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Teus olhos na escuridão. 30
Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastador.
Na manhã seguinte, que era, oficialmente falando, a mesma manhã, colegas ainda comentavam a repercussão do tópico sobre o Romualdo Século. O Edison não me procurou em nenhum momento. Eu não precisava dele, não precisava de seus elogios (nem de suas broncas), mas achei curioso que ele não falasse mais no assunto, um assunto que ainda era criticado e debatido por outras muitas mídias nacionais.
Agora, cabe à Polícia Federal prosseguir com as investigações que, a julgar pelo que foi apreendido hoje e pelo primeiro depoimento de dois detidos de maneira preventiva, um aqui mesmo, no nosso estado, outro na região Centro-Oeste, prometem se estender por um bom tempo, até que se identifiquem todos os envolvidos. O delegado regional fala em montar uma força-tarefa […]
Antes do horário de almoço, o Tato publicou uma facultativa sobre a banda podre da polícia e sobre como era fácil, para eles, plantar provas na casa de alguém, por exemplo, do coronel Meira Bocca. Ele teve o cuidado de citar alguns casos escandalosos dessa tal banda pobre nas últimas três décadas. Focou nisso com muita ênfase. O texto era primoroso. O Edison saiu de sua sala e o elogiou em público. Todos nós o aplaudimos.
“Está valendo nosso chá esta semana?”
“Oi, Cleo. Sim. Valendo.”
“Vou hipnotizar você para que me conte como conseguiu essas novidades todas.”
“Ah, isso? Então vou ler com muita atenção os rótulos de seus chás enfeitiçados antes de tomar qualquer um deles.”
No apartamento dela, ajudando na cozinha, com os croissants, enquanto eu lia com atenção os rótulos de seus chás enfeitiçados antes de tomar qualquer um deles, ela me surpreendeu.
“Não vou fazer chá. Olha isso.” Tirou da geladeira uma garrafa de vinho tinto.
“Cleo!” Peguei a garrafa. Marca das mais caras. Importado.
“Você gosta?”
“Gosto sim. Mas… não deveria se preocupar. A que devo toda essa honra?”
“Deixa eu gastar um pouco do meu dinheiro, ok? Foram só uns signos virtuais a mais. Alguma coisa contra?”
“Que é isso, Cleo?”, brinquei. “Um encontro romântico, colega?”
“Um encontro entre amigos, colega. Não é vinho branco. Com um amigo que me inspira muito e me ajuda a entender cada vez mais o meu trabalho.”
A Cleo parecia bem arrumada, para quem apenas iria ficar em casa, recebendo um amigo: camiseta preta, jaquetinha jeans aberta, azul-clara, com grandes botões metálicos (a Rose usava algo parecido dias atrás, com exceção dos botões, que eram pequenos e discretos), saia também azul-clara e também jeans, botinhas pretas de cadarço.
“Você fica bem com essa roupa. Gosto do estilo.”
“Brigada”, sorriu. “Umas roupas meio velhas já.”
Não pareciam. Para mim, eram novas. Ela tentava disfarçar sua confortável condição socioeconômica, a de quem talvez pudesse comprar roupas todos os dias.
Na sala, tornei a falar sobre a frequência, forte ou fraca, das facultativas, como também da ausência flagrante delas em certos casos. Contei à Cleo sobre os redatores remunerados informalmente, a serviço de grandes interesses, como se fosse uma hipótese minha.
“Marco! Já pensou? De onde tirou a ideia? Seria escandaloso.”
“Fiquei tentando me lembrar de algum livro que tivesse algo sobre isso. Deve ter, em algum lugar. Alguém já deve ter percebido isso.”
“Pode ter percebido e se calado. Por indiferença. Por conveniência.”
Levou-me à sua charmosa biblioteca. Entramos portando nossas taças de vinho. Ela separava os autores nacionais dos estrangeiros. E os estrangeiros, por nacionalidade – o que seria, no geral, a mesma coisa. Mostrou-me um setor, uma prateleira quase ao nível do assoalho: explicou que ali estavam todos os seus livros técnicos. Li alguns títulos. Separamos um e outro, que poderiam tratar com mais propriedade do outrora polêmico fenômeno das facultativas.
