Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 36

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Meu pai nos esperava, com sua velha caminhonete. Como era bom vê-lo ao sol! Rosto corado, cabelos brancos penteados para trás, formando ondas atrás das orelhas e pontas soltas na nuca; barba grisalha, cheia, tranquilo com a vida que escolhera levar, sem sair de nossa cidade, sua cidade, atravessando os dias de maneira simples, com sua precária aposentadoria de professor, conservando seu veículo terrestre, que já contava lá com seus quinze anos, uma modelo 2033, que já era usada quando ele a comprara, branca e azul-clara – cores fora de moda nas ofertas da indústria automobilística atual. Depois de tudo pelo que passamos, a morte de mamãe, sua própria agonia, a de meu pai, antes de se restabelecer da covid-19, sobrevivendo por mera sorte genética, nossas dificuldades financeiras, o esforço para pagar meus estudos na capital (“Papai Bode, cuida sempre de mim”, choramingava o menino), depois de ter enfrentado uma deficiência cardíaca, que o força a um tratamento permanente, depois disso e de outras, outras e outras tantas coisas, como era bom vê-lo ao sol!

Eu o abracei com força. “Papai Bode…”

“Marco, meu querido! Como é bom ter você…”

“Pai, essa é a minha amiga, colega da redação: Cleo.”

“Oi, seu Geraldo, muito prazer”, estendeu a mãozinha arredondada a ele, simpática. “O Marco sempre fala muito no senhor”, ela mentiu.

“Mas que bom que veio, menina! Ótimo mesmo! Vai gostar daqui, aposto. Nada daquela correria da cidade grande em que vocês se meteram.”

Assim que começamos a nos deslocar pela cidade, a primeira pauta (na linguagem não profissional: a primeira conversa, o primeiro assunto, a primeira falação…) foi a falta de chuvas, a baixa umidade do ar, a seca, típicas da temporada, por toda essa região do país.

“Todo ano é assim, pai. Nessa mesma época…”

“Mas desta vez está demorando muito! Além do normal. As previsões esticaram as primeiras chuvas para daqui a uns dois meses. Não lembro de uma seca tão comprida, não mesmo.”

Chegamos a nossa casa pequena, gramado aberto, sem muretas nem portão. Enquanto meu pai estacionava a caminhonete à direita do terreno, trecho que apresentava um levíssimo aclive enviesado, o Fução já aparecia por ali, vindo dos fundos, quase saltitando, enquanto descíamos do veículo e colocávamos em terra nossas malas: dificilmente se via um momento de tão sincera felicidade.

“Fução! Cuidado! São nossos convidados…”

Ele abraçou todos nós, um por um, subindo à altura de meu peito e quase à altura do rosto da Cleo. Latia e largava a língua para o lado, sorrindo feito louco.

Meu quarto tinha uma cama de solteiro. Meu pai deixou um colchonete no chão, onde me caberia passar a noite, deixando a cama para a ilustre visitante Cleo. Só tínhamos esses dois quartos de dormir. O escritório improvisado dele ficava na sala mesmo: estante de livros junto a duas paredes, formando um L, mesa, cadeira, GP logo à frente.

O Fução não saía de perto. Acompanhava tudo o que fazíamos, farejava qualquer coisa, sempre meio pateta, inconsequente e feliz.

“Você é lindo, viu?”, a Cleo com festinhas no alto de seu crânio.

Meu pai havia convidado a dona Conchinha para almoçar conosco. Aliás, ela levou uma sobremesa simples e maravilhosa: um curau tao saboroso que não dava mais vontade de comer nenhum outro doce na vida. (Levou também um pequeno vaso de flores, que a Cleo pegou nas mãos, olhou por todos os lados e classificou como charmosas.)

“Quanto tempo, Marco! Você não pode ficar dependendo de feriados pra vir aqui ver a gente”, sorriu a dona Conchinha olhando para todos. “Sentimos sua falta por aqui.” Em seguida, dirigindo-se à Cleo: “Não é?”.

A dona Conchinha ainda usava o “nós” como se estivessem juntos, ela e meu pai. O marido dela também havia morrido em decorrência da covid-19. À época, circulava um mito, reforçado por facultativas e por campanhas governamentais, de que essa doença só afetava os idosos e de que as cidades pequenas, como a nossa, não apresentavam condições físicas para a disseminação do vírus.

