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Teus olhos na escuridão. 35
Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastador.
Na redação, perguntei à Cleo o que ela iria fazer no feriado. Muito discreta, falando em voz baixa enquanto tomávamos café na copa, ela sorriu maliciosamente e disse que pretendia ficar o maior tempo possível com o namorado – supostamente eu.
“Não quer não?”, perguntou, quase radiante.
“Quero sim. E tenho uma proposta.”
Ela havia criado uma maneira de se comunicar comigo quanto aos nossos encontros, mesmo que não houvesse ninguém por perto: “Será que vamos folhear livros esta noite?”.
Minha proposta era: “Eu tinha combinado de ver meu pai no feriado, ficar uns dias em minha cidade. Por que não vem comigo?”.
“Sério? Está me convidando?”
“Ficaríamos mais tempo juntos lá do que aqui, na capital. Necessariamente”, brinquei.
“Eu adoraria conhecer seu pai!”
“Quem conhece meu pai, conhece também o Fução.”
“O Fução?”
“Um cachorro que amamos e que ama a gente com a maior transparência do mundo.”
“Que lindo…”
“Você conhece Formiga d’Oeste?”
Claro que ela não conhecia.
Falei com meu pai nessa mesma noite. Um minuto de ele estar sozinho diante da tela, e todos os minutos seguintes com o Fução dançando ao redor.
“Vou levar uma amiga.”
“Mas claro, venham sim. Que ótimo!”
Deu para ver que ele tinha lágrimas nos olhos. Uma amiga que viaja comigo para conhecer meu pai, na visão de um homem experiente como ele, nunca é simplesmente uma amiga. Eu não quis inventar muito, deixei que pensasse como quisesse. E não tive paciência para ficar me expondo quanto a isso. Sabia que ele esperava de mim um netinho, mais cedo ou mais tarde. Como todos os pais de gente adulta. Mas isso, por enquanto, era outro mundo, outra dimensão. Uma ilha distante do litoral de meu tempo agora.
“Combinado, Papai Bode. Devemos chegar ao amanhecer. No feriado mesmo.”
“Ouviu isso, Fução? Vamos ter ótimas companhias.”
Minha companheira de viagem se ofereceu para pagar um aero coletivo, voo noturno de seis lugares. Eu recusei, não queria usar o dinheiro dela. Fomos de ônibus. Um veículo terrestre da Viação Transpectro: silencioso, seguro, veloz, horários de saída e de chegada precisamente cumpridos. A Cleo me disse que não conhecia especificações técnicas de mecânica, engenharia e similares (e nem se interessava por isso), mas sabia que o índice de acidentes com um veículo daqueles, ao longo de muitos anos, era praticamente zero. Apenas porque estávamos nesse assunto (e trocando carinhos), lembrei a ela que, se aquele ônibus se desviasse alguns centímetros de sua programação original, por exemplo, ao vibrar após uma curva fechada, o sistema todo corrigiria sua trajetória de modo automático, daí porque a velocidade não precisava sofrer alterações, além do que isso já era bem estabelecido para trechos em curva ou em linha reta. Ela se aconchegou ao meu ombro, depois dessa explanação magnífica.
Mostrei à Cleo os livros que havia comprado, que estava levando para o meu pai: um romance de uma escritora nigeriana; um livro-reportagem sobre a resistência armada em nosso país, no século 20 (tempo em que se nomeavam os séculos com letras romanas); e um livro de contos de um criativo, sensível escritor português. Ela os manuseava com fascínio.
“Também quero!”, sorriu, e atacou-me com as pontas dos dedos, tentando minha rendição por meio de cócegas.
Fizemos uma viagem confortável, tranquila, ouvindo música e dormindo, conduzidos com segurança, criaturas quase hibernando, em condição irresistível de redução metabólica, pela recém-restaurada Via Expressa Norte-Oeste.
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