Office in a Small City por Edward Hopper

Tag: contos

  • Vencidos, uma questão de tempo

    Vencidos, uma questão de tempo

    Se vou morrer hoje, tudo bem, eu pensava. Só o que me trazia um incômodo nervosismo era imaginar como morre­ria. Um só daqueles mísseis, se atingisse o apartamento, se atin­gis­se, digamos, o centro da sala, não me daria tempo para um úl­timo suspiro. Força de expressão, claro: por que eu haveria de querer um último…


  • O esquife de prata ornamentado

    O esquife de prata ornamentado

    No trem, engrenagens da memória voltadas à notícia da morte de meu pai, eu prevendo o fastidioso velório, a encenação toda, os maneirismos próprios de tais ocasiões…


  • Brinquedos

    Brinquedos

    Álbum de figurinhas com artistas e casais da tevê: por essa época, meus pais já não dormiam juntos. Banco imobiliário, enquanto oficiais de justiça chegavam para levar eletrodomésticos, objetos afins, valores penhorados.


  • Sonho 2117. A corte vazia

    Sonho 2117. A corte vazia

    Um homem está sendo julgado. A mulher bem vestida (entendo mais tarde que é a promotora de justiça) se levanta, com o dedo em sua direção, pronunciando frases intensas. O réu parece contrair-se no encosto, amedrontado. Um ambiente austero, vigas de madeira escura, divisórias envernizadas. Mas curiosamente as paredes parecem em chamas, entre fortes tons…


  • Estudo com cristais. Ester (10/13)

    Estudo com cristais. Ester (10/13)

    Conheci Ester no balcão de uma cantina – pelo menos, foi quando nos vimos. Não sei, mesmo hoje, se cheguei a conhecê-la como se espera conhecer alguém. Costumávamos almoçar ali, separadamente, quando não existíamos. Da primeira vez, iniciou-se uma conversa por acaso. Ela era educada, levemente arrogante. Da segunda, toquei seu ombro antes de me…


  • Três mulheres, um talismã

    Três mulheres, um talismã

    Todos os livros que uma vez abri nunca mais se fecharam, e guardaram-se por trás de meus olhos como quando os lia antes de me deitar e os levava abertos minha noite adentro, Lice talvez me compreendesse afinal, ela que também vivia seu plano mágico: que faço minhas todas as palavras, que a morte só…


  • Micro-organismos

    Micro-organismos

    A manhã pelos vidros do laboratório não o afasta da noite anterior, quando se dera a dolorosa confirmação de que vinha sendo traído, e o pior: era o último homem que acreditaria capaz de despertar desejos em uma mulher. A manhã pelos vidros o trespassa de grades enquanto se desloca em direção ao local de…


  • Clara sob luz amena

    Clara sob luz amena

    Ela me ajuda com a calça, tira-me pelas pernas o que até há pouco impedia-me a nudez. Em troca, abro-lhe o vestido, o sutiã, desço-lhe a calcinha aos joelhos que se dobram, um após outro, tornozelos simultâneos. Não nos agrada a breve união que facilmente aproxima o orgasmo. Sempre nos lembra algo em que participe…


  • Técnica singular para inflar balões

    Técnica singular para inflar balões

    O primeiro sai algo banana ou salsicha. Outro toma forma de um camelo, duas corcovas oblongas. Ora, sim, um zepelim um tanto tímido. Murcho como uma fruta. Disforme feito um sonho.


  • As cinco estações

    As cinco estações

    Privilegiado pelas árvores, o bosque à janela de meu quarto, de onde migravam brisas aromáticas como filtradas por estames novos, canto de cigarras entre outros, quando a natureza revia seu sofisticado universo: as vastas manhãs da adolescência pareciam mais lânguidas na primavera.


  • Castelo de cartas

    Castelo de cartas

    Distraído do jogo, fixa longamente o verso das cartas viradas sobre a mesa, um castelo azul no topo de um íngreme penhasco.