“Pode ter certeza de que vou folhear todos eles assim que tiver uma oportunidade. Quero ter certeza de que ninguém escreveu sobre isso ainda.”
“E também as redes: artigos, resenhas, sinopses…”
“E também as redes, sim.”
“Algum trabalho acadêmico em andamento ou não publicado oficialmente… Se não encontrarmos nada, em parte alguma, pode ser mesmo que não passe de uma coincidência. E a minha hipótese cairá por terra. Sem nenhum ruído.”
“De qualquer forma, vale a pena observar, acompanhar isso, fazer um levantamento dessa frequência. Uma hipótese muito interessante, eu acho.”
No fundo, eu tinha certeza de que não era uma coincidência. Minha informante apenas dissera que não tinha como provar. Pela maneira como ela havia me comunicado essa ideia, a partir de uma fonte bem informada, e corroborando minhas observações, que já absorviam facilmente o desequilíbrio entre estes e aqueles elementos motivadores de facultativas, tudo aquilo fazia muito sentido.
“Mas nós não vamos trabalhar hoje, certo?”, ela sorriu.
“Não. Não mesmo. Falou por mim.”
“Ah, eu tinha separado uns trechos pra te mostrar”, disse ela animada, como lembrando de alguma coisa a tempo. Deixou sua taça sobre a mesinha, ao lado dos livros que havia selecionado e nos quais havia marcado umas páginas específicas. “Escuta isso…”
Eu girava lentamente meu vinho na taça, tranquilo e amigável, enquanto a ouvia ler.
“‘À noite, sonhei com o menino que eu era. Sonhei com os barcos de papel que eu fazia e punha a flutuar sobre as águas das ruas. Depois, repassaram-me tais memórias distantes com singela e intrigante nitidez. Meus barquinhos mal construídos eram tragados por leves correntezas ou naufragavam pela metade, virando de lado, perdendo seu porte original e sua dignidade, como se não tivessem controle sobre si mesmos. Eu não desistia, mesmo que isso me entristecesse. Construía outros, e não contava a ninguém. Só mais tarde compreendi que meus barcos naufragavam porque eu tinha vergonha de meus sonhos.’”
Fechou o livro.
“Esse trecho sempre me encanta. Às vezes, me comove. Fico pensando de que sonhos meus ainda sinto alguma vergonha.”
“Você realmente tem um faro para a literatura. Onde encontrou isso?”
Mostrou-me o livro e o autor.
“E então, qual seria o seu sonho?”
Não me agradam essas perguntas de pré-jovens: vagas, misturando objetivos práticos com idealizações futuras.
“Meu sonho? Que importa? Essas coisas vão mudando com o tempo.”
“Oh, isso é meio triste. Eu acho.”
“Não é não.”
Ela pegou outro livro.
“Escuta isso. ‘Depois que você tropeça, a natureza humana parte para cima de você.’ Acho que eu estava me sentindo assim, uns dias atrás. Não me lembro por quê. Alguma coisa nova, que foi ganhando força em minha vida.”
“Lembro vagamente de ter lido algo assim em… Salinger ou em Henry Miller”, arrisquei.
Ela me mostrou o livro de frente: Virginia Woolf.
“Uma escritora extraordinária, não acha? Com uma visão de raio-x das pessoas. Percebia tudo! Podia ler seus pensamentos, quase isso. Assim como Dostoíévski parecia ter o poder de atravessar paredes.”
“Sim, são extraordinários, ele e ela”, eu disse, quase terminando meu vinho. “Temos que preservar isso tudo, essas obras, esses textos, esses nossos semelhantes atentos do passado, que deixaram um registro de suas impressões, porque, quem sabe, no futuro, algum ditador medíocre e voluntarioso encontre uma maneira de corromper os meios digitais e transformar textos literários em textos inofensivos, assim como fazem as facultativas com as notícias reais hoje.”
“Queria ser como ela”, confessou de maneira simples, sem qualquer sinal de inveja. “E também queria que alguns outros pudessem ler o que eu penso. Isso facilitaria as coisas.”
“Não, isso não seria nada bom.”
“Espera aqui. Vou lá pegar mais vinho.” Saiu contorcendo a cintura, uma curva antes da porta, botinhas pisando firme, e continuava falando de onde eu não podia vê-la. “Prometemos não falar de trabalho, lembra?”
