Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 21

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Preparei três tipos de queijo, umas torradas pequenas, temperadas, creme de ricota, homus tahine e pensei em lhe oferecer apenas cerveja para beber, antecipando que ela iria, educadinha, aceitar.

Abri a porta para a Cleo. Era a primeira vez que eu a via de saia, uma saia preta que lhe chegava aos joelhos. Blusa azul-real, de botões. Sapatilhas também pretas, com listrinhas muito finas, de um amarelo esmaecido. Gargantilha, pulseiras. Brincos com pingentes, bem destacados. Por mais distraído que eu fosse em relação a moda, tendências e coisas assim, era fácil perceber que ela se vestia com artigos de qualidade, talvez de grife. Estava bem arrumada, como se fosse…

“… a algum lugar especial.”

“Nada, só me arrumei um pouco. Obrigada assim mesmo.”

Deixou a bolsa sobre o sofá da sala. Seguiu-me até a cozinha, como pedi.

“Me ajude a levar isso. Comprei umas Blue-Fs, que eu sei que você não vai recusar, certo?”

“Certo”, sorriu, carregando uma bandeja com os tais queijos.

“Mas, primeiro, venha dar uma olhada no resto. Não é um palacete como aquele em que você mora (tapa em meu braço), mas serve bem para o que eu tenho. E também… Venha aqui, ao escritório… Tenho muito menos livros do que você, como pode ver.”

Fiquei pálido de repente. Não cheguei a tremer, mas devo ter ficado paralisado. Senti a saliva endurecer. Pisquei várias vezes os olhos, seguidamente. Lá estavam, na vertical, expostas em um espaço de parede, as mulheres na cartolina.

“Que que é isso, Marco?”, perguntou em voz baixa, tentando disfarçar seu estranhamento.

Um grande, enorme arrependimento e uma merecida autocondenação por não ter tido o cuidado de esconder aquilo. Na verdade, isso nem me havia passado pela cabeça.

“Eu… É uma pesquisa que estou fazendo.”

Nada convincente, dava para ver. Ela ficou pensativa e sutilmente afastou um passo. Coisa de instinto, mas sem alarde.

“Pesquisa? Assim, colando coisas na parede? Você não usa arquivos virtuais? Não usa o PopFinder? E é sobre o quê?”

Perto dela, um cheirinho gostoso de alguma essência floral, abrindo-me extensões verdes fora da cidade, mas não sei por que minha imaginação acaba assim, fazendo o que bem entende, no meio de uma situação qualquer. Enquanto isso, ela suspeitava daquela galeria, que podia muito bem ser uma sinistra coleção de “troféus”.

“Por enquanto, vou manter suspense. Quero que fique curiosa mesmo. Mas fica prometido de eu contar tudo quando estiver mais perto da… conclusão da pesquisa.”

Ela ainda contemplava as mulheres, seguindo com os olhos toda a sequência de fileiras verticais e horizontais.

“Me diga que você não é um serial killer…”

“O quê? Serial killer?”, eu ri – mas ri com certo nervosismo, e isso soou horrível. “Como aqueles loucos do século 20? Ainda existe isso?”

“Claro que existe. Cada vez mais raros, eu sei, por causa dos métodos Osborn-Warner, mas… sempre sobra algum em algum lugar.”

“Sei. Você avisou o seu namorado que iria vir pra cá? Porque, sabe, se você desaparecer…”

“Ai, credo, Marco! Chega dessa conversa.”

“Avisou ou não?”

“Não. Ele não tem que me controlar. Nada disso. Não tem que saber tudo da minha vida. Não quero falar disso, chega.”

“Certo. Olhe, não repare nos livros empilhados por aqui, eles acabam ficando por muito tempo fora das estantes, e eu me esqueço de guardá-los. E mesmo esses, nas estantes, não são tão bem classificados como os seus. Mais ou menos, mas não muito. Por causa disso, nem sempre encontro o que quero, de primeira. Tenho que fuçar um pouco mais do que o previsto.”

“Imagine. Não me importo. Gosto do que estou vendo.”

