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Continuando teus olhos 002
No alto da colina, mãos nos bolsos do casaco, observando a extensão de vegetação rasteira até o vale cortado pela estrada de terra logo abaixo, o tenente-coronel Virgílio Monteiro, de pé e na prática de sua postura altiva e ortopedicamente correta, recordava a rampa relvada em sua infância, percorrida com seu carrinho de madeira improvisado, construído com a ajuda de um irmão mais velho. Revisitavam e agitavam sua memória a velocidade crescente, a euforia e o medo, disputando ao mesmo tempo o mesmo espaço em sua mente e em seu corpo, quando ele se atirava, a partir de um mínimo impulso, ladeira abaixo. Por um instante, quedou absorto e imaginativo, olhando fixamente a extensão da descida íngreme logo à frente. Isso o fazia algo mais confortável com aquela visão próxima (sendo o declive ali bem mais acentuado que o de suas recordações de menino) e em meio a mais essa missão de vigilância ostensiva.
“Que frio do caralho!”, resmungou seu colega, o atirador de elite designado para acompanhá-lo. “Não nasci pra isso!”
“Nenhum de nós”, disse Virgílio achando engraçado.
“Tô congelando aqui…”, informou o atirador tremendo com intermitência, por vezes quase em convulsão. Afundava o queixo no peito, pressionando sua barba negra, espessa e bem aparada, sobre o fecho superior do casaco.
Enquanto Virgílio caminhava lento, de um ponto a outro, no restrito espaço plano situado entre os dois aclives, Álvaro permanecia agachado junto ao tripé robusto que sustentava sua arma de longo alcance. Mas não era esse o motivo de ele estar sofrendo com o frio e sim porque não estava tão bem agasalhado quanto seu colega. Os dois apertavam sutilmente os olhos contra a distância da propriedade rural observada, uma chácara situada à direita de sua posição, nessa manhã sem sol.
“Até que horas aqui?”, resmungou o atirador.
“Não sei ainda.”
Muitas pessoas conservavam suas roupas de inverno de dois ou três anos atrás, quando ainda não se abatiam sobre o país temporadas de inverno intenso e impiedoso como essa que experimentavam agora, consequência de mudanças climáticas sempre mais surpreendentes. E era necessária uma nova adaptação, com peças de vestuário mais bem preparadas para enfrentar essas estações novas e assustadoras, sob granizo e neve eventuais.
“Esse frio vai passar logo”, disse o tenente-coronel.
“Sei”, ironizou Álvaro. “Cada um diz uma coisa. Agora é assim neste país.”
Virgílio era o encarregado da missão. Homem robusto, baixo e quase sem pescoço, como achatado por algum tipo de pressão atmosférica que só agisse sobre ele. Mesmo disfarçados entre arbustos rarefeitos, os últimos antes do início abrupto do declive, como uma linha de frente natural e conveniente, já havia sido feita uma avaliação sobre a capacidade de observação de quem por acaso estivesse lá embaixo, no fim também abrupto da ribanceira (no que eles chamavam grosseiramente de vale), e estabeleceu-se que não seria possível serem detectados visualmente em função daquele ângulo propício, escolhido como o melhor ponto de posicionamento para a realização da tarefa.
Ouviram um ruído suave de motor. Viraram-se para trás e observaram em silêncio a chegada o agente da Destra, conforme previsto.
“Não gosto desses caras”, cochichou Álvaro sem tirar os olhos do veículo que se detinha e silenciava.
“É mesmo?”, perguntou Virgílio sem olhar para ele, retórico e desinteressado na resposta.
“Essa gente vive metida em reuniões”, o atirador justificou-se, falando baixo e olhando para o lado, disfarçando ao máximo. “Sempre com essas roupas certinhas, e são eles que decidem onde a gente vai se arriscar e se foder aqui fora.”
Demétrio Navarro, representante do departamento do Estado, fechou cauteloso a porta do automóvel e subiu o trecho de relva cinzenta em direção a eles, tendo deixado o veículo alguns metros abaixo, do lado oposto ao declive que conduzia ao vale.
