de minha estranha primavera. Eu me detinha após milhares de anos de civilização e genes repetidos para que sempre umas pessoas e outras habitassem as cidades e coisas parecidas com cidades. Eu me detinha na esquina de todas as cidades. Outro como eu em Buenos Aires, em Frankfurt,…
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Vanda vence a água e as nuvens
Mal podia vê-la, a roupa que fosse, eu chegando ao apartamento, já a desejava com toda a saliva a sufocar-me a garganta, essa sensação inconfundível que precede e já desencadeia os estados de grande excitação, e isso me cegava, impedia-me considerá-la ainda como pessoa, mal tinha tempo de pensar em qualquer outra coisa caso ela…
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Registro de ciclos e movimentos
A Terra gira e recicla seus ossos. Há escombros impalpáveis, fendas na memória. Tantas vezes restaurada e ainda assim, na junção das hastes, o oliva-ferrugem, óxido de azuis na roleta que hoje conta os mortos. Junto ao orquidário, junto ao chafariz e ao banco de pedra, aqui onde me sentia seguro sem considerar o verdadeiro…
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Chancelaria e viagem
…seja este dia ou esta página, agora que tão intensamente atravesso as tardes de perdidas luminosidades, tão parecidas com a minha infância, de mesmo calor e mesmo incômodo, até finalmente intuir que um dos objetivos da vida é, magicamente, estar aqui. Medicamento sob prescrição médica, que diferença faz? Esbarro em tantos semelhantes sadios, mal os…
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Nádia alcançada, meu último rosto
Senti as noites de minha juventude, o calor e o sereno de madrugadas sem fim, constatei prostíbulos que me escaparam às palavras enquanto os vivi e que não procurei resgatar na poesia das cartas. Identifiquei cada festa, cada momento de orgasmo e vertigem, cada solidão.
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A casa e a célula
Claro que eu não poderia, nem deveria, aproximar-me de tal pensamento. Mesmo porque não o havia procurado, ele é que chegava até mim por meio das conclusões dela, que por sua vez pareciam ter-se originado de um sonho – para outros, talvez, um pesadelo. Na verdade, preocupam-me tentações desse gênero porque sei que sou capaz…
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Cães de caça entre a Lira e Leão Menor
Eu olhava o cadáver: que fazer com esses restos? “Que fazer de vocês?”, eu o olhava. Trouxera-o de fora ao jardim dos fundos, já não podia voltar atrás. Terra ainda úmida, não seria difícil abrir uma cova precária, nem aquilo merecia mais. Logo voltariam a relva, as ervas rasteiras e umas flores inúteis, sempre casuais…
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Sem adeus
Os grandes, pai, talvez fossem apenas médios. Não, não me diga de novo que não sou ninguém. Estou aqui ao seu lado, não quero criar discussões desnecessárias. Estou caminhando, carregando seu peso. Parte dele, nessa alça da frente. Não pense que não sou grande à minha maneira. Tento ser humilde, tenho essa coragem. Busco respostas…
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Cores, sombras: aquarela de passagem
Minha lancheira encardida, ela com seus cadernos de classe empoeirados pelas quadras de terra que afastam a pequena escola, um galpão tosco e sem recursos que fica para mim tão longe, longe… É apenas o caminho de volta. Mas, aos seis anos, tudo é fascinante em qualquer caminho.
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Cenas infantis
“É preciso ter coragem, lembra?” “Lembro, claro que sim. Mas parece que a coragem é uma qualidade dos sórdidos.” “Não importa. É preciso ter coragem de qualquer maneira. Noite alta, as casas fechadas. Sou apenas um corpo que anda. Por que a noite me aflige assim?” “Como posso saber? O que será para você talvez…
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Engenho de limites
O luar quebrava o último ângulo dos ladrilhos. Na cama, eu aguardava o sinal sem fim das ausências, a bruma quase irreal que sucede as agitações em marcha, os pesadelos e os grandes conflitos, protegendo-me sob o cobertor como um menino se guarda sem seus anjos antes que volte vibrando, amplo e benigno, o trem…
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Paixões e fugas (A paixão segundo três estudos)
Chuva fina, outra manhã. Ouço os cascos e as rodas das charretes nas ruas molhadas, vou sob os toldos que mal me protegem. Esta, a cobiçada cidade onde convergem os artistas. Pintam repetidamente suas vilas, becos e calçadas. Mas eu, que faço aqui?