“Foi Dürrenmatt, se não me engano, quem escreveu que, diante de tantas coisas sempre em ordem, seria bom que criássemos uma espécie de ilha particular de desordem, ainda que secretamente.”

“Ahn… Interessante.”

“A civilização é muito pesada. Precisamos nos dar um pouco de indisciplina. Desobediência, desordem. Bom, mas isso já é por minha conta.”

Ela ficou calada, sem sorrir. Seus olhos se moviam.

“Você me surpreende com certas coisas. Não fala comigo assim, na redação. Não vai me dar nenhuma pista sobre a sua coleção de fotos de mulheres?”

Em vez de responder, peguei rapidamente um dos livros que pretendia mostrar-lhe. Coletânea de Tchekhov. Só que eu deveria supor que ela já conhecesse (e houvesse lido muito) esses autores todos. Talvez não conhecesse aquela edição, pelo menos. De qualquer forma, eu precisava e queria mostrar-lhe algo.

“E também Maupassant”, disse ela, seguindo o fluxo da conversa. “Para mim, os maiores contistas do mundo, antes de alguns modernos.”

“Concordo. Eles eram a um tempo sensíveis, cruéis e realistas. Morreram jovens, para os padrões de hoje. Idades próximas. Sabe… Quando eu lia Tchekhov, acontecia de eu sonhar com umas ruas específicas, entradas de vilas, datchas afastadas das capitais…”

“Mesmo? Que lindo.”

“E Maupassant me fazia sonhar com uma França verde, mesmo com os tons de cinza dos ambientes urbanos. Não sei por quê.”

“Interessante. Um dia quero te contar uns sonhos também.”

“Não hoje?”

“Não hoje. Você dizia que… alguns modernos mereciam ser listados ao lado deles.”

“Eu disse? Não sei. Foi você que… Ah, e falando em loucos…”

“Não estamos falando em loucos…”

“… você já leu esse?”

De cabeça baixa, tomou o livro nas mãos. David Foster Wallace.

“Já ouvi falar dele. Aquele que eu estava procurando. Pós-Modernismo, não é?”

“Já inserido no Pluralismo. Mas isso é o que menos importa. Até hoje, Marcel Proust desafia classificações, e talvez isso seja o melhor de tudo. Esse americano aí é realista e às vezes absurdo. Cruel, verdadeiro e, em parte, fantasioso. Um estilo absolutamente próprio, no máximo com traços de Joyce.”

“Na linguagem, você diz?”

“Mais na estrutura. Não linear, descompromissada e… Bom, você disse que estava procurando esse livro, lembra? Quer levar pra ler?”

Ela passou as páginas por seus olhos cintilantes, com aquele movimento especial de folhear de certa maneira um calhamaço. “Quero.”

“Você tinha me falado dele, lembra? “Você tinha me falado dele, lembra? Que estava procurando esse autor, esse romance. Deu umas pistas, e… eu adivinhei.”

“Ah, é mesmo! Lembro. E eu tinha dado poucas pistas, foi meio na sorte, não foi?”

“O fato é que… eu adivinhei.”

Aproveitei para sorrir, e ela já estava mordiscando de volta seu humor de antes. Esse “eu adivinhei” soou como sinal de alegria infantil, de um jeito meio cantado. Dois passos à frente, peguei outro livro, bem mais estreito. Girei sobre mim mesmo.

“E este? Conhece?”

Imediatamente ela o reconheceu. “Ah, esse? Jack London? Eu lia isso quando era menina.”

“Não, não, espere aí…”, falei, erguendo as mãos no ar, como se fosse parar o trânsito, enquanto ela segurava, desajeitadamente, os dois livros. “O chamado selvagem? Cleo, eu não duvido nada de sua capacidade, de sua precocidade, não mesmo, sabe disso. Mas o que esse autor expõe aí é um tanto… um tanto cruel. De um realismo arrepiante.”

“Eu não disse que não. Disse que lia isso quando era menina. Li outros dois dele na pré-juventude.”

“Sim, mas… será que você entendeu mesmo a brutalidade dessas relações, quando os atores e agentes da narrativa se encontram longe da civilização?”

Ela apreciava a capa do livro, um belo cão semelhante a um huskie, uivando aos céus, e pareceu indecisa.

