Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 29

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Enfim, a noite chegava. Uma noite sem atrativos, em meio à estação mais seca do ano. Quando muito, um vento carregando folhas caídas, ciscos e poeira, arriscava-se a nos incomodar.

“Leu meu artigo?”, perguntei na penumbra.

“Sim. Muito satisfeita com o resultado. Você soube trabalhar os pontos principais. Sem ficar só na enumeração. Apresentando o quebra-cabeça de maneira didática. Facilitando a vida dos investigadores.”

“Fico contente em ouvir isso, vindo de você.”

Aromas remanescentes: café, frutas cítricas e alguma coisa mentolada, tudo muito suave e ao fundo do ar quieto.

“Eu já conhecia suas qualidades.”

Lá fora, o som abrupto de alguma coisa caindo, como uma tampa de lixeira, artes dos gatos de plantão, provavelmente, rendeu-me um susto, que logo passou.

“Aproveitando, queria lhe perguntar mais uma vez: como chegou até mim?”

Seria o silêncio seguinte um sinal de hesitação? Da outra vez, ela havia me atirado umas palavras genéricas, que não significavam nada. Poderia ter dito, agora, em um instante, de maneira simples, como teria chegado até mim, respondendo à minha pergunta, também simples. Por que não?

“Não se importe com isso.”

Murmúrio de refrigeradores adormecidos.

“Achei que você pudesse, ao menos, me esclarecer isso. Afinal, nós já temos uma relação de confiança. Além do mais…”

“O que você me trouxe hoje?”

Inútil insistir. Tirei os cigarros do bolso, joguei-lhe o maço, fazendo-o cair na diagonal sobre sua mesa, com força mal calculada – quase errei a própria mesa.

“Um Concert. Você disse que gostava.”

“Gosto.” Recolheu o maço com agilidade, fazendo-o sumir na escuridão.

Mesmo naquele silêncio imperioso, confiável e contínuo, ela conseguia produzir um mínimo de ruídos ao manusear um objeto qualquer, no caso, o maço de Concert. Ficou muda de novo, e eu continuei: “Nesses últimos dias, andei muito ansioso e inquieto com essa repercussão toda.”.

“Dias maravilhosos. Você está fazendo um bem a milhões de pessoas. De contribuintes. De gente que ainda sonha com justiça.”

“Devo tudo a você, sem dúvida.”

Ela acendeu um cigarro.

“O mérito do texto é seu. Mas isso não me importa. Já conhecia sua capacidade como redator. É o seu trabalho. Nosso trabalho tem que ser bem feito.”

“Sim, é isso. Aposto que você também seja uma dessas pessoas que sempre fez tudo bem feito. Deve ter sido uma ótima aluna. Dedicada, responsável…”

“Isso tudo não vale mais nada”, soltando uma porção de fumaça.

Na noite ao redor, a sirene de um aero policial indicava sua trajetória próxima, rumo a outro ponto qualquer da cidade.

“Mas eu tenho que lhe agradecer, de qualquer maneira. Pensei em lhe trazer flores.”

“Não faça isso.”

Disfarcei, desviei sutilmente o rosto, e meu olho esquerdo detectou um mínimo clarão desenhado no escuro por um pequeno círculo vermelho: ela acabava de puxar outra tragada. Esperança insistente de conseguir ver um instante de seu rosto. Mas isso só seria possível quando ela acendesse o cigarro, com o clarão característico de um isqueiro de grafite, desses mais comuns, com bateria solar. Aprontei-me para ouvir, anotar, registrar, seguir seu ditado. Papéis à frente, envelope de lado, bloco de rascunhos: já parecia minha mesa de trabalho, de um escritório especial, limpo, minimalista.

“Queria comentar algo”, eu disse, “sobre esses últimos dias, antes de começar. Se não se importa.”

“Não me importo.”

“Os federais levaram GPs da casa do governador, você viu? E outros objetos. Até um cofre. Pelo jeito, foi uma devassa. Será que encontraram aquele caderno, aquela caderneta com as anotações?”

“Não. Essa peça-chave, altamente comprometedora, ficava com o deputado Fragoso Filho. De outro partido, mas homem de confiança do governador. A essa altura, ele já deve ter destruído tudo o que precisava destruir.”

“Pensei nisso quando vi um cofre sendo carregado por dois agentes fortões.”

“Um cofre, eu vi também. O governador está arruinado. Não conseguirá sair dessa. Se não for pelas fraudes na reconstrução do Estádio, será por outras patifarias, outras fontes de dinheiro sujo. Ele é um grande bandido. Até as milícias enviam uma mensalidade às contas dele, no exterior.”

“Que vida… Ele sempre demonstrou autoconfiança, sempre falou bem em palanques, convincente, com um bom timing entre os aplausos e as retomadas discursivas. Votei nele no primeiro mandato. Sempre me inspirou segurança, tranquilidade…”

“Até agora.”

“Sim. Pois é. Vamos ver como esse mestre da oratória vai se comportar nesse novo contexto. Olha, eu queria compartilhar algo mais com você. Uma outra coisa. que percebi há pouco tempo. Recentemente, observei que não se produzem facultativas sobre certos temas. Já reparou nisso?”

“Por exemplo…”

“O nascimento da bebê imperial, a filha da duquesa. Que só foi trazida a público depois de um mês de nascida, pouco mais de um mês. Não encontrei uma só fac sobre essa pauta.”

Fumaça outra vez: lenta, frágil, misturando-se à pausa que ela mesma se permitia.