“Prometemos? Não me lembro.”
Voltou com a garrafa. Encheu nossas taças, tomou um gole da sua e, desta vez, não a deixou sobre a mesinha enquanto pegava outro livro e o abria na passagem pretendida. Segurava o exemplar aberto, estreitando também a taça de vinho bem ao lado, um dos dedos que a prendiam soltando-se lateralmente, servindo para manter a página ímpar aberta. Eu observava seu rosto, os olhos baixos, percorrendo as linhas, o conjunto de suas feições concentradas. Sua voz feminina, clara e quase eloquente, como se lesse diante de uma turma de colegas, à vista da professora atenta, tornava-a outra vez uma estudante fazendo um bom trabalho, mostrando suas qualidades, sem hesitações durante a leitura. Era um momento especial de sua personalidade, nunca exposto em meio à rotina do trabalho. Ela parecia se sentir segura, escolhendo seu próprio ritmo, fazia-se mais convincente, mais admirável, mais bonita.
“Achei, aqui… ‘Penso agora no que aprendi na escola, como foi útil. Lembro-me de que os senhores feudais levavam para si a noiva do vassalo, exercendo assim seu direito de nobre, porque o outro não podia com sua força bruta e com sua violência. Mas veja-se como evoluiu o mundo: sem lançar mão de qualquer gesto violento, apenas entre inúmeras sutilezas, palavras soltas e atitudes quase imperceptíveis ao longo da vida, fizeram-me sempre acreditar que eu não valia o ar que respirava, que eu não tinha qualquer direito a conquistar uma bela jovem, e roubaram-me assim, impunemente e à luz da bondade, a noiva que jamais tive.’ Não são subverdades autoinfligidas?” Ergueu os olhos grandes, esperando minha resposta.
“A noiva que jamais tive…”, eu repeti, em voz baixa.
Ela deixou o livro sobre a mesinha, junto a outros. Bebeu de sua taça.
“Talvez sejam. Talvez eu não tenha acreditado muito em mim quando ainda estava com a Alex.”
“Quem?”
“A Alexandra. Já lhe falei dela. Aquela da Tracy, a gatinha de olhos cristalinos.”
“Ah, é. Falou sim. Era sua noiva?”
“Não, não. Isso durou pouco tempo. Mas eu tinha mesmo uma impressão quase permanente de que não a merecia. Por que não? Que estranho…”
“Muita coisa acontece assim com a gente.”
“Eu a conheci no Prime Time, bebendo no balcão. Como nesses filmes óbvios que se repetem aos montes na TV e infestam os streamings, sabe? Começou assim, com uma conversinha forçada e idiota. Mas é que a gente já se mede de alto a baixo, já pressente as possibilidades. E a conversinha acaba sendo o de menos nessa história toda. Meu namoro com ela me fez pensar, mais tarde, naqueles olhos claros de sua pet, que depois mudavam, se transmudavam, ficavam curiosamente mais escuros. Nosso relacionamento estava ficando com a cara dos olhos daquela gatinha: claro e transparente no começo; depois, escurecendo aos poucos: severo, rancoroso… Ah, mas que bobagem você está me fazendo falar.”
“Não, não. Interessante dizer assim. Associar assim. Gostei, de verdade. É poético.”
“Pode ser. Mas não é importante. Por esses dias, eu fiquei pensando em como somos distraídos de tantas coisas que podem ser importantes. Isso das facultativas, por exemplo. E hoje me pergunto o que me fez distrair da Alex. Até um dia ficar sem ela. Não sei ao certo como não me percebi a tempo, como não atinei a tempo com certas coisas. Com ela.”
“Ah, mas não fique se culpando, isso não adianta. Mas é bom, sim, tentar entender as nossas… distrações. Do que você acha que pode estar distraído hoje?”
“Hoje?”
“Hoje, no presente. No presente.”
“Não sei. Eu… não sei. Talvez, porque certas coisas passam distraídas por nós é que não as percebemos mesmo. E os nossos olhos se acostumam à escuridão.”
“Olha só! Que lindo… Esse vinho chileno está despertando um poeta.”