“Bom dia, meninos.”
Cumprimentou os dois com um gesto mínimo, evitando apertos de mãos. Era um pouco mais alto que Álvaro e um tanto mais alto que Virgílio. Parecia imune ao frio implacável, e a razão disso era visível: Demétrio vestia um casaco comprido, de tecido grosso que, logo na estreita abertura superior do fecho, deixava ver parte de sua indumentária de rotina, paletó, gravata e colete, as tais roupas certinhas que incomodavam o atirador.
Poucos dias antes, essa mesma região encontrava-se envolta em neblina. No momento, previamente calculado de acordo com a previsão meteorológica, que ainda era confiável a curto prazo, o ar mostrava-se limpo e rarefeito, com visibilidade franqueada até mesmo a distâncias imprevistas. De qualquer forma, o vento frio no alto da colina era uma constante: fraco, mas conservando sua contribuição incômoda às baixas temperaturas.
“Alguém ainda quer saber alguma coisa sobre esta missão?”, perguntou Demétrio oferecendo cigarros aos colegas.
“Não, obrigado”, disse o tenente-coronel, um raro caso de alguém que não fumava. “Já temos o bastante, se não estiver trazendo nenhuma novidade.”
“E você, parceiro?”
Álvaro aceitou o cigarro, disfarçando a antipatia que sempre sentira por esses tipos de outro escalão, ou mesmo de outra esfera, que nunca se arriscavam além de suas mesas de reuniões. Demétrio o acendeu para ele com seu isqueiro de grafite, escuro, do modelo mais comum, reabastecido por energia solar.
“Não me interessa”, respondeu o atirador tentando impor certa dignidade. “Não é da minha conta. N’quero saber. Eu cumpro ordens. E muito bem.”
O agente da Destra moveu lentamente a cabeça, em sinal de acordo.
“É a melhor coisa”, disse. “Muito das complicações que nos acontecem na vida é porque queremos saber mais do que precisamos saber.”
O tenente-coronel Virgílio aproveitou as amenidades para questionar a validade daquele trabalho específico.
“Vocês acham mesmo que alguém importante está escondido ali?”, apontou com um movimento sutil de cabeça o conjunto de telhados que constituíam a propriedade lá embaixo. “Acham que pode ser… ele?”
Demétrio fez um sinal para que se sentassem. Mesmo usando calças de tecido espesso, os vigilantes improvisaram retângulos de papelão para sentar-se sobre as ervas rasteiras, umedecidas desde a neve do dia anterior. Destroçaram uma caixa que haviam trazido especialmente para esse fim e ofereceram um assento ao agente. Demétrio sentou-se devagar, evitando sujar-se o mínimo que fosse.
“Nós achamos sim”, disse ele soltando uma mancha de fumaça pela boca, algo que diferia claramente do vapor emitido pelo simples ato de expiração em dias assim tão frios.
“Algum sinal mais consistente? Algum informante confiável?”
O agente nunca respondia claramente a perguntas assim, e Virgílio sabia disso. Mas apostou um pouco no clima de descontração entre eles e no fato de Demétrio ter se oferecido, pouco antes, para esclarecer algo mais sobre a missão.
“O último sinal do personal dele”, explicou o agente, assumindo que todos eles estivessem pensando na mesma pessoa, “foi detectado na rua mesmo, levando a crer que ele o destruiu no caminho, a pé, no trajeto de seu apartamento até a rodoviária. Temos imagens dele entrando em um ônibus, sabemos que foi para Frutais do Sul, sua cidade natal. Depois disso, desapareceu completamente. O aparelho não foi encontrado.”
O tenente-coronel mostrou-se pensativo.
“Parecia fácil demais, não é mesmo?”, concluiu. “Na cidade dele, poderia ter sido detido quase imediatamente. Quase sem esforço.”
“Sim. Na minha opinião, foi um erro não ter deixado aquela cidadezinha sob vigilância ostensiva e mesmo sitiada, ainda que invisivelmente. Alguém subestimou o momento.”
