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Teus olhos na escuridão. 49
Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastador.
Na quarta-feira, em meio à tarde, a dona Conchinha surpreendeu-me com seu contato, ela que raramente me procurava. Meu pai estava morto.
“Quero ir com você, Marco.”
“Não, eu prefiro que não. Queria que você ficasse.” Toquei seu rosto com carinho, quando ninguém estava vendo. “Entenda que isso é algo meu, muito meu.”
“Tudo bem.”
“Você tem que ficar aqui, continuar trabalhando. Afinal, somos apenas colegas, lembra?”
“Tem razão. Melhor eu ficar mesmo. Pense em mim. Meu coração vai com você.”
Fiquei dois dias em nossa cidade, cuidando de tudo. Retive alguns objetos pessoais, não tinha como preservar mais do que aquilo. Dois amigos de meu pai, conhecidos meus, auxiliando a dona Conchinha, cuidaram do destino de móveis e eletrodomésticos, com minha aprovação. Depois que voltei para a capital, passaram a se comunicar diariamente comigo, tratando de tais procedimentos. Doei a maior parte do que havia lá para quem se interessasse e para ongs da região, até que a casa estivesse toda desocupada, enquanto eu cogitava colocá-la à venda. Em pouco mais de duas semanas, tudo tinha se ido.
A dona Conchinha, ainda abatida, conversava comigo com mais frequência.
“Depois que o Fução morreu, eu percebi que ele ficou muito mal. Ficou muito triste. Não parecia o Geraldo de antes. As coisas ficaram tristes pra ele.”
Ele era magro na juventude, vejo em fotos nossas de quando eu era pequeno. E não apenas engordou um pouco como parece ter se tornado mais robusto, com o tempo.
Quando desciam seu caixão ao túmulo da família, onde também repousavam os restos de minha mãe, eu me lembrei, abraçado à dona Conchinha, das brincadeiras de esconder que marcaram minha infância, e de como eu lhe pedia, amedrontado: “Papai Bode, cuida sempre de mim.”. Agora, ouvindo os ruídos simples, previsíveis, conhecidos e reais dos movimentos dos funcionários, posicionando o esquife na prateleira de alvenaria, enquanto algo em mim forçava à rendição da memória, à finalização de um ciclo, a um ponto demarcatório entre o que eu era e o que, hoje, intensamente, me sentia sendo, pensei com coragem: “Papai Bode… Finalmente nós nos perdemos.”.
Todas as pastas com recortes de jornais e anotações dele foram embora comigo. Guardei-as em meu pequeno escritório-biblioteca, bem perto de onde havia fixado o quadro com as fotos das mulheres que eu perscrutava em segredo. Ocorreu-me, casualmente, uma impressão momentânea de que aquelas coisas se associavam, que pertenciam a uma mesma dimensão de sombras. Queria (se possível, em companhia da Cleo) abrir, uma por uma, aquelas pastas, rever cuidadosamente o que eu já conhecia dos guardados. Ler, observar, relacionar casos importantes e pouco importantes com a realidade recente de nosso país. Queria reler tudo, agora sob outro foco, sob outra luz, que nos ajudasse talvez a vencer a escuridão remanescente dos crimes patrocinados, apadrinhados, protegidos, esquecidos.
O jornalzinho da região publicou uma matéria sobre o professor José Geraldo Ap. Muniz. Em uma das duas fotos, ele aparecia como jovem docente, em uma escola local. Recortei a publicação com cuidado e a acrescentei aos outros informes impressos que ele guardava.
Ao despedir-me da dona Conchinha, pedi que mantivesse contato com mais frequência, e me comprometia a fazer o mesmo. Eu a abracei com carinho.
“A senhora foi muito importante para ele, para nós. Ainda é, e sempre será, muito importante para mim. Sabe disso.”
Ela se emocionou e me reteve num abraço forte, sincero, movido por um sentimento profundo e contagiante que eu há muito não vivenciava.
“Vamos deixar a casa fechada por algum tempo. Depois, falo com a senhora. Preciso pensar melhor no que fazer.”
Foi ela quem o encontrou caído na sala, ao lado da mesa que usava para ler, manusear seu GP, pesquisar e pensar, muitas vezes com o Fução deitado por ali, companheiro incondicional. O seu Geraldo tinha apenas um ferimento leve na cabeça, decorrente da queda repentina. O atestado médico, apoiando o laudo pericial da polícia, concluía que ele fora vitimado por uma parada cardíaca. O GP estava ligado. Havia livros, jornais e papéis sobre a mesa. Ele sempre gostou de estudar.
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