  • A roda

    A roda

    Da janela, via os fundos do hospital e, a um canto do pátio, a velha roda de carroça. Sua febre repassava reis assírios, torturas medievais e as mais recentes. A roda vista era uma carroça, logo uma carruagem. Era um cepo. Um castelo. Um crânio. Todas as formas que assumia o atormentavam. Na mesma manhã…


  • Homens de negócios

    Homens de negócios

    Da luxuosa antessala, a secretária conduziu o homem de valise, confirmando que o doutor o esperava. O patrão ergueu-se sorrindo, cumprimentou o visitante e ordenou que se fechasse a porta. O homem abriu a valise e o liquidou com um tiro. Lisette Maris em seu endereço de inverno – Guia de leitura 42. Castelo de…


  • Você me acha cruel?

    Você me acha cruel?

    Enquanto coisas assim – imprevisíveis e aparentemente impossíveis há apenas algumas horas – vão acontecendo bem à minha frente, eu sempre digo a mim mesmo que ainda vou me arrepender desse dia. Na verdade, eu me arrependo de quase tudo o que faço.


  • Vina, a quase viúva

    Vina, a quase viúva

    Ela era jovem e bonita. Cabelos lisos, castanhos. Não podia ter mais que uns vinte e três anos. Mascateando livros. Vida dura, marido doente, desempregado, poeta. A maquiagem muito leve disfarçava-lhe as olheiras, o cansaço, o ar abatido de viúva. Antes que eu lhe respondesse, entrou na lanchonete um rapaz de camisa estampada, cabelos aparados,…


  • A encantadora ovelha ruiva. Parte 1 (Outro livro de bruxas?)

    A encantadora ovelha ruiva. Parte 1 (Outro livro de bruxas?)

    Anseio por vê-la diariamente, mas resisto: fico dois ou três longos dias longe da livraria para que não suspeite que estou apenas interessado nela. Peitinhos empinados, coxas consistentes, cintura… Cintura o quê? O que tem a cintura dela? E daí? Basta de descrições. Mais um pouco, só mais um pouco, vá lá, que esta vale…


  • Antropologia aplicada

    Antropologia aplicada

    “Como vocês veem, as inscrições na sepultura muito antiga ainda podem ser lidas. Este crânio que tenho em mãos, apesar de coberto por esta substância cinzento-escura, conserva-se praticamente intacto mesmo após tanto tempo, o que pode ser atribuído às condições do solo local. O estranho nisso tudo é que…


  • Ana (meu caminho até ela)

    Ana (meu caminho até ela)

    Desde que começa a subir, é como se já estivesse aqui, na realidade de sua presença. Ouço os primeiros degraus de madeira lá embaixo, seus passos simétricos revelando algum solado de couro, ritmos inconfundíveis de um calçado feminino. E esses solados de certa forma se entendem com a madeira melhor do que qualquer outro material…


  • O circular retorna a seu infinito

    O circular retorna a seu infinito

    Alguém lê um jornal, o que é estranho: não se pode conceber um fato novo, algo que já não tenha ocorrido. Até os eventos que se supõem históricos mendigam sua chance de surpresa, já que não transcendem sua própria muralha de repetição. Por fim, ali está ela: de pé, junto à barra vertical, num agradável…


  • O final dos contos de fósseis

    O final dos contos de fósseis

    Não resisto, detenho-me diante da casa. Concretada a caixa de correspondência: não recebiam cartas, contas ou cartões os moradores que nos sucederam? Perturbam-me os grandes tipos do aviso (VENDE-SE), o rumor de vozes na sala. Então pode ser negociado à luz do dia este endereço de raízes, este santuário de minhas sombras?


  • Pai a casa torna

    Pai a casa torna

    Olhe, olhe só para isso: as flores ainda estão aqui. Sei que não são as mesmas, mas são da mesma espécie. Os outros novos moradores as preservaram de alguma forma, olhe só. Ou foram replantadas mais tarde. Ou… Sei, sei, já vi o degrau. Eu o conheço muito bem. E não estou brincando, você sabe.…


  • A âncora

    A âncora

    Nossa prestativa vizinha da frente vinha ver-nos todos os dias. Acrescentava curiosidades sobre a plantinha, que se desenvolvia rapidamente, elogiava os bons tratos. A casa dela era escurecida de plantas. Prometeu-nos fertilizante especial, inseticida forte, terra tratada. No sábado, pegou-meem casa. Logoque se retirou, minha companheira puxou-me a um canto. “Cuidado com o que diz…