“E essa garota que estamos documentando?”, perguntou Virgílio, pois a estavam gravando em áudio e vídeo com as tecnologias disponibilizadas pelo departamento, câmeras ridiculamente discretas, minúsculas, mas muito potentes, e pontos de microfone Zenninger de longo alcance. Havia sistemas de leitura labial que se associavam ao equipamento e apenas confirmavam o que os supermicrofones registravam.
“O que tem ela?”, perguntou Demétrio quase num fio de voz, quase indiferente, o rosto envolto na fumaça do cigarro, que logo se dissipava.
“É por causa dela a suspeita?”
O agente assentiu com um movimento leve de cabeça.
“Ela trabalhava com nosso alvo. Convivia com ele. Isso não prova nada, e é por isso que estamos averiguando todas as possibilidades.”
“E esse contato dela? Seria… ele?”
“É um palpite. É a nossa aposta. É o argumento que temos para sustentar nossos subsídios, para manter a missão. Acho que estamos muito perto. Mesmo assim, temos que manter um nível de convencimento para os que controlam as verbas.”
“Seja quem for, ele nunca sai de lá. Não é isso?”
“Nunca sai”, confirmou o agente.
“E a garota vem sendo monitorada desde a casa dela?”
Demétrio concordou, gesto de mão segurando o cigarro.
“A informação que nos passaram”, acrescentou Virgílio, “foi que ela percorre 27 quilômetros, pelo menos uma vez por semana, para vir até aqui, até essa chácara aí embaixo, só para comprar verduras e umas frutas. Não é isso?”
“Sim. Acha isso normal?”
“Claramente não.”
“Por isso mesmo foi autorizada a vigilância. Na cidade, o monitoramento dela é permanente.” Ouviu-se um mínimo sinal sonoro em seu personal. Demétrio o sacou do bolso do casaco, concentrou-se na tela, paralisado e atento. “Ela está vindo. Está bem próxima.”
O atirador ergueu-se de um salto, posicionou-se junto à sua arma. Parecia discretamente entusiasmado.
“Ei, ei!”, fez o tenente-coronel com um gesto de mão na horizontal, significando algum tipo de contenção, como se acalmasse um cachorro. “Vamos com calma. Ninguém vai atirar em ninguém aqui. Essa gente vale muito mais viva do que morta. Não temos nenhuma instrução quanto a isso.”
Álvaro coçou a barba, de mau humor. “Por que é que eu fui escalado para essa porra de missão então?”
“Para alguma eventualidade. Não sabemos ainda”, disse Demétrio com tranquilidade, sem se importar com a fala rude do colega insatisfeito, o que forçou o atirador a esconder sua irritação, sempre renovada quando ouvia a voz do agente da Destra e particularmente suas justificativas e sua visível demonstração de superioridade.
Os três posicionaram-se como planejado. Um ruído suave de motor, captado pelos microfones, crescia sem alarde. Finalmente avistaram o veículo, mostrando-se após uma última curva antes do vale.
“Aí está ela”, confirmou Demétrio, ainda comparando a realidade com as informações provindas de seu personal. E repetiu, quase num silêncio desagradável: “Aí está ela…”.
Uma mulher saiu por uma porta de madeira ao fundo de um largo corredor lateral e veio receber a visitante. Era baixa, cabelos castanhos presos num lenço, coberta por blusas de lã, calças grossas, sapatos escuros. A jovem desligou o veículo, saiu ao encontro dessa senhora. Suas tranças nagô vinham oscilando como parte de um gorro vermelho que lhe cobria quase toda a cabeça, enfiado sobre as orelhas. Os vigilantes captaram suas vozes enquanto se abraçavam e trocavam amenidades. A visitante voltou ao carro, pegou uma mochila, uma cesta e uma bolsa de alças que a anfitriã se ofereceu para carregar. As câmeras de longa distância podiam captar em detalhes os rostos das duas mulheres, e os microfones Zenninger gravavam tudo o que diziam. Elas trocavam sorrisos perguntavam uma à outra como iam as coisas, a vida. E entraram.
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