“Que delícia de curau!”, falei. “Milho da Indonésia, dona Conchinha?”

“Não. Da Jamaica. Ficou bom?”

Os olhos estreitos da dona Conchinha, especialmente quando ela sorria, me lembravam duas célebres atrizes hollywoodianas do século passado. Considerando sua idade (como também a idade de meu pai), ela estava em boa forma, sem tendência a extremos, pele bem tratada, apenas ostentando o decaimento próprio dos tempos humanos e seus ciclos: rugas em pontos específicos, alguma flacidez muscular, cabelos com raízes mais ralas. Nunca tive uma desavença com ela, nunca. E ela, declaradamente, me queria como a um filho, embora não pudesse, de forma alguma, tomar o lugar de minha mãe na dimensão de meus sonhos, em que minha genitora, minha ancestral imediata, existia em meio a névoas benfazejas, no reino inalcançável e impenetrável de minhas recordações perdidas.

Contei tudo sobre o meu pai e a dona Conchinha enquanto caminhava com a Cleo pelo bairro. Alguns me cumprimentavam, discretos, sem muito entusiasmo. Passamos por trechos de calçada irregulares, alguns que eram apenas extensões de modestos pátios com amoreiras, onde a terra se fazia roxa com o suco das frutas caídas. Mais à frente, uma fileira de acácias-amarelas seguia até um largo pavimentado com grandes tijolos, endereço de antigos galpões abandonados, que um dia serviram como depósitos de lenha e garagens de tratores, em frente a um longo tanque retangular rústico, que ainda funciona como bebedouro para cavalos. De uma dessas árvores, de ramagem mais baixa, a Cleo puxou uma flor, que não quis me dar. Fomos de mãos dadas até a praça principal da cidade, coisa de poucas quadras de nossa casa.

Sentamos num banco, sentindo a brisa fraca da estação seca. Trocamos carinhos.

“Difícil acreditar que estou aqui com você”, disse ela quase comovida. “Até uns dias atrás, nem sabia que esta cidade existia.”

“Uma das milhares e milhares de cidades que formam a grande população de nosso país. Em grande parte, gente simples, generosa, com tendência a acreditar, confiar… Meu pai, como alguns de seus pares, colegas professores, professoras, pode ser considerado um intelectual por aqui, por ter estudado mais do que outros.”

“Você pensa em sua mãe quando vem pra cá?”

“Claro que sim. Também em outros momentos, em qualquer lugar. Às vezes, me esqueço completamente dela. Umas poucas imagens rápidas, reais, são o que eu guardo com alguma certeza. O resto são imagens adaptadas, moldadas por minha imaginação, conforme alguém me conta alguma coisa sobre ela, sobre o tempo em que eu era criança. Ou até antes disso.”

“Você lembra do enterro, coisas assim?”

‘Não. Não me levaram. Fiquei com uns vizinhos, amigos da família. Eles me distraíram, tentando impedir que eu entristecesse. Era difícil entender claramente o que tinha acontecido. Mas eu entendia, do meu jeito.”

“Deve ter sido bem difícil para o seu pai. Ele também é filho único?”

“Tinha uma irmã mais velha, já falecida, morava em outro estado. Conheci pouco. No começo, meu pai contratou uma moça para cuidar de mim enquanto ele ficava fora, trabalhando, dois períodos de aulas. A Sol.”

“A Sol?”

“Se chamava Solange. Era como uma irmã mais velha. Mesmo assim, lembro que algumas vezes eu a abraçava chorando. Quando comecei a ir para a escola, ela continuou com a gente, como diarista.”

Contei a ela de como a Solange havia se casado e se mudado para uma fazenda; de como foram meus primeiros dias na escola pública; dos anos em que fui aluno de meu pai, de como eu o admirava ao vê-lo atuando, ensinando, sempre instigando os alunos a buscar o conhecimento, a ciência, a verdade; dos livros que ele me comprava por entretenimento e que me indicava como balizadores formativos, sempre acertando com os anseios de minha viva curiosidade; e por que eu o chamava de Papai Bode.