  • Crônica de canção feita ao mar

    Crônica de canção feita ao mar

    Minha jangada vai sair pro mar… – ensinava dona Dorinha regendo-nos com um lápis. Com toda a voz de meus onze anos, entre os de minha classe e mesma formação, eu repetia as canções bonitas que nos mostrava essa mestra, enquanto acompanhava no perfil da colega, na fileira ao lado, o movimento de seus lábios,…


  • O mar dos meninos

    O mar dos meninos

    Como a toda criança aparentemente sadia, o mar e os navios encantavam-me. Nunca tinha visto um, nem mar nem navio, fora dos livros ilustrados em que os descobria. Desde aquelas antigas embarcações egípcias, passando por caravelas enfunadas e vapores ruidosos, até encouraçados em guerras mais recentes (até isso!), todos me pareciam belos.


  • Hoje, acabaram-se as xícaras

    Hoje, acabaram-se as xícaras

    Despertei com o ruído na sala, Maria Célia recolhendo xícaras, copos, cinzeiros, o que restara mais que a memória de uns amigos da noite anterior. O jogo ia se tornando confuso com seus pires lascados, xícaras sem asa, e nenhum de nós se lembrava mais de quantas xícaras e pires havia de fato. Às vezes…


  • A mesma aventura

    A mesma aventura

    “Bom dia a todos.” Por isso todos me observam quando subo ao ônibus, pela manhã. Não se diz bom-dia a todos, especialmente com tal sinceridade. Estranham roupas que mal se ajustam e fazem de mim um cidadão deselegante, sem interesse. Óculos que mal se ajustam ferem-me o nariz e as orelhas. Mal eu me ajusto…


  • Breve relato sobre o conhecimento de artes singulares

    Breve relato sobre o conhecimento de artes singulares

    No momento de embarcar, tudo sucede festivo e como nos atirássemos à mais gratificante aventura. Os companheiros nos acenam: “Vamos! Vamos!”, e eis o mundo de grandes portas abertas, de sorte à frente, tudo nos excita e convida ao futuro, menos o receio de acabarmos num dos quatro abismos que delimitam os mares e onde…


  • Sonho 772. Vista do mirante

    Sonho 772. Vista do mirante

    Vista de um mirante. Sonho com estranhas torres.É quando compreendo que meu espanto nunca foi senão uma faceta de meu medo. Estou no terraço, junto ao parapeito, do que me parece a noite mais clara, o edifício mais alto do mundo. As cidades não nasceram ainda. Todo o firmamento festeja a noite de mil sóis.…


  • Sonho 670. O filósofo “francês”

    Sonho 670. O filósofo “francês”

    Entro numa sala de aula que é ao mesmo tempo um gabinete e um escritório, com partes de uma biblioteca. Conheço esta sala, já estive aqui, e nunca notei todos esses móveis, essa estante de livros, tão sólida e majestosa. Como sou distraído, penso. Ali está o filósofo em sua mesa, lendo ou escrevendo. Eu…


  • Arca com retratos do pai. Parte 1

    Arca com retratos do pai. Parte 1

    Tudo isso não passava de alucinação para mim – essa infância que ouvia dele, seus pais e avós, a quem mal ou não conheci. Só em minha fantasia podia vislumbrar os funerais dessa ancestral, quando iam todos a pé, trajando a indumentária da colônia e portando archotes no inverno. A vegetação do vale, os caminhos…


  • A moeda de milhões

    A moeda de milhões

    Incontáveis são as sutilezas que envolvem a sexualidade humana, não menos que as grosserias, os desejos inconfessáveis, as taras dissimuladas, as distorções e excentricidades, os tabus subvertidos, as violações à força, a infidelidade camuflada em velhas arcas de família, por vezes deflagrando episódios de paixão doentia, obsessões incuráveis e crimes violentos, porém só um leve…


  • Desdobramentos de um réveillon secreto

    Desdobramentos de um réveillon secreto

    Tornamos a nos conhecer na reunião que move a numerosa família à casa da matriarca em sua cidade. Ali os mais velhos apreciam clássicos do jazz e trilhas de cinema. Dessa vez pareceu-me claro de sua parte, quando todos deixaram a sala rumo aos fogos e às festas previstas a céu aberto, e ela passou…


  • Relâmpagos

    Quando penso em minha infância, vejo um menino atrás da vidraça numa noite tempestuosa – rosto sem sorrir, olhos iluminados por relâmpagos que o fascinam.


