Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 27

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Preparei o tópico sobre o Estádio, estava pronto. Reli cada linha com muita atenção. Ênfase nas informações mais relevantes. Texto articulado, ligando um nome a uma situação, uma situação a outra, uma tramoia a seu mentor, tentáculos da hierarquia, em maior e menor escala, e a possível razão de isso tudo ter sido desconsiderado pelo Ministério Público. Anexei o texto a um fastpost endereçado à Heleninha, por formalidade e com fins de registro, mas pedi que viesse falar comigo pessoalmente antes de passá-lo ao Edison.

“Quero fazer uma surpresa, ele vai gostar”, expliquei. “E acho que você também.”

Eu iria publicar o tópico por minha conta, assumindo os riscos, sem que o Edison Chafik o aprovasse.

Ela sorriu, cúmplice. “Ele não rejeitaria um texto seu por nada nesse mundo. Pode deixar.”

Na sexta-feira, quando a primeira claridade previsível do dia se armou sobre a capital, o tópico já apresentava um número crescente de leitores, em progressão geométrica, até que eu perdesse a noção de quanto o mostrador havia acelerado em meio minuto, em um minuto, em meia hora. Eu havia agendado sua publicação para as quatro da manhã, e tudo funcionou muito bem. Amanhecia, e a Facto ganhava um forte suprimento de ar, com os ventos crescentes provocados pela agitação de uma legião afoita de leitores invisíveis. Uma bomba caía sobre o governador, prodigalizando estilhaços para todos de seu entorno.

Os colegas chegavam à redação; alguns já acompanhando o efeito de meu tópico por diversos meios, desde que despertaram para o novo dia, em suas casas. Outros, chegando ao trabalho, inteiravam-se da repercussão de meu texto enquanto ela acontecia, em tempo real, logo que se instalavam em seus pontos.

Facultativas pipocavam por toda parte.

O periódico semanal Facto, conhecido por dedicar-se a destruir a reputação das pessoas e a denegrir plataformas de administração governamental, publicou, nesta sexta-feira, um artigo fantasioso a respeito das obras de reestruturação do Estádio Romualdo Século, do qual todos nós, compatriotas, nos orgulhamos tanto […]

A Diana veio me ver. “Que tópico foda, colega! Que que é isso?! Essa organização criminosa nojenta estava aí o tempo todo, roubando o nosso dinheiro com essa reforma do Estádio, esses parasitas escrotos, e ninguém fez nada!”

“Vamos ver se acontece de alguém fazer algo agora, não é?”

“Cara, ficou muito bom! Um arraso!”

Todos os colegas, de uma maneira ou de outra, vieram falar comigo, espantados com o que liam. Afinal, eu não era um jornalista infocamp, um repórter investigativo. O Edison saiu de sua sala, parou ao meu lado, uns papéis na mão.

“Esse tópico está dando o que falar, não é, Marco?”

Ele e sua voz rascante e forte, sobrancelhas grossas, óculos retangulares, cabelos curtos, repartidos de lado, sempre bem vestido. Eu, que gosto de camisas, sinto às vezes uma invejazinha de algumas das camisas dele, particularmente uma tipo jeans, de cor cáqui, que eu procurei para comprar, mas não encontrei.

“Desculpe ter publicado assim. Queria fazer uma surpresa.”

Ele raramente fazia uma brincadeira, mas assimilava as nossas com certa generosidade, estreitando os olhos como se risse em silêncio, compreendendo que nossas brincadeiras faziam parte da necessidade de convivência.

“Ótimo texto”, ele disse, sem entusiasmo, sem um tapinha motivador em minhas costas, como esperado. “Isso está levando a Facto a um foco de atenção nacional, pelo que já me passaram. Parabéns. Só me avise da próxima vez. Não gostaria de ser pego de surpresa, ok?”

“Ok.”

Intitulei esse tópico sobre o superfaturamento nas obras do Estádio “Fora das regras do jogo”. Isso também rendeu elogios, mas, a meu ver, sem muita razão de ser: estavam todos mais ou menos entusiasmados com o resultado geral.

Era a vez de a Cleo vir me cumprimentar ou me elogiar ou me perguntar sobre minha fonte ou me abraçar com força ou desmaiar à minha frente, fascinada e abatida pela emoção. Perguntou sobre a fonte.

“Quando vai me ensinar como se faz isso?”

“Pode ter certeza de que um dia vou. Por enquanto, quero muito observar os desdobramentos disso tudo aí.”

“Você está em alta hoje, todos os números disparando. Estou orgulhosa do meu amigo.”

Havia também umas matérias baseadas em vintages. Tínhamos um acompanhamento semanal das efemérides. Observávamos os calendários, as datas mais propícias para publicar estes que seriam tópicos revisando o passado, porém, com o mesmo poder de uma novidade impactante. Agora que se comemoravam os 80 anos do lançamento do chamado White album, o Tato pesquisou sobre o tema e escreveu um desses tópicos brilhantes, muito elogiado pelo Edison, um texto de uns dez ou doze parágrafos, revelando que os Beatles plagiavam suas melhores canções de uma banda sul-africana chamada The originals, que, por ser pouco prestigiada em seu próprio país e não ter apoio de uma gravadora de renome, acabou esquecida e sem recursos financeiros para empreender um processo judicial, à altura, contra a banda britânica, que ficou impune.

Eu não me lembrava disso, não sabia que o Tato estava preparando uma facultativa tão boa, achei que algum de nós fosse apenas redigir um artigo qualquer, focado no evento em si mesmo, o aniversário do lançamento do álbum, só isso, e o meu tópico agourento acabou ofuscando imediatamente todo o esforço de meu talentoso colega. Ele me chamou para um café.