“Isso não é meu.” Peguei de volta o livro cujo trecho a Cleo havia acabado de ler. Mas ela não me deixou continuar. Tomou-me o livro das mãos, sem fazer força, voltou-se uns passos e o devolveu ao seu vão próprio, na prateleira. Voltou ao ponto onde estava, bem à minha frente.
“Depois te empresto esse livro.”
“Me empresta?”
“Claro.”
“Tudo bem.”
“Deixa eu ver você sem óculos?”
“O quê? Ah, não. Mas que bobeira…”
“Deixa…”
Movi a cabeça negativamente, como se concordasse e dissesse: “Que bobagem, mas, já que insiste, tudo bem.”, brincando um jogo de pré-jovens. Antes que eu os tocasse, ela retirou-me os óculos da cara, sorrindo como uma menina arteira.
“Lindos, seus olhos. Olha isso…”
“Sou míope”, expliquei, constrangido. “Quando tiro os óculos, meus olhos se retraem e eu…”
Não terminei a frase, e já estava perdido em meio a um beijo superficial e decidido, que logo acabou. Ela recuou um pouco, hesitante, como se avaliasse minha reação ou se preparasse para pedir desculpas em silêncio. Alisei seus cabelos, afastei uma mecha fina que acabava de lhe cair ao longo do rosto. Passei as mãos nas laterais de sua cabeça, como se fizesse grudar seus cabelos em sua pele, carinho próprio dos que agradam uma mascote. Pensei bem no que iria lhe dizer em seguida, e foi isto o que lhe disse em seguida: “Você… está pensando no seu namorado?”. Ela me abraçou carinhosamente, eu também a apertei contra mim com carinho e força, minhas mãos espalmadas em suas costas, depois alisando seus ombros arredondados. Afundou a cabeça entre meu pescoço e meu peito, pressionando-me como se procurasse proteção e abrigo. Ficamos assim, um pouco. Quietos. Recíprocos. Ela deslizou o rosto sobre o meu, e nossas bocas passaram a se conhecer, com lentidão e força própria, como se quisessem firmar sua consistência, seu toque singular, selando essa impressão forte em cada um de nós, a ser guardada nas páginas de outras memórias.
“Não tenho namorado…”, disse ela mordendo de leve meu lábio superior. “Faz tempo que eu estou sozinha.”
Minha vida parecia ter tomado gosto por revelações. A Cleo afastou o rosto, ficou me olhando de frente, como se me avaliasse com ternura – e como se a orientasse alguma superioridade técnica na condução dos mais recentes (e bem-sucedidos) passos de dança. Sorriu, como uma criança que acaba de pregar uma peça, seus olhos grandes e lacrimejantes quase faiscando com o resultado, o triunfo de uma menina travessa, de uma jogadora vitoriosa, somando pontos favoráveis. Ela me conduziu, me dominou, aliás, em seu próprio território, dentro de seus domínios, sem me seduzir.
“Então… esse seu namorado é uma espécie de fac da sua vida.”
Levei um tapa carinhoso, mas forte. “Ah, para, para!”, disse ela, melodiosa, à moda de uma italiana cantarolando, e apertou-me com força, nervosa e feliz. Beijou-me delicada, depois fortemente. Deliciosamente.
“Você mentiu pra mim”, eu em tom de brincadeira.
“Por uma boa causa. Não acha?”
Nós dois tremíamos um pouco. Voltamos à sala, para comer e beber. Agora estávamos juntos no mesmo sofá, como namorados. Entre mordidas, mordiscagens e goles de vinho, também nos mordíamos e nos experimentávamos.
“Quando beijo você desse jeito”, ela e sua memória de livros, “me sinto como o Buck, ouvindo um chamado da floresta.”
“Que linda. Que a nossa coragem ganhe força. E cresça. E que possamos ser menos distraídos com certas coisas, que podem ser importantes em nossas vidas.”
Vinho tinto, brinde.
“Ao nosso sangue.”
Quando nos despedimos, à porta, fiz um último carinho em seu rosto, em seus cabelos.
“Eu não queria que ninguém da redação soubesse disso. Pelo menos, por enquanto. Pode ser?”
Ela sorriu de boca fechada, acenou rapidamente com a cabeça. “Um-hum.”
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