“Não posso confirmar o que vou lhe dizer. Porque ouvi de uma colega, faz um tempo. E não tenho como provar.”

Esperei. Quase gritei para que ela me contasse logo. E me preparava, com toda firmeza, com toda a minha “frieza de astronauta”, para não desmaiar em seguida.

“Todo grande veículo de imprensa (e não só os grandes, mas com certeza os grandes) tem pelo menos um redator de facultativas em sua redação.”

“Ah, sim. Claro. Sabemos disso. Até mais de um. Esses maiores, gigantes da mídia, trabalham com equipes de redatores de facs.”

“Acontece que pelo menos um deles (e pode ser um ou mais de um) é pago, informalmente, por agentes do governo ou por representantes de grandes corporações. Pago além de seu salário normal, entende? Pago por fora. Sem recibos. Pacto entre pares.”

“Pago para quê?”

“Escrever sobre o que eles querem. Sobre o que lhes sirva, o que os proteja. Minimizando os danos potenciais de alguma notícia comprometedora envolvendo suas administrações, suas empresas. Corporações, empresas mistas, associados. Como se emitissem um alerta, à vista de qualquer elemento desestabilizador. Propaganda invertida. Subverdades funcionais. Talvez, lá na sua redação, também funcione alguém assim. Observe.”

Fiquei pensando no que acabara de ouvir. Por que não considerávamos, nem mesmo como um boato, algo dessa dimensão enquanto éramos estudantes?

“O Diário da Nação tem pelo menos dois infiltrados, pelo que ouvi. Duas mulheres.”

“O Diário da Nação? Um dos maiores jornais do país!”

“Sim. Por que a surpresa? Mas, sobre o que acabei de lhe dizer, não tenho como provar nada.”

Fiquei sem graça outra vez. Ela estava se soltando mais comigo. Alguns encontros antes, ela nem diria isso, nem responderia: não diria nada.

“Todo grande veículo de imprensa, como eu disse, tem um desses: recebendo normalmente como colaborador contratado e recebendo, clandestinamente, um extra, com recursos públicos. São como agentes treinados. Funcionam como distratores das informações reais. Funcionam muito bem, como você sabe. E assim se mantém a ordem harmoniosa da confederação. Da democracia parlamentarista. E do Mundo Livre.”

Foi a primeira vez que percebi um breve momento de humor em sua entonação, decorrente da ironia declarada em suas últimas palavras. Mesmo assim, não tinha certeza.

“Então… Faz sentido eu pensar que as facs não sejam apenas aleatórias. Planejadas para entreter ou polemizar. Que sejam mais enfáticas e em maior número quando se trata de… Sim. Entendi. Eu lhe falei sobre isso outro dia, lembra? Pensando assim, as coisas se encaixam. Quando estamos perto da verdade, as coisas se encaixam. Se tornam claras.”

“Pode ser. Faz sentido. Mas não tenho como provar nada. Minha fonte me pareceu confiável: uma colega que se tornou uma amiga. Muito competente e bem informada.”

A fumacinha de seu cigarro passeava por ali. As coisas iam se esclarecendo dentro de mim.

“Temos como falar com ela? Confirmar isso?”

“Eu tenho. Ela não mora mais aqui. Está em outro país.”

Levei a mão à testa, inclinei um pouco a cabeça, quase tomado por microinstantes de memória involuntária, sentindo-me enriquecido e grato com mais essa hipótese, que fazia todo sentido. Ela continuou, por sua conta.

“Um ponto importante nisso tudo é que não conseguiremos nos livrar dos tolos. São eles a maior força. Nada dessas facultativas e distorções e fantasias teriam razão de ser se não fosse pelos tolos. Se alguém afirmar que a Lua é feita de queijo, uma pessoa sensata, com base mínima de racionalidade, imediatamente, no deflagar natural de suas sinapses, rejeitará a ideia. Pode mesmo achá-la engraçada ou poética ou potencialmente boa para uma história mágica. No outro extremo, uma pessoa que concorda sinceramente com a ideia de que a Lua possa ser feita de queijo é uma pessoa arruinada. Talvez sem chances de resgate. Que só possa ser tratada com medicamentos fortes. Procedimentos psiquiátricos. Mas o indivíduo que põe em dúvida a afirmação de que a Lua seja feita de queijo, este é um tolo. Compreende? E esses são os mais perigosos.”

Ouvi com atenção, também achei meio engraçado. E também compreendi o potencial nocivo das fantasias, quando postas como verdades. As palavras dela fluíram atravessadas pelo que seria um sorriso invisível, como normalmente detectamos em quem fala conosco do outro lado de um personal, sem mostrar o rosto.

“Fico pensando em como não percebemos tantas coisas. Pensei nisso por acaso, uns dias atrás. Nunca nos foi ensinado na universidade que isso poderia ser real, sem a intencionalidade das facs, nunca nenhum professor propôs essa possibilidade, ainda que informalmente. Nem entre nós, colegas de estudos, surgiam conversas desse tipo. E éramos todos livres. E somos todos livres. Como pode ser? Será que era, de alguma forma, algo planejado? Que não queriam que ninguém soubesse?”

Ela me deu um minuto inteiro de silêncio reflexivo.

“Talvez não fosse intencional. Só da parte de alguns. Mas esses poucos não poderiam evitar tudo.”

“Então, o que você acha que acontece? Por que nós nos distraímos tanto?”

Eu quase vi seu cigarro inteiro, quase vi seus dedos, sua mão, à margem da penumbra. “Nossos olhos se acostumam à escuridão”, ela disse.

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