No escritório, que ficava na sala e era parte dela, meu pai nos mostrou suas pastas de cartolina cinzentas, de elásticos pretos, que lhes serviam a preservar inúmeros tópicos vistos por ele como relevantes: recortes de jornais, de revistas, sobre questões locais, notícias e facultativas restritas ao pequeno círculo urbano, desconhecidas pela grande imprensa, sem interesse para o grande público das mídias mais atuantes. Primeiro, a Cleo e eu nos sentamos perto dele, um de cada lado. Como eu já conhecia muita coisa ali, logo saí de perto, fiquei fumando, recostado a certa distância, com os pés num velho puff desbotado, em forma de cubo e com rodinhas, da cor do sofá.

“… era uma fazenda de trabalho escravo. Um dos rapazes explorados conseguiu fugir e denunciar os proprietários. Esses proprietários eram muito ricos e tinham amigos na polícia. Sabe como é, cidades pequenas, região rural, muitos se conhecem, formam alianças…”

“Incrível”, disse a Cleo, sinceramente interessada.

Tudo ali eram notícias do passado, reportagens que ele guardava havia décadas.

“Mesmo depois dessa denúncia, a fazenda continuou como era por um bom tempo. Falava-se em abuso infantil, orfandade, mortalidade sem registros… Até que uma fiscalização da secretaria do governo estadual acabou revelando tudo à imprensa, e a pressão da opinião pública foi suficiente para desmontar o esquema deles.”

“Que horrível. E aqui, no meio de tanta calma, de tanta tranquilidade, nesta mesma região… E esse rapaz, veio a público também?”

“Ele desapareceu. Nunca mais ouvimos falar nele. Ninguém sabe para onde foi, o que aconteceu…”

Pegou outra pasta, abriu-a, espalhou uns recortes de reportagens envelhecidos sobre a mesa.

“Veja isso…” Três jornalistas, fotos impressas, baixa definição, uma delas tão escura que não se poderia afirmar que aquele homem seria reconhecido fora daquela imagem. “Eram os infocamps mais conhecidos por aqui. Muito ativos, profissionais responsáveis, do tipo que amam a profissão, que a têm como tarefa suprema, como missão. Jamais se envolveram com facultativas. Este aqui morava na cidade próxima, Santa Eugênia do Livramento; os outros dois, aqui mesmo. Um deles, este de bigode, foi assassinado. Esse é o caso. Depois de quatro meses, conseguiram prender o assassino, em outro estado. Ele foi detido, mas não disse, de jeito nenhum, não disse nunca, quem era o mandante do crime. Depois de um ano e meio na cadeia, foi solto por um juiz que acatou certos argumentos da defesa etc.” Fez um gesto girando as mãos no ar. “Saiu pela porta da frente, como dizem. Fugiu em seguida, como eu já apostava. Nunca mais foi visto.”

“Pode até ter saído do país”, sugeriu a Cleo.

‘Pode. Mas não precisava. Ele estaria bem protegido aqui mesmo. Oficialmente, não devia mais nada à Justiça.” Recolheu os papéis, bateu-os na vertical sobre a mesa, enfiou-os de volta à pasta. “Bom, mas não vou eu ficar aqui escurecendo suas tardes com essas coisas sinistras.”

“Não, não, seu Geraldo”, disse ela sem piscar. “Eu gosto muito de saber. E isso que o senhor tem aí é um verdadeiro tesouro, fique sabendo. Eu gostaria de ver tudo, se for possível.”

Até a tarde do dia seguinte, ela acabou vendo tudo. Antes disso, no domingo de manhã, meu pai foi com a dona Conchinha comprar verduras, legumes e outros itens para o almoço, na Praça Triangular do Mercado.

“É uma feira?”, a Cleo quis saber.

“Uma feira permanente, um mercado que centraliza toda a produção da região.”

“Me leva pra conhecer isso aí?”

No dia seguinte, fomos todos à Praça Triangular do Mercado. A vegana de plantão andava fascinada com tanta coisa boa para suas dietas e fervendo de ideias para projetos culinários. Conversava com meu pai o tempo todo, perguntando coisas, meneando a cabeça ao absorver cada resposta. Vendo a Cleo a certa distância, falando e sorrindo com tanta naturalidade, em franca harmonia com meu pai, o vento leve fazendo que corrigisse os cabelos com uma só mão, criou-se, incidentalmente, um daqueles momentos especiais para mim, com forte propensão a fixar-se na memória, como um passarinho agarra firme o ramo em que acaba de pousar, e isso me fez pensar que eu a amava.