“Acho que preciso reler alguns livros. Este, por exemplo. Eu absorvia tudo isso como uma grande aventura, mais ou menos isso. Não me importava muito com certas passagens, que podiam mesmo ser cruéis, como você diz.”

A mim, parecia impossível não ver isso. Eram os pontos que mais me incomodavam, que mais despertavam minha atenção em uma narrativa como aquela.

“Talvez seja a nossa memória seletiva”, arrisquei. “Ou mesmo a nossa atividade neuronal seletiva, enquanto vivenciamos as coisas, no presente. Talvez a gente empurre para um cantinho escondido certas coisas incômodas, as coisas mais hostis em relação à nossa sensibilidade.”

“Você… tem facilidade para… para… Bom, não sei. Nem sabemos se é isso mesmo, se é assim que funciona.”

“Por isso eu disse talvez. Pegue os livros que quiser. Vem, vamos pra sala comer alguma coisa.”

Ficamos passando ricota e homus nas torradas, cortando queijos, dividindo Blue-F, servida em copos bonitinhos, procedimento que só ressurge raramente, quando de alguma visita ao meu apartamento, pois, quando estou sozinho, e isso é quase sempre, bebo no bico, direto da garrafa. Um espaço entre nós, no mesmo sofá, permitia que movimentássemos com liberdade as mãos e os braços, em busca de comida e bebida, logo à frente, na mesinha de centro. Mesmo assim, em intervalos de um ou dois minutos, acontecia de nos esbarrarmos, em função da confluência de interesses: um em busca de ricota, outra em busca de homus; ou alongando-se pelas torradinhas ou inclinando-se para arrematar a cerveja. Continuamos falando de leituras e da alegria de guardar livros em carne e osso. Em certo momento, ela tornou a elogiar aquele meu artigo sobre o impiedoso vulcão europeu. Enquanto eu bebia, agora mais descontraído, entre ruídos e suspiros de prazer, vez por outra um estalo de língua, sem qualquer preocupação com as ditas boas maneiras, e enquanto ela mastigava alguma coisa, com a delicadeza de uma nobre, meus olhos se voltavam cautelosamente para suas pernas roliças, de pele bem cuidada, que eu admirava pela primeira vez.

“Cleo, você já reparou que ninguém escreve facultativas sobre uma pauta como essa do vulcão?”

Ela se virou um pouco, posicionando-se mais frontalmente, joelhos apontados para mim.

“Como assim? Facultativas podem ser sobre qualquer pauta, qualquer assunto.”

Essa minha colega só estava ali, comigo, porque gostávamos de livros. E porque ela, sendo nova no trabalho, recém-formada (e bem mais jovem que eu), parecia ver em mim uma espécie de tutor, alguém em quem acreditava e cuja visão de mundo chamava sua atenção de aspirante a profissional midcom, sua fértil curiosidade de aprendiz. Acomodada como estava, no extremo do sofá, um pouco inclinada para a frente para me ouvir (e para comer também), parecia mais baixa, mais robusta, porém, em nenhum momento, e em nenhuma posição, demonstrava distrair-se de sua elegância, que parecia fluir naturalmente, como parte de seus costumes, de seus gestos. Ela estava ali porque confiava em mim. Certo que, há alguns poucos minutos, levantara a suspeita de que eu pudesse ser um psicopata assassino, o que não pareceu alterar sua naturalidade em minha presença em todos os momentos posteriores.

“Não, não. Observe. Podem ser sobre qualquer assunto, sim. Mas não são. Os redatores de facs só se interessam por matérias que envolvem o poder econômico ou político. Qualquer coisa que se relacione a isso. Por que não escrevem sobre vulcões? Por que não desmentem o que eu publiquei?”

“Não sei, Marco. Nunca pensei nisso. Você é que deve saber.”

Fui pegar mais cerveja, falando pelo caminho, enquanto me deslocava.

“É algo que devemos considerar. Parece que tudo é muito democrático, civilizado, aceito, assimilado…” Voltei à sala, enchi seu copo antes de me sentar. “E como ficam nosso senso crítico, nossa indignação, nossos ímpetos de rebeldia, nosso… chamado selvagem?”

