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Teus olhos na escuridão. 38
Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastador.
Logo que cheguei ao trabalho, a tela maior, na lateral da redação, estava ativa. A Heleninha, com seus cabelos outra vez azuis, depois de uma temporada com a cor da franja do milho queimada, era a primeira coisa que se via, em destaque, em meio aos outros colegas, de alturas e compleições físicas diferentes, alguns de pé nos espaços angulosos dos dois lados da tela gigante, outros sentados bem em frente a ela. Cheguei mais perto, sem tirar os olhos dos noticiários.
“Bom dia, rei Arthur. Que foi isso hoje?”
O Gabriel me esbarrou por acidente, atravessando o pequeno espaço na diagonal, trazendo uma caneca de café. “Desculpa aí, Marco. Não te sujou não, fica tranquilo.”
Nada o fazia alterar um milímetro em suas expressões faciais, mas ele parecia agitado.
“Bom dia, Marquim”, respondeu o Arthur. “Não viu não? O governador foi preso.”
A Diana virou o rosto, me ouviu falando. Deslocou-se, saiu de onde estava, veio até mim, trancinhas longas oscilando enquanto andava. “Coisa incrível, coleguinha. O governador saiu algemado da mansão dele, logo cedo. E tudo isso foi você quem fez”, cochichou sorrindo, e me acertando em seguida com uma cotovelada lateral amigável. “Foi ou não foi?”
Eu quase tremia. Aquilo tudo era real. Minha informante não estava brincando. As coisas estavam de fato acontecendo, à nossa frente, em nosso dia, à luz clara da história em curso, e o estopim de todos aqueles desdobramentos havia sido o meu tópico: a única matéria, em toda a imprensa, a denunciar os crimes do governador e de seus asseclas.
Outros detidos eram burocratas, desconhecidos do grande público. Um deles falou rapidamente aos infocamps enquanto era conduzido à viatura da PF: alegou inocência, denunciou abuso de poder por parte dos federais e garantiu que iria processar o veículo de imprensa responsável por tamanha calúnia e por aquela “tremenda injustiça!”. (Ele não podia fazer isso: a Constituição não permitiria.) Eu observava seu rosto ante as câmeras. Ele e outros como ele eram pessoas tão comuns, sem o menor carisma, tão distantes de um homem inspirador e influente como o De Castro, que poderiam estar vendendo artigos esportivos ou compotas de doces, atrás de um balcão. Ele seguiu irritado, a passos rápidos, escoltado por um agente de ombros largos, rosto anguloso, e uma agente esbelta, cabelos lisos, em rabo de cavalo. Esses detidos passavam imediatamente a fazer parte dos noticiários, com seus nomes agora registrados nos textos, memorizados pelo grande público. Passavam a fazer parte do interesse e da memória coletivos. Pois é assim que funciona. Precisamos de um rosto. E de um código que o identifique – um nome. Até um minuto atrás, ignorávamos por completo a existência dessa pessoa-rosto (e nem poderia ser diferente). Mas agora é como se ela nos olhasse de frente. “Veja, eu sou este código. Este é o meu rosto, por algum tempo.”
“A Cleo não chegou ainda?”, perguntei à Diana.
“Não vi. Deve estar em casa, em home, não será não?”
Liguei para ela. Estava a caminho.
Deixei meu personal e minhas chaves ao lado de meu GP, e juntei-me a eles. Não apenas o governador, como também o deputado Fragoso, três empresários (um deles mais rico que seus colegas, conhecido nacionalmente por ostentar extravagâncias) também saíam algemados de suas residências luxuosas, algumas localizadas dentro de belos condomínios de alto nível. Alguns pontos da investigação foram revelados à imprensa: exatamente como eu os tinha comigo.
O Edison Chafik também acompanhava, quieto, os desdobramentos das reportagens televisivas. As imagens se repetiam desde as primeiras horas da manhã, enquanto a PF cumpria mandados de prisão, busca e apreensão. Estranhei que não falasse comigo. Ele sabia muito bem que a operação da Federal era uma consequência indireta daquele meu tópico sobre a reforma do Romualdo Século. Achei melhor não tocar no assunto e me mostrar interessado, como todos ali, pelas entrevistas pontuais de delegados e de outros responsáveis, durante a condução dos procedimentos. Um dos encarregados disse que estávamos diante de “um esquema complexo e gigantesco”, e que a Polícia Federal já previa novas operações, em sequência, para dar prosseguimento ao processo investigativo. Os advogados de defesa de alguns detidos repetiam a desgastante ladainha de que seu cliente iria provar sua inocência, de que sua prisão era totalmente desnecessária, além de ultrajante, pois ele tinha endereço fixo… – coisas assim.