“Estou amando o seu pai. Amando! Ele é demais, ele é lindo. Em todos os sentidos.”

Eu estava na cozinha, enchendo de água uma garrafa de vidro esverdeado, controlando a torneirinha do filtro de cerâmica. “Ele trata você como uma princesa. Perdeu a noção. Vi como ele lhe tomava a mala e a mochila das mãos, quando chegamos. Um verdadeiro súdito.”

“Mas isso é cavalheirismo, ora. Nada de mais.”

Fiquei contente em constatar que ela estava vivendo bons momentos em nossa casa, em nossa cidade, fazendo-se espontânea, curiosa, encantada com tudo.

“Você vai ter problemas com seus músculos faciais, de tanto que sorri sem parar.”

“Bobo! Aprenda a ser feliz!”

Nessa mesma tarde, meu pai ofereceu levar-nos a conhecer umas comunidades que ele chamava “esquecidas”, às margens da cidade vizinha, Frutais do Sul, onde não chegava sequer energia elétrica. Eu já conhecia esses redutos, mas há muito tempo não me dispunha a ficar passeando por ali. A Cleo ficou perplexa, incomodada com o nível de miséria em que aquela gente vivia: pessoas em roupas encardidas, à frente de casebres que se faziam menos que barracos, taperas tão mal construídas que pareciam propensas a desmoronar com um pequeno empurrão, mal niveladas sobre terrenos irregulares de terra batida; crianças seminuas, sujas, doentes, uma delas brincando com o que seria sua mascote: um cãozinho esquelético que emprestava ao quadro um toque comovente de ingenuidade, de pureza, de uma realidade imperativa, genuína, sem desvios, sem disfarces, sem alarde.

A Cleo cobria a boca com a mão. “Como podem viver assim?”

Meu pai diminuía a velocidade, ia devagar; os moradores nos observavam de longe, apenas curiosos, quase inertes, em silêncio.

“Na temporada das chuvas, alguns trechos daqueles barrancos ali, logo acima, deslizam, viram uma torrente de lama, e a gente tem notícias de soterramentos por aqui, mortos e feridos…”

Ele compreendeu logo que a Cleo era do tipo que queria mesmo conhecer tudo, por isso nem perguntou se queríamos continuar ali ou se queríamos fazer qualquer outra coisa.

“Não é só aqui, em Frutais do Sul. Muitas das cidades da região escondem essas periferias, quase encobertas pelo mato alto, com gente totalmente desprovida de mínimas condições de uma vida digna. Nem isso, imagine. Uma sobrevivência difícil, no limite do possível.”

“Seu Geraldo, eu sei muito bem o que é a pobreza, a miséria, estudei isso. Fiz provas e trabalhos de estatística com esse tema. Fui com uma amiga infocamp fazer uma reportagem sobre isso uma vez, mas… o que eu não esperava é que houvesse comunidades assim, tão perto de cidades pequenas, quase no meio rural, onde parece tão mais simples ser absorvido pelos meios urbanos do que nas metrópoles.”

“Por isso eu quis que você conhecesse. Que visse esse lugar. Nesse caso aqui, a prefeitura não apresenta nenhum projeto, nenhuma ideia, nada de nada, para melhorar a vida dessa gente. Ninguém se importa.”

A caminhonete, ainda em baixa velocidade, seguiu uma curva da estrada de terra; os casebres se repetiam.

“É um absurdo não haver nenhum plano, nenhuma obra de infraestrutura, cuidados médicos básicos… A Constituição Federal de 2029 prevê isso, assistência a pessoas vulneráveis, vivendo nessas situações extremas.”

Finalmente, passamos por todo o povoado, voltamos à estrada vicinal e depois à principal, que era asfaltada, mas também estreita, irregular e mal sinalizada.

“Marco, eu queria chamar um aero e filmar isso, podemos? Fazer uma matéria…”

“Não tem aero por aqui. Só táxis terrestres. Não compensa para as controladoras. Temos que pedir aeros na cidade mais próxima, São Otero da Absolvição, que fica a uns cinquenta quilômetros. Podemos sim, ou alugar um drone. Mas eles custam mais caro.”