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Anabel em seu dia de luz
Quando perdi minha filha, pensei que jamais conseguiria escrever sobre ela…
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Das afinidades familiares
Outra noite, com amigos. Fomos os últimos. Chovia, e começávamos a nos desejar – eu, que nunca sorria. 1 Meu pai, depois de sepultado, passou a parecer-se ainda mais comigo. No sofá da sala, era o meu duplo, um espelho de terra: o pequeno rádio repetindo-lhe os informes municipais, outra vez o breve repouso antes…
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As sombras
Parei para ler o que havia nas mãos de alguns e espantei-me, porque ali se resumiam os pensamentos que ocupavam suas mentes e eram as chaves de suas almas. Li sonhos absurdos, planos criminosos, memórias, esperanças. Em muitos encontrei paixões sem sentido, vergonhas, frustrações, cartas suicidas, segredos de família…
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Autorretrato 23 (conto)
A desconhecida que me devassava atraiu-me também. Entre suas companheiras, outras não menos cativantes, não se destacava pela beleza. Eu via algo em sua figura e em seus gestos, uma vaga ansiedade.
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Carta com sarcófagos
Quarto-e-sala é como chamam esta cela. A palavra estrangeira soa um pouco mais alegre, mas claro que não a liberta nem altera seus limites. Nada há de especial neste cubículo onde às vezes sonho ou interpreto minhas solidões, exceto por uma porta extra no fundo da saleta em L. Que eu saiba, é o único…
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Na cama, depois de tudo
Mônica vinha se transformando a cada fim de semana. De certa forma, ela também me preocupava. O pior de tudo era não termos dinheiro, acho. Não tenho certeza. O pior de tudo era o país. O pior era eu. Acho. Fiquei olhando seu rosto inclinado no travesseiro. Gosto de ver sua boca relaxada, entreaberta, mesmo…
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A bela e as esferas
Foi então que, abrindo os olhos, voltando dessa experiência mística, esse meu rápido e estúpido transe, me aconteceu perceber o interesse de uma jovem púbere, de agradável semblante, que a mim observava discretamente de sua mesa, relativamente próxima. Estava com os pais – veja-se se isto são lugares para se levar uma garota dessas numa…
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Perdemos o fim da missa
Eu olhava ao fundo o retrato de Machado de Assis, menino de morro, ascensão social e exemplo que querem os outros como encarnação de seus métodos de controle, este à minha frente, eu considerava, se não finge tanto quanto eu, espera como todos que eu escreva por ele, que eu veja o que ele ainda…
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“Pois eu faço questão!”
Por essa época, nada me parecia suficiente. Mas eu pressentia estar me aproximando de alguma nova efervescência de meus valores. Dois capítulos sobre isso é mais do que o gosto do leitor médio pode suportar, eu sei. Foi mesmo uma recaída. Arcádio Raposo vai querer cortar tudo. Ora, não. Talvez não. “Somos uma editora.” É…
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Retrato de meu hábitat quando jovem
Voltei para casa, mas sem grandes preocupações. No caminho, havia decidido levar adiante meu projeto, mesmo que não pudesse editá-lo. Deve ser algum distúrbio, eu sei. Cheguei menos cansado que o normal, suspirando assim mesmo, olhei com má vontade a pasta com meus textos sobre a escrivaninha (eu pretendia levá-los à editora, mas no último…
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Canção de ser
Aura da morte no mofo das fachadas, ameaça inerente às coisas que são e têm sido. Torna a chuva a demarcar o tempo, supõe ouvir: é preciso coragem.
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O Arcádio do Conselho Editorial
Antes de ir até lá, eu havia telefonado para confirmar a entrevista. Ela me deixara esperando por um tempo razoavelmente longo, pois fora o bastante para despertar-me o tédio, enquanto a gravação no aparelho entoava: Há um mundo bem melhor, todo feito pra você…, aquela incrível canção com a qual tentam nos motivar desde as…
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Memórias de gentis predadores
E o que é essencial à vida (a atração pelo sexo, o prazer da conquista e da sedução) se repete intensamente, com uma energia provinda de nossos genes, que não respeitam nenhuma estética criada por nós. Só o que podemos, com toda sinceridade, é admitir isso.
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Passeio (forçado) com Mônica
Mônica esperava em meu quarto. Sentada na cama, curvada para a frente, a mão direita apoiando o queixo, os últimos dedos mordiscados entre os dentes, a outra esquecida no colo. Pernas cruzadas, um pé como solto no ar desenhando voltas sobre si mesmo, depois refazendo o giro a girar no sentido contrário. “Então? Vamos?” Entregou-me…
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Noções de origem
Por uma questão de dignidade, eu queria continuar contando mentiras bem elaboradas, e nunca passar à frente nenhuma mentira que não fosse de minha própria autoria. Sim, isso me animou em muitas fases difíceis da vida. E talvez me motive sempre. Ah, como é bom escrever. Como é bom mentir.