“Bem informado, hein, colega? Impressionante. Onde você conseguiu essa coisa toda?”

Eu tinha de estar preparado para responder a isso, a questionamentos desse tipo. E estava.

“Pesquisei muito. Encontrei informações avulsas que pareciam se encaixar, formar um padrão lógico e…”

“Sei”, disse ele neutro, cético e retórico.

“Você não imagina o que a gente encontra nas redes…”

“Ah, não, não imagino”, sorriu, quase sarcástico. “Está entrando para as facs agora?”

“Claro que não. Não tenho talento para inventar muito. Isso é com você. Você é o mestre.”

Ele pareceu envaidecido, mas muito cauteloso. Por que ironizou, sugerindo que meu tópico-bomba pudesse ser uma facultativa? Ele sabia que não era. Deteve um sorriso quase no fim, olhando-me de frente, de um jeito fixo. Sua imobilidade, quase a de uma ameaçadora figura de cera, só enfatizava sua agitação interna: irritada, contida, febril. Evitei seu olhar quase odiento e seu sorriso derivando ao macabro. Tomei mais café, desloquei-me uns passos por ali, olhei pelo vidro da janela, um vento cheio de ciscos lá fora, com isso tentando evitar o assunto, evitar suas perguntas, que previsivelmente pareciam inevitáveis. Mas ele se calou. Tocou-me no ombro e saiu da copa, com sua agilidade costumeira. Com sua inteligência, já devia estar calculando que eu não lhe daria detalhes de minha suposta pesquisa, muito menos que lhe revelaria minha improvável, inusitada, inestimável fonte.

Uma facultativa publicada pela Factor, periódico sediado no Paraguai, sugere que a restauração do Estádio Ronaldo tenha se valido de um complicado esquema de corrupção que teria privilegiado nomes importantes na esfera da administração municipal e estadual, além de […]

Ainda pela manhã, o governador fez uma aparição pública, refutando qualquer insinuação de seu envolvimento no suposto esquema fraudulento. De mau humor, criticou os redatores de facultativas, algo que parecia impensável vindo de uma autoridade, já que as facultativas representam, como todos sabem, a prova de que a democracia atingiu seu ápice histórico, permitindo a era em que vivemos, do tão decantado Mundo Livre.

A Facto, uma das menos representativas revistas virtuais do país, acaba de publicar, dispersos em um tópico duvidoso, dados comprometedores sobre um possível superfaturamento das obras no novo estádio da capital […]

Um dos símbolos nacionais mais queridos por nosso povo e admirado pelos estrangeiros teve hoje sua imagem manchada por graves insinuações de corrupção quando da realização das reformas necessárias para sua restauração. Os encarregados da obra já desmentiram os boatos e se colocaram à disposição para apresentar toda a documentação eventualmente requerida. Tais acusações, sem qualquer fundamento, foram publicadas pelo Facto, um periódico sensacionalista que […]

Eu não teria paciência para ficar lendo mais do que uma ou outra facultativa, mesmo reconhecendo-me muito curioso sobre a repercussão de algo que me envolvia diretamente. Dessa vez, meu tédio e meu nojo corriam à frente de minha conhecida curiosidade.

“Era isso?”, a Heleninha, feliz comigo. “Olha, que surpresa louca! Viu o número de leitores até agora? Não para de subir. Isso vai atrair mais patrocinadores, escuta só. Nossa revista está em todas as mídias, nunca pensei…”

À tarde, o bispo Falchi Ruas entrou em rede nacional. Pediu aos fiéis uma corrente de orações pela união de nosso povo e pela harmonia em nosso país, lembrando que ainda existiam “por aí” indivíduos de má índole, influenciados por forças malignas, sempre prontos a disseminar conflitos e desavenças. Ele era um grande ator. Mas quando as câmeras nos davam seu rosto muito próximo, via-se que deixava transparecer traços mínimos de preocupante nervosismo.

O Arthur veio por trás de onde eu estava e me deu um susto.

“Ei! Quer me matar do coração?”

“Que isso, rapaz? Que bomba foi essa? Maravilhoso seu texto! Todo mundo só fala nisso. Sexta-feira, bom pra comemorar, hein? Bater uma sinuca hoje à noite?”

“Vamos sim, meu rei.”

Nenhum representante do governo federal se manifestou, embora houvesse, no texto, uma menção clara a um deles. Devem ser estratégias. Ganhar tempo. Talvez no dia seguinte, após uma saraivada de facultativas bem arranjadas, todo o impacto da denúncia quedasse amortecido – e logo esquecido.

Não foi o que aconteceu. O dia seguinte, um sábado (e praticamente todo o final de semana), foi tomado por uma espécie de agitação que crescia e se multiplicava. Um programa de TV convocou professores universitários e cientistas políticos para comentar o incidente.

Falei com meu pai no sábado à tarde. Ele estava orgulhoso de mim.

“Como é, Papai Bode? Ficou sabendo da minha travessura?”

“Marco, ninguém falou seu nome, eu sei. Mas como partia da redação da Facto, eu concluí, com minha infalível intuição de pai, que só podia ter sido você.”

“Desde quando você tem intuição para essas coisas?”, eu ri.

O Fução subiu sobre as pernas dele. Meu pai segurou sua cabeça, como costumava fazer, balançando-a para um lado e outro. Abraçaram-se, afetuosamente. Momento de grande harmonia entre os animais.

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