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Categoria: Conto
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Sonho 1448. O ancestral pré-histórico
Pouco atrás dele, entre ervas e baixos arbustos, passa uma jovem belíssima, clara e alta, uma mulher que tenho a impressão de já ter visto antes, talvez uma modelo fotográfica ou de moda, um desses rostos que se tornam familiares por força de o termos memorizado sem intenção. Sei, portanto, que ela não pertence àquele…
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Sonho 1702. O velho anjo
Um antigo colega de estudos vai ao meu lado, estamos caminhando em direção ao cemitério, não sei para quê. Faz um dia claro, mas sem sol. Talvez nublado. Não sei. “Estou pensando em escrever um livro”, ele diz enquanto seguimos por uma rua e outra. Um livro? Por que escrever um livro? Por que ele…
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Sonho 670. O filósofo “francês”
Entro numa sala de aula que é ao mesmo tempo um gabinete e um escritório, com partes de uma biblioteca. Conheço esta sala, já estive aqui, e nunca notei todos esses móveis, essa estante de livros, tão sólida e majestosa. Como sou distraído, penso. Ali está o filósofo em sua mesa, lendo ou escrevendo. Eu…
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Sonho 3305. O hamster da faculdade
”Isso tudo vai acabar”, diz o coordenador pensativo, sem olhar para mim, como se fitasse um horizonte que não existia lá dentro. ”Mas como?”, pergunto surpreso. ”Há tantos alunos, tantos cursos…” ”Os templos de Luxor…”, ele murmura, interrompendo-se em seguida. ”Sim, eu entendo. Mas… tão rápido?”
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Sonho 2413. A jovem viúva
Vestido e chapéu escuros, renda fina cobrindo-lhe o rosto, certamente de luto, ela o esperava sentada na pequena sala ao lado. Quando ele entrou, viu-a pelas costas, ombros e cabeça baixa. Pronunciou seu nome, e ela virou-se, erguendo-se e entregando-se rapidamente num abraço muito forte, movido por uma emoção e uma carência intensas. “Era para…
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Arca com retratos do pai. Parte 2
Tudo em mim fica retido, antes de tudo. E fere ou fascina. O odor característico do papel plastificado, a tinta de impressão que até hoje reencontro em certos periódicos – eu começava a aprender dos textos, ao decifrá-los. O fascículo ilustrado com animais do Cretáceo, que ele me compra numa banca de esquina – também…
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Arca com retratos do pai. Parte 1
Tudo isso não passava de alucinação para mim – essa infância que ouvia dele, seus pais e avós, a quem mal ou não conheci. Só em minha fantasia podia vislumbrar os funerais dessa ancestral, quando iam todos a pé, trajando a indumentária da colônia e portando archotes no inverno. A vegetação do vale, os caminhos…
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A moeda de milhões
Incontáveis são as sutilezas que envolvem a sexualidade humana, não menos que as grosserias, os desejos inconfessáveis, as taras dissimuladas, as distorções e excentricidades, os tabus subvertidos, as violações à força, a infidelidade camuflada em velhas arcas de família, por vezes deflagrando episódios de paixão doentia, obsessões incuráveis e crimes violentos, porém só um leve…
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Desdobramentos de um réveillon secreto
Tornamos a nos conhecer na reunião que move a numerosa família à casa da matriarca em sua cidade. Ali os mais velhos apreciam clássicos do jazz e trilhas de cinema. Dessa vez pareceu-me claro de sua parte, quando todos deixaram a sala rumo aos fogos e às festas previstas a céu aberto, e ela passou…
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Relâmpagos
Quando penso em minha infância, vejo um menino atrás da vidraça numa noite tempestuosa – rosto sem sorrir, olhos iluminados por relâmpagos que o fascinam.
