Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 55

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Nessa noite, tentei falar com a Cleo. Talvez seu personal estivesse desativado. Ela não me respondeu. Li um pouco mais de um romance distópico que vinha me interessando havia certo tempo, leitura interrompida por um motivo ou outro, que pretendia terminar nos próximos dias, e adormeci.

Agendei a publicação do tópico para as cinco da manhã. Quando chegamos à redação da Facto, as mídias já estavam disparando para todos os lados. Os redatores de facs devem ter sido arrancados de suas camas por seus padrinhos e patrocinadores, deviam estar digitando de qualquer maneira em seus GPs, em seus personais, nus, de pijamas, de cuecas, de calcinhas… Meus colegas não me deixavam em paz. Aquilo parecia ser o ponto máximo de nossa publicidade. O número de leitores virtuais enlouqueceu. Os conveniados buscavam contato com a Heleninha, e a Alice atendia seu personal corporativo sem parar. O Edison não saiu de sua sala. Eu esperava que ele me trouxesse uma caixa de minha cerveja predileta ou, pelo menos, um uísque envelhecido, guardado em carvalho, para momentos históricos. Mas esse mínimo flagrante de meu bom humor mal cabia no frenesi geral, que parecia estabelecido de uma vez para o resto do dia.

A Diana me abraçou por trás, sem que eu me levantasse da cadeira. “Você arrasou com isso aí! Quero um autógrafo. Diz que vai ser meu amigo pra sempre.” Suas trancinhas verticais bateram de leve em meu pescoço. Os aromas que ela exalava eram definitivamente cativantes.

“Prometa você também.”

O Arthur e o Gabriel me apertaram; o Robinho me deu um empurrão. Todos festejavam as primeiras repercussões, mas pareciam não ter ainda atinado com a gravidade do que se iniciava ali, em um de nossos pontos de trabalho. Meus colegas não perguntavam muito. Eles viam aquilo como um grande trunfo para nosso periódico virtual, um grande lance que poderia impulsionar minha carreira e o produto de um intenso trabalho de pesquisa investigativa. O Tato e a Iara eram os únicos que não tinham falado comigo ainda. A Cleo estava atrasada. Tentei contato com ela. Sem resposta. Perguntei à Heleninha se sabia de alguma coisa.

“Home office.”

“De novo? Até quando? Você sabe?”

“Hummm… Não. Tenho que ver a escala. Deve emendar o final de semana. Fala com o Edison, pra confirmar.”

‘‘Não, pode deixar. Obrigado.”

A cada meia hora, eu tentava falar com a Cleo. Ela não respondia nem mesmo a fastposts. Personal desativado. Por que ela não me avisara sobre um segundo dia em home office? Teria sido decidido de última hora pelo nosso editor-chefe?

Às nove da manhã, em ponto, o marechal Aluísio Arcoverde, porta-voz da República, entrou em rede nacional. Lamentou “profundamente” a facultativa caluniosa e a irresponsabilidade do periódico Facto, lembrando que mesmo as facs mais criativas tinham de atender a certo grau de bom senso e restringir-se à noção de equilíbrio, quando o que se constatava, deploravelmente, era que o tópico em questão havia ultrapassado os limites consensuais da ética. Discurso de oito minutos. Noções genéricas, contradições. Tudo em tom austero e nervoso, transpirando urgência, como se tivesse de correr para mais uma reunião e como se nosso país estivesse sendo atacado por mísseis alienígenas.

Um dia muito agitado. Mídias inundadas por facs. Redes televisivas interrompendo programações e entrando no ar em caráter de urgência, mais ou menos a cada cinco minutos. Além do porta-voz ressentido, ninguém mais, representando o governo, se apresentou durante esse dia claro.

À noite, fui ao apartamento da Cleo. O recepcionista, logo à entrada do saguão, tentou comunicar-se com ela. Disse que não a tinha visto sair. Nem voltar. Nem nada. Porque esses funcionários tinham turnos alternativos, ela podia ter saído em algum horário fora do expediente deste que me atendia, e também voltado em outro horário, nas mesmas condições. Esse rapaz já me conhecia um pouco, por isso permitiu que eu subisse. Bati à porta do apartamento várias vezes – sem muito alarde, mas com paciência, chamando seu nome, de maneira que, se ela não estivesse desfalecida ou drogada, teria que ouvir.

Fui para casa, tentando, a cada minuto, comunicar-me com ela. Liguei a TV, ativei meu personal. O país inteiro em estado de choque. Outros países repercutiam o escândalo. Meu texto era citado, em partes e até integralmente, em diversos meios e já era, por si só, um roteiro robusto e facilitador para as equipes investigativas do Ministério Público e da Polícia Federal.

Assustei-me quando meu personal emitiu seu sinal sonoro característico, mensagem chegando pelo Afluente. Tinha muito a dizer à Cleo, e era claro que ela já devia estar sabendo de tudo. Toquei a tela. Era a Rose.

Não me chamou mais. Não gosta mais de mim?

Caretinha com um coraçãozinho e língua de fora. Apressei-me a responder.

Rose, querida, não me esqueço de você não. Estou tendo uns dias meio difíceis. Talvez eu fique um tempo sem te ver. Te amo.

Com ela, eu  sempre me punha à vontade para me confessar, descontrair, desabafar – mas não era a mesma coisa quando se tratava de algo tão subversivo e devastador como o meu processo gradual de redação meticulosa, de planejamento com prioridades, de ousadia subterrânea orientando cada passo desse mesmo processo. É claro que eu não poderia ter lhe contado nada sobre isso, embora sentisse com força uma vontade sincera de, sim, de lhe contar sim. Ela sabia o meu nome, o que eu fazia no trabalho, o que eu pensava das coisas… Afastado da Rose, ia também se diluindo minha intimidade com ela, a ponto de um dia eu atinar que nunca havia me esforçado para saber o seu nome, em respeito à sua atividade profissional. Mas, enfim, que importava o seu verdadeiro nome?

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