A Cleo chegou, já sabia das novas. Deixou sua bolsa em seu ponto, veio até mim. (Na redação, éramos apenas colegas.) Ela se aproximou, sem me tocar, e me olhou com cara de contentamento, cochichando em seguida que estava orgulhosa de mim. Notou uma pequena mancha de café em minha camisa, lado direito do peito, arredondada, com um estreito escorrimento querendo descer, tudo já absorvido e seco.
“Parece que levou um tiro”, brincou. “Formato perfeito de um ferimento de bala, olha só.”
Estiquei parte da camisa, confirmei o respingo dramático de café, causado pelo inexpressivo e angelical midcom Gabriel.
“Desde quando você tem conhecimento de balística, de cadáveres…?”
“Cadáveres, eu disse isso? Você não imagina quantos filmes de crimes eu já vi. Mas se quiser saber mais”, disse ela aproveitando a distração geral, melhor dizendo, a concentração geral da equipe nas transmissões ao vivo, “vai lá em casa, vamos ver uns filmes. Vamos nos ver.”
“Mas olha, que filha da puta!”, exclamou o Robinho em voz alta, boquiaberto, logo após ouvir as primeiras acusações contra o governador do estado. “Que canalha enorme! Se eu pego um sujeito desses…”
Sem que ninguém estivesse vendo, toquei a mão da Cleo, enlaçando-a de leve à altura da coxa. “Vou sim. Pode ser hoje? Tenho vontade de te contar um monte de coisas.”
Ela apertou minha mão com força antes de soltá-la.
“Pode.”
Passado o impacto das notícias matinais, voltamos todos ao trabalho. Depois do almoço, no início da tarde, senti um cansaço atípico, sem explicação (mas que depois atribuí ao meu estado psicológico carregado e propenso a deflagar crises incipientes). Percebi que cochilava à frente de minha tela, curvando-me para a frente e despertando em sobressalto, em reação ao próprio movimento do corpo, que declinava, entorpecido.
Como demonstrado posteriormente, a prisão do governador era apenas o ponto de partida de uma série de investigações que avançavam, desvendando o quebra-cabeça bem arranjado por diversas organizações criminosas, de tamanhos e funções diferentes, como numa intersecção de círculos, tudo convergindo para os canteiros de obras do belo e gigantesco Romualdo Século.
Desde esse dia, passei a me preocupar com os desdobramentos daquelas operações policiais. E a ficar mais atento a certas coisas, por motivos muitas vezes insignificantes, sem que eu soubesse responder a mim mesmo (pensava em minha colaboradora anônima quase o tempo todo) a razão de eu me sentir assim. Mas era claro que a revelação de todo aquele escândalo de corrupção, chegando às mídias nacionais pela primeira vez, quando todos os envolvidos já haviam se safado e há muito tempo apenas contabilizavam o dinheiro acrescentado às suas fortunas pessoais, era um produto agourento de meu tópico-denúncia, publicado duas semanas antes. Eu tinha mesmo que pensar nisso com preocupação. Imaginava que, em algum momento próximo, algum agente da Polícia Federal viria até mim, como parte da rotina investigativa, para interrogar-me, por exemplo, sobre minhas fontes. Algum dos envolvidos, com sua rede própria de informantes, poderia ameaçar-me? Por enquanto, eu estava sozinho. Continuaria sozinho, o tempo que fosse. Não pretendia contar nada à Cleo nem ao meu pai. Com a mão apoiando o queixo, esforçando-me por prestar atenção ao que lia, adormeci pensando em tudo, consciente de que minha vida, a partir desse dia, não poderia mais ser a mesma, apesar dos escassos sinais que, na prática, nem me alcançavam. Adormeci, e respondi ao agente federal que essa mulher da escuridão era minha amiga e que eu jamais iria traí-la; depois, o rosto sério do primeiro-ministro, carregando uma nuvem sombria de significados, parecia murmurar que eu iria pagar caro por tudo aquilo. Foi um cochilo de alguns segundos, e eu despertei subitamente, suando frio, mais atento e alerta do que nunca. (Na semana seguinte, logo na segunda-feira, foram detidos um pastor evangélico, muito atuante em seus templos e em diversas comunidades, e alguns outros, desconhecidos do grande público: funcionários, assessores e terceirizados, cinco homens e uma mulher, com os quais ninguém se importou muito, mas que poderiam ser, por suposição, mais perigosos que os próprios líderes e mentores do esquema, dado seu potencial de conhecimento e, portanto, de delação.)
Saímos disfarçadamente, a Cleo e eu, ao fim da tarde. Combinamos de nos encontrar a duas quadras da redação, na plataforma da estação Anita do Amaral, e seguimos juntos no metrô.
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