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O demônio no fundo do quarto
Magra e arcada, a velha de pele ressequida e cabelos grisalhos esperava por mim junto ao portão de grade. Malas prontas, mudança. Lenço, soluços. E um fio de pranto amargurado que mais lhe cavava os olhos cinzentos. Eu a abracei como pude, pedi que não tornasse a chorar, pois pessoas que choram me incomodam muito.…
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Estudo com cristais. Lis (4/13)
Da primeira vez, quando dormimos juntos (nossos encontros têm sido escassos, à sorte de oportunidades), Lis perdeu o sono antes de mim. O beijo umedecido, emergindo das trevas, tornava lábios o pântano e a névoa que me entorpeciam, trazia-me de volta à vigília, ao que eu era e me sentia sendo, à vida possível. Na…
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Tarde e jogos com Ester
Suponho que para isto sirva o silêncio, para ouvirmos o que não nos querem dizer. Também para que se renovem todas as chances de dizermos algo mais antes do emudecimento. De erguermos um gesto antes da paralisia. Para não nos dizermos, quando tarde demais e na posse da melhor palavra, que estamos hoje morrendo de…
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Estudo com paredes / … / Estudo com ferramentas
Viu horrorizado que a machadinha empastada de sangue subia e descia em golpes sucessivos sobre seu peito. Pareceu-lhe uma infinidade de pancadas surdas ainda que uma só delas pudesse abrir-lhe o tórax ou separar-lhe a cabeça do corpo, e ainda que o jovem empunhando a perigosa ferramenta, um moreno escuro de físico débil, rosto de…
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Autorretrato 23 (curta-metragem)
Há algum tempo tive a grata satisfação de ver um dos meus contos adaptados à tela por Bruno Garavello, que roteirizou e dirigiu o curta-metragem Autorretrato 23
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Dia após dia
Ainda que tentasse evitar – o que nunca faço – as ruas costumavam cercar-me de cenas avulsas, frases ouvidas por acaso, pessoas em movimento protagonizando os dias, todos os dias antes que viessem outros, outro tempo, outras gentes.
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Sua canção de enganar
Que lhe importam a Coluna de Trajano, as sagas contadas, gravadas em relevo, se sua vida é uma única peça, um único bloco onde se insculpem fragmentos com tudo o que lhe coube viver? E você sabe, como todos, que não pode estar antes nem depois da vida. Só aqui, em meio ao dia, tudo…
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Chegadas partidas
Ninguém fora despedir-se de mim na rodoviária. Nem era de se esperar, admito. Ainda assim, muito em segredo e contra o mais provável, até o último minuto eu supunha que algo diferente pudesse acontecer, são peças que a esperança nos prega. Dela, sempre fica algum ranço desse especial veneno, próprio a criar outra precária ilusão,…
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Meu colega triste
Mas eu era assim, analítico. Ou supunha ser. Observava tudo em meus colegas, naturalmente ou não. Certos dias houve em que me sentia tão aguçado, tão perfeitamente lúcido e desperto, que quase poderia apostar na iminência de alguma fulgurante revelação, em meio a um momento qualquer. Isso nunca aconteceu, claro. Só me ocorria comparar tal…
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Última chance com incêndios
As crianças que se perseguiam, de risos e vozes que eu assimilava como à distância, passaram entre mim e as chamas interrompendo meu estado de fixação involuntária. Que era isso? Uma maneira de concentrar-me? Distrair-me? Essa noite trazia algo de abandono. Meus olhos haviam perdido os contornos da fogueira em movimento, a nitidez das fagulhas…
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Mirna e a viking de tranças
De bruços na cama, eu acompanhava os esforços de Mirna das Selvas em suas aventuras solitárias, atento às expressões de seu rosto, tantas vezes ligado por uma trilha de pequenos globos brancos a um balão-nuvem no qual se organizavam espaços e curiosos sinais. Olhos cintilantes perdidos no horizonte das grandes clareiras. Brincos, braceletes de couro.…
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P.S.: Post scriptum (Pós-Escrita)
Os professores repreendiam-me, estranhavam que tanto eu pressionasse o lápis sobre o papel. Mais tarde, a caneta. Nunca soube escrever de outra maneira, e não me desenvolvi. O adolescente não podia evitar que os tipos datilografados perfurassem o papel – e os acentos, aspas, vírgulas e interrogações remetiam ao braile, não sem alguma alusão oportuna,…
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Preço justo
O que mais me admira no espetáculo do mundo, demarcado por longos estios e chuvas devastadoras, é esse inconcebível potencial de fugacidade e aniquilação, um sol escuro, nem benigno nem maligno, que a um tempo extingue e renova tudo o que existe, preservando a vida à custa de exterminar justamente os que vivem, com isso…
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Sete anos em Manhattan
Por vezes não sabemos por que fazemos algo. Mas um dia alguém descobre por nós. E quantos, como eu, não teriam buscado respostas para a vida? – o que afinal significa buscar respostas para si mesmos. Tenho a sorte de reter muitas lembranças, o que tanto me serviu quanto me prejudicou.