Ela estava inconformada. “Como é possível que nem nós, midcoms, tenhamos acesso a um mapeamento detalhado de todos esses pontos? Onde estão esses registros? Não foi isso que estudei nas aulas de Sociologia. Lembro muito bem. Eu saberia…”

Meu pai arriscou um palpite enquanto dirigia, agora mais apressadamente, fazendo vibrar a caminhonete sobre o asfalto ruim. “Olha, eu acompanho a imprensa, vez ou outra, quando saem matérias sobre a pobreza, a indigência e a marginalidade no país. Isso era importante para mim e para as minhas aulas. O que eu percebo é que muitas facultativas conseguem desviar qualquer tentativa de se explorar o tema a fundo. Mostram um país sempre melhor, ou menos pior, do que isso. Só não conseguem esconder as portentosas favelas das periferias das cidades grandes. Mas também é possível escrever sobre elas de um jeito que nós todos acabamos meio entorpecidos, preguiçosos, desinteressados.”

A Cleo voltou pensativa, inquieta. Ela já vinha estranhando, desde que chegara, o silêncio, a calma, a quietude do interior, em meio ao verde convidativo e admirável, distribuído em tons harmoniosos, das áreas rurais. Fiquei me perguntando como ela estaria assimilando aquelas contradições todas.

No dia seguinte, durante nosso modesto e maravilhoso café da manhã, a Cleo provocou meu pai para que lhe mostrasse mais coisas.

“Estou fascinada com tudo o que o senhor tem aí. Marco, por que você nunca levou isso para os seus tópicos, para a redação?”

“Porque”, respondi, cortando mais uma fatia de bolo de fubá, “são casos antigos, não estão mais na pauta.”

Ela se voltou para o meu pai. “Esse material seria muito útil para montar um livro.”

Logo estávamos outra vez com as pastas abertas sobre a mesa da sala-escritório. Configurava-se outro momento singular e gratificante, convergência de interesses, alegria de pesquisadores em meio a histórias tristes. Fiquei deitado torto no sofá, meio com sono ainda, já conhecia aquilo tudo. O Fução, depois de muito nos saudar, festejar e abocanhar e acariciar, finalmente sossegou, e se ajeitou ali perto, cabeça sobre as patas dianteiras.

“Veja esse caso…”, meu pai colocou os óculos, instalados a meia altura sobre o nariz. “Esse cacique estava hospedado em uma pensão, na capital, mas perdeu a hora estipulada para voltar. A proprietária não o deixou entrar, normas da casa. Ele não conhecia a cidade direito, estava meio perdido, e então se deitou no banco de um ponto de ônibus para passar a noite. Pouco mais tarde, cinco rapazes, que farreavam pela cidade, atearam fogo ao corpo do cacique, que morreu horas depois.”

“Que horror…”, disse ela, olhando as fotos nos recortes.

“Era um líder indígena importante. Mas, para esses rapazes brincalhões, talvez não significasse sequer uma pessoa.”

Ele passava à Cleo os recortes amarelados, envelhecidos, ela os contemplava, lia trechos, muito interessada e chocada com o episódio.

“Aqui tem algo sobre o julgamento dos assassinos…”, ela apontou.

“Sim. Oficialmente, foram condenados por homicídio, mas logo conseguiram liberdade condicional. Na prática, logo foram soltos. Eram de famílias influentes. Depois, prestaram concursos públicos, conseguiram bons cargos, e seguiram vida normal, como se nada tivesse acontecido. Tornaram-se homens respeitados.”

“Que absurdo! Nossas leis são muito estranhas.”

“Agora, veja estas facultativas, publicadas logo que o caso ganhou dimensão nacional. Esta primeira aqui diz que o cacique indígena estava armado e que ameaçou os rapazes, que apenas se defenderam. Este trecho aqui, olhe: “índio perigoso e feroz”. Esta outra já não denegria a vítima, mas afirmava que aquilo tudo era para ser apenas uma brincadeira, que os rapazes jogaram combustível sobre o cacique para acordá-lo, mas, por acidente, um deles acendeu um cigarro, e tudo o mais deu errado. A mais tosca delas, em minha opinião, a mais ridícula, a mais amadora (deve ter sido redigida às pressas), contava que o índio havia ateado fogo a si mesmo, como foi com aquele monge vietnamita, ao se autoimolar, porque estava descontente da vida e também em protesto contra a demarcação fraudulenta das terras de sua aldeia.”