  • Estudo com cristais. Lis (4/13)

    Estudo com cristais. Lis (4/13)

    Da primeira vez, quando dormimos juntos (nossos encontros têm sido escassos, à sorte de oportunidades), Lis perdeu o sono antes de mim. O beijo umedecido, emergindo das trevas, tornava lábios o pântano e a névoa que me entorpeciam, trazia-me de volta à vigília, ao que eu era e me sentia sendo, à vida possível. Na…


  • Tarde e jogos com Ester

    Tarde e jogos com Ester

    Suponho que para isto sirva o silêncio, para ouvirmos o que não nos querem dizer. Também para que se renovem todas as chances de dizermos algo mais antes do emudecimento. De erguermos um gesto antes da paralisia. Para não nos dizermos, quando tarde demais e na posse da melhor palavra, que estamos hoje morrendo de…


  • Estudo com paredes / … / Estudo com ferramentas

    Estudo com paredes / … / Estudo com ferramentas

    Viu horrorizado que a machadinha empastada de sangue subia e descia em golpes sucessivos sobre seu peito. Pareceu-lhe uma infinidade de pancadas surdas ainda que uma só delas pudesse abrir-lhe o tórax ou separar-lhe a cabeça do corpo, e ainda que o jovem empunhando a perigosa ferramenta, um moreno escuro de físico débil, rosto de…


  • Autorretrato 23 (curta-metragem)

    Autorretrato 23 (curta-metragem)

    Há algum tempo tive a grata satisfação de ver um dos meus contos adaptados à tela por Bruno Garavello, que roteirizou e dirigiu o curta-metragem Autorretrato 23


  • Dia após dia

    Dia após dia

    Ainda que tentasse evitar – o que nunca faço – as ruas costumavam cercar-me de cenas avulsas, frases ouvidas por acaso, pessoas em movimento protagonizando os dias, todos os dias antes que viessem outros, outro tempo, outras gentes.


  • Sua canção de enganar

    Sua canção de enganar

    Que lhe importam a Coluna de Trajano, as sagas contadas, gravadas em relevo, se sua vida é uma única peça, um único bloco onde se insculpem fragmentos com tudo o que lhe coube viver? E você sabe, como todos, que não pode estar antes nem depois da vida. Só aqui, em meio ao dia, tudo…


  • Meu colega triste

    Meu colega triste

    Mas eu era assim, analítico. Ou supunha ser. Observava tudo em meus colegas, naturalmente ou não. Certos dias houve em que me sentia tão aguçado, tão perfeitamente lúcido e desperto, que quase poderia apostar na iminência de alguma fulgurante revelação, em meio a um momento qualquer. Isso nunca aconteceu, claro. Só me ocorria comparar tal…


  • Última chance com incêndios

    Última chance com incêndios

    As crianças que se perseguiam, de risos e vozes que eu assimilava como à distância, passaram entre mim e as chamas interrompendo meu estado de fixação involuntária. Que era isso? Uma maneira de concentrar-me? Distrair-me? Essa noite trazia algo de abandono. Meus olhos haviam perdido os contornos da fogueira em movimento, a nitidez das fagulhas…


  • Mirna e a viking de tranças

    Mirna e a viking de tranças

    De bruços na cama, eu acompanhava os esforços de Mirna das Selvas em suas aventuras solitárias, atento às expressões de seu rosto, tantas vezes ligado por uma trilha de pequenos globos brancos a um balão-nuvem no qual se organizavam espaços e curiosos sinais. Olhos cintilantes perdidos no horizonte das grandes clareiras. Brincos, braceletes de couro.…


  • Preço justo

    Preço justo

    O que mais me admira no espetáculo do mundo, demarcado por longos estios e chuvas devastadoras, é esse inconcebível potencial de fugacidade e aniquilação, um sol escuro, nem benigno nem maligno, que a um tempo extingue e renova tudo o que existe, preservando a vida à custa de exterminar justamente os que vivem, com isso…


  • Sete anos em Manhattan

    Sete anos em Manhattan

    Por vezes não sabemos por que fazemos algo. Mas um dia alguém descobre por nós. E quantos, como eu, não teriam buscado respostas para a vida? – o que afinal significa buscar respostas para si mesmos. Tenho a sorte de reter muitas lembranças, o que tanto me serviu quanto me prejudicou.