Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 20

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

A Heleninha foi a primeira que falou comigo pela manhã: passando por meu ponto, tocou-me o braço.

“Força aí, Marco. Que cara de sono horrorosa!”

Virei-me sem pressa. Notei que seus piercings haviam preenchido toda a curva da orelha que eu via. Antes, eram apenas dois ou três, acho. Tudo igual no supercílio, e ali estava a charmosa argolinha, na base de seu nariz encantador. Contemplar seu rostinho jovem e bonito fazia emergir uma alegria quieta e vibrante, com o status de um prêmio, amostra de um paraíso mítico, especialmente após ter considerado com atenção aquelas duas respeitáveis senhoras que trabalhavam para o governo.

“Oh, obrigado por me alertar, minha amiguinha enfeitada, minha… Paquinha…”

“O quê?! Mas que tonto. Parece um zumbi. Como vai trabalhar desse jeito?”

Afastei-me com a cadeira giratória, mirando os olhos da Heleninha de onde eu estava, de baixo para cima.

“O café vem sendo cultivado pelos africanos e pelos árabes há mais de mil anos. E eu me aproveito disso. Vamos lá, tomar um comigo?”

Fomos juntos até a copa. Eu estava realmente disperso. Essa palavra, Paquinha, vinha me incomodando desde o romper da aurora. Paquinha. Seria isso mesmo? Ou não, apenas outra pessoa qualquer, vinculada ao Café Silene? Se uma daquelas duas mulheres, com pouco menos ou pouco mais de 60 anos, fosse a tal Paquinha, conforme a indicação do Hermes, o produtivo atendente, que idade teria o pai dela, o senhor João Feijó? Perto de 90? No