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Sonho 811. O livro que falta
A coleção consistia de quatro livros ilustrados, uma enciclopédia adaptada para adolescentes, com artigos sobre inúmeros assuntos. Com o tempo, algumas imagens desapareceram de suas páginas, e eu nunca mais as encontrei – um menino deitado sob uma groselheira, o rosto malvado de um corsário e uma jovem grega portando uma ânfora. Talvez eu as…
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Dilemas inofensivos, obsessões horrendas
Como me irritam pessoas que leem tudo tão rápido. De uma enfiada, elas dizem. Bem-humoradas, contentes com essa capacidade boba. Como já disse, sou lento para ler (ou lerdo, o que melhor servir), devo reprimir uma faísca de inveja dos rápidos. Não sei se é só isso. Você fica cinco anos escrevendo um livro, relendo…
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Beckett lhe dá as boas-vindas
Cheguei mesmo a impedir que ela se apoderasse de uns exemplares meio carcomidos, que poderiam destroçar-se de vez – porque eu guardava umas edições muito velhas, de um papel que teria sido branco noutro século, tão antigas que, ao lerem-se alguns de seus parágrafos em voz alta e com alguma boa vontade, seriam capazes de…
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Consumação mínima
Ela fez questão de mencionar a última vez que estivemos num restaurante. Um sujeito simpático, meio garçom, meio porteiro, não sei, sorria às pessoas que entravam e saíam, desejando-lhes boa noite, bom apetite, bom isto, bom aquilo. Abriu-nos a porta de vidro e um sorriso que não o impedia de nos radiografar dissimuladamente, tanto quanto…
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Meu amigo poeta-patriota
Glauco Pinheiro de Pádua, engenheiro civil, emprego público, Prefeitura Municipal. Poeta por prazer – ou necessidade? Às vezes aparece para trocar ideias, sua tal expressão, na verdade não é uma troca de ideias, ele nunca me dá ideias. De minha parte, evito anunciar-lhe as minhas – não que mereçam qualquer segredo, mas porque normalmente ele…
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Noite no jantar dançante
Outros homens me viram passar pela porta lateral do salão de festas. Sei que me observaram de seus secretos desejos quando saí para o jardim aberto. Sentei-me sobre uns degraus de ardósia entre dois gramados, de altura conveniente. Tirei da bolsa o batom, revi meu rosto no pequeno espelho, meu pequeno rosto.
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O engenheiro e os fungos
A vida não tem cura. Viver é estar doente de tempo.
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Ante seus olhos, quase um silêncio
Noite passada tornei a sonhar que a amava, e a conduzia por uns jardins impossíveis, enriquecidos de remansos, ramos inclinados e delicadas quedas d’água. Ela deita a cabeça em meu ombro, sorri com grande ternura enquanto caminhamos, o que me põe a despertar com um intenso desejo de possuí-la, como não menos o de destruir…
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Vencidos, uma questão de tempo
Se vou morrer hoje, tudo bem, eu pensava. Só o que me trazia um incômodo nervosismo era imaginar como morreria. Um só daqueles mísseis, se atingisse o apartamento, se atingisse, digamos, o centro da sala, não me daria tempo para um último suspiro. Força de expressão, claro: por que eu haveria de querer um último…
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O Arsênio da Editora Circular
Um arrepio. Conheço essa batida. Lenta, repetida três vezes, como se zombasse de quem está dentro. Outra vez. Digo, mais outras três vezes. Sim, só pode ser. “Bom dia”, diz ele quase cantando. Mas assim: grave, insinuante.
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O esquife de prata ornamentado
No trem, engrenagens da memória voltadas à notícia da morte de meu pai, eu prevendo o fastidioso velório, a encenação toda, os maneirismos próprios de tais ocasiões…
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Duas linhas, literalmente
O jornal dedicou-me duas linhas, literalmente, numa de suas colunas mais estreitas, o tópico cultural. E não que merecesse mais do que isso. Aquele era, sem dúvida, um de meus contos mais execráveis: convencional, descritivo, tinha até uma mensagem. Escrevi muitos contos ruins, e quase todos foram premiados. Por sorte, nem todos foram publicados, e…
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Brinquedos
Álbum de figurinhas com artistas e casais da tevê: por essa época, meus pais já não dormiam juntos. Banco imobiliário, enquanto oficiais de justiça chegavam para levar eletrodomésticos, objetos afins, valores penhorados.
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O fim (e seu avesso)
Muitas vezes pensamos que tudo está sob controle. Que estamos a salvo e imunes. Só então é que as coisas de fato acontecem.
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Sonho 2117. A corte vazia
Um homem está sendo julgado. A mulher bem vestida (entendo mais tarde que é a promotora de justiça) se levanta, com o dedo em sua direção, pronunciando frases intensas. O réu parece contrair-se no encosto, amedrontado. Um ambiente austero, vigas de madeira escura, divisórias envernizadas. Mas curiosamente as paredes parecem em chamas, entre fortes tons…
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Estudo com cristais. Ester (10/13)
Conheci Ester no balcão de uma cantina – pelo menos, foi quando nos vimos. Não sei, mesmo hoje, se cheguei a conhecê-la como se espera conhecer alguém. Costumávamos almoçar ali, separadamente, quando não existíamos. Da primeira vez, iniciou-se uma conversa por acaso. Ela era educada, levemente arrogante. Da segunda, toquei seu ombro antes de me…