Office in a Small City por Edward Hopper
Teus olhos na escuridão

Teus olhos na escuridão. 59

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

De Castro resistia a renunciar. A pressão só aumentava sobre ele. As notas oficiais e as declarações de alguns representantes diretos do governo não convenciam ninguém. Eles próprios estavam se atrapalhando, se comprometendo ainda mais, com mentiras que pretendiam livrar um e outro, mas que acabavam adquirindo o aspecto perturbador de desastrosos disparos de fogo amigo. A quantidade de pessoas importantes supostamente envolvidas era tal que seria muito difícil recompor o governo, voltar à normalidade. Somente alguns poucos partidos pequenos não participavam da organização – justamente por serem adversários dos partidos majoritários, que detinham massivamente o poder. Dentre os muitos empresários investigados, três dos mais importantes foram conduzidos por agentes da PF para fora de suas residências luxuosas, algemados; alguns calados, de cabeça baixa; outros vociferando contra o que, mais tarde, seus advogados consideraram, com veemência, um ato deplorável e flagrante de injustiça. O fato era que estavam, todos eles, tropeçando e caindo, pipocando sob seus próprios disparates, apodrecendo em público.

O rosto da dona Conchinha surgia na tela, atendendo ao meu chamado.

“Dona Conchinha. Como vai? Estou a caminho. Devo embarcar antes do amanhecer. Preciso muito falar com a senhora.”

“Venha sim, Marco. Venha sim. É sempre uma alegria ter você por aqui. Tenho sempre um lugar reservado para você, aqui, na minha casa e no meu coração.”

No quinto dia, as chuvas continuaram. Às onze da noite, o ministro da Defesa, atuando como porta-voz do primeiro-ministro, anunciou, para absoluta estupefação de todos, um lockdown nacional. Apoiado por uma quantidade de facultativas que alertavam para a chegada de um novo vírus devastador, o decreto passaria a valer a partir da meia-noite. Apenas aeros policiais se deslocavam pelo espaço. De Castro, que costumava falar à imprensa quase todos os dias, esbanjando sua simpatia e seu carisma, mantendo em forma sua popularidade, não mais aparecia em público. A forte pressão para que renunciasse trazia também, em seu bojo, o dilema de ele deixar o cargo, tornando-se assim um cidadão comum, sem privilégios políticos, sujeito ao indiciamento, ao julgamento e à detenção.

Nessa noite, sonhei com minha mãe. Vinha pensando nela por aqueles dias, como parte de um conjunto de elementos abstratos (mesmo considerando-se as pessoas vivas) que me inspiravam afeto, bem-querer, reciprocidade e esperança contra uma incipiente condição de abandono. Imagens dela construídas em minha mente, projetadas mais pelo conhecimento de fotos antigas do que por minha memória viva. Essa impressão, por si só, me fez indefensavelmente comovido. No sonho, meu pai também aparecia e me alertava, não sei bem com que palavras, que as facultativas veiculadas pelo próprio governo propunham drogas inofensivas contra a doença. “Era tudo inofensivo”, lamentava. Seu rosto de barba grisalha me contemplava com serenidade e resignação. “Era tudo mentira.”

O lockdown se estenderia por vinte e quatro horas, contadas desde o dia anterior, até que outras providências ganhassem corpo – e uma delas, já anunciada bem cedo, era um toque de recolher por tempo indeterminado, o que poderia ser um sinal do anúncio, em breve, de algum preocupante estado de exceção. Relâmpagos pontuaram, com flashes monstruosos, essa noite escura, como se o próprio céu estivesse tirando fotos. Ninguém sabia ao certo o que poderia acontecer nas próximas horas, nos próximos dias.

Olhei pela janela, até onde podia enxergar, a cidade sob a chuva fina. A capital amanheceu deserta. Ouvia-se um sino, o badalar abafado de algum sino, talvez em outro bairro, que não se costumava ouvir com o ruído do tráfego em dias rotineiros, agora audível no silêncio geral. Lembrei-me do sepultamento de meu pai, do som característico do único sino em minha cidade, sempre tão próximo de tudo tão próximo, de pessoas próximas, tão caro a mim desde a infância. A primeira chuva sem meu pai. Sem a Cleo. Sem a minha confidente noturna. A primeira chuva de um novo tempo, imprevisível e perigoso. O sino desse dia deflagrava mansamente uma inspiração sóbria mas não contida. Um alerta sem fúria. Um recado contra o esquecimento. Continuava vivo, mesmo em períodos sombrios como esse, de sons agressivos e silêncios amedrontados. Agora uma chuva mais fina fazia tudo cinza e desbotado, sem sinal do sol. Nunca na vida eu vira algo parecido. A metrópole sob a capa de uma penumbra branca. Sem movimento. Sem vida. Esquadrinhada por aeros militares, também silenciosos. A cidade, talvez a nação toda, nos tons de uma aquarela esmaecida, imersa sob a densidade de uma quietude assustadora. A desfigurada aquarela do país.

Eu não conseguia parar de pensar na Cleo, e raciocinava além de minhas forças, buscando, com uma urgência nervosa, encontrar um meio de me informar sobre ela, de localizá-la, a todo custo. Cleo, minha querida, onde estará você agora? Não suporto imaginar que possa ter sofrido nas mãos desses canalhas, em poder dessa gente horrível! Muito menos que tenha sucumbido a eles, que talvez não esteja mais aqui, outra vítima dessa hipocrisia em larga escala, tóxica e criminosa. Não suporto imaginar a garota linda, a pessoa linda que você é, seus olhos lindos na escuridão.

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