“Ora”, ela sorriu, depois de um gole da Blue-F gelada. “Se não são necessários…”

“Como foi que deixamos de ser combativos como o Buck? Como foi que nosso mundo saiu disso e chegou a esse ápice de relações justas e sustentáveis?”

Ela ficou em silêncio, mastigando torradinhas. Eu devia estar complicando as coisas, sem necessidade, já que nos propúnhamos, principalmente, a falar sobre livros.

“Pense naquele dia de grande comoção, quando perseguiram os assassinos da menina…”

“Que horror, que dia terrível… Nem quero lembrar. Fiquei muito tensa. Fiquei chocada.”

“E indignada?”, ergui meu copo como se o apontasse para ela, à altura de seu peito.

“Claro que sim.”

“Quase imediatamente, começaram a pipocar as facs. Lembra? Questionando a culpa dos rapazes. Negando sua proximidade com políticos importantes. Como é possível? As fotos eram comprometedoras e reais! No dia da perseguição, o país inteiro acompanhou tudo. Se aquele sujeito era inocente, por que estava se escondendo e fugindo? Ridículo.”

“É o papel de quem redige as facs…”

“As facultativas são ficções. São feitas para confundir, criar polêmica. Até mesmo sobre temas consolidados, que nem deixam margem a polêmicas.”

“Sim, mas é isso mesmo. Ou não seriam facultativas. Foi assim que aprendemos na universidade, não foi? São elas que inspiram as pessoas a questionar tudo e ajudam a romper o tédio diário das notícias comuns.”

Tomei quase toda a cerveja de meu copo, de uma vez. Como já havia esvaziado não sabia quantos copos, minhas perguntas soavam pouco claras, mal embasadas, não encontrando muito ao que se agarrarem, escorregando por meus dedos, com a umidade gelada que envolvia a parte externa de meu copo de vidro.

“Mas não se trata disso, propriamente.” Fiquei girando o copo sobre a mesinha. “Ainda estou procurando me expressar melhor. Ainda estou tentando me entender melhor também, sobre isso.”

“Eu entendo assim mesmo.”

“Por que o mundo não seria melhor sem as facs? O que mudaria para nós, se escrevêssemos e publicássemos sempre a verdade? Como era no passado. Por que não valeria a pena questionar as facultativas?”

“Acho que só no Califado e na RPN não deve haver facultativas. Mas não parecem ser os melhores lugares do mundo para se viver.”

Também não era essa a questão. Os regimes ditatoriais viviam de propaganda enganosa, era algo característico e indissociável de sua condição. Pensei em não me estender sobre isso, queria que a Cleo tivesse um bom momento comigo, que pudéssemos descontrair, rir um pouco, continuar falando de livros, e era eu quem estava tornando tudo pesado e meio filosófico. Pensei em Buck novamente, no que me inspirava esse personagem afetado por difíceis e dolorosas transformações.

“Só acho que, de vez em quando, o que nós precisamos é mostrar as nossas presas. As nossas garras. Atender a um chamado do instinto. Erguer a nossa índole combativa acima dos bons modos. E transformar o mundo. Com a nossa coragem.”

Ela me olhou com visível simpatia. Acenou a cabeça negativamente, mas naquele tom de que estava tudo certo. “Eu cheguei à conclusão de que tenho muito a aprender com você.”

Desci com ela até a entrada do edifício e me ofereci para chamar um aero.

“Não precisa. Brigada. Tem um ônibus aqui perto. E também o metrô.”

“Isso de a gente não ter carro às vezes incomoda, não é? Pelo menos um veículo terrestre…”

Ela sorriu, carregando, em uma das mãos, o livro que eu lhe emprestava, e um vento noturno agitou de leve seus cabelos.

“Não, Marco, sem problema. Não vale mesmo a pena ter um carro nesta cidade, com tanta coisa fácil de nos transportar pra qualquer parte. Vou pegar o metrô aqui na Praça do Vão Livre. Bom… Eu vou indo então.”

Ergueu o rosto, eu me inclinei, e nos despedimos discretamente, beijos de criança, à altura das orelhas.

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