“Não é possível que alguém tenha acreditado nisso…”

“Esta é de um periódico religioso. Diz aqui, deixa eu achar… que tudo está nas mãos de Deus, o destino da humanidade e cada uma de nossas vidas. E que as coisas, quando têm que acontecer, acontecem.”

“Isso é horrível”, murmurou a Cleo, sem piscar seus grandes olhos brilhantes.

“Essas facultativas, à época, dividiram a opinião pública. Muitos exigiam provas mais consistentes sobre o acontecido. Isso por pouco não influenciou a maioria dos membros do júri. Os delinquentes talvez tivessem sido inocentados. Foi por pouco.”

“Parece irreal. É como um pesadelo.”

“Agora, veja esta, um pouco mais leve, se é que podemos dizer assim. Este é um jornal aqui da região. Este rapaz da foto desmentia publicamente as facs que defendiam uma grande usina, facs negando que as atividades dessa usina constituíam crime ambiental.”

“E o que aconteceu?”

“O que aconteceu? Ninguém sabe o que aconteceu. Esse rapaz simplesmente sumiu. Nunca mais foi visto. Nem ele nem seu corpo. Ninguém sabe o que aconteceu. E a única coisa que ele fazia era combater as facs-propaganda da usina poluidora.”

A Cleo se entendia com meu pai como se já se conhecessem há muito tempo. Era evidente que ele se comprazia em lhe mostrar seu arquivo, rico em casos muito conhecidos e pouco conhecidos, pautados por algum elemento de injustiça latente e, quase sempre, envolvendo a ação eficaz e por vezes contundente das facultativas, em cada época. A certa altura, ela pousou sua mão delicada no braço peludo dele e ficou assim um bom tempo, enquanto continuava lendo e vendo tudo o que ele lhe disponibilizava  – como se carecesse de apoio e proteção.

O dia seguinte era o nosso último na cidade.

“Vocês têm mesmo que voltar hoje?”, perguntou a dona Conchinha, vendo que fechávamos as malas.

“Temos sim, dona Conchinha. Amanhã é dia normal de trabalho. E aqui eu não tenho o suficiente para ficar em home office.”

Eu até conseguiria uma maneira de trabalhar em home office, sim, e a Cleo também. Mas o fato era que eu tinha um compromisso completamente inexplicável, sorrateiro e clandestino, após a meia-noite do dia seguinte. Era disso que eu não queria me privar de jeito nenhum. E ninguém no mundo, nem mesmo a princesa Cleo, poderia saber de uma coisa excitante, instigante e arrepiante como essa.

Na sala, aproximei-me do vão de uma estante em que meu pai guardava seus arquivos histórico-jornalísticos, uma sequência de cartolinas idênticas, empilhadas na horizontal. Ao lado, algumas pastas sem uso (ainda).

“Pai, posso levar uma dessas pastas cinza-claras aqui?”

A Cleo olhou sem entender, mas não disse nada. (Na viagem de volta, perguntou por que eu queria aquela simples pasta de cartolina, de elásticos pretos, e eu inventei uma razão sentimental mais ou menos convincente.)

“Claro. Pegue quantas quiser.”

Eu só queria uma. Peguei uma. Levei uma. Previa, gratificado, o que guardaria nela.

A Cleo seguiu, com a dona Conchinha, para o gramado aberto da frente, levando sua bagagem até a caminhonete, com o Fução saltitando ao redor e tentando lamber o que pudesse dela. Quando ficou sozinho comigo, meu pai cochichou: “Trate muito bem a sua namorada, ouviu?”.

“Eu disse isso, que era minha namorada?”

“Você não pode perder essa menina de vista. Ouviu? Ela é maravilhosa.”

Sorri da maneira carinhosa como ele me aconselhava. Abracei forte meu querido pai. “Papai Bode… Torça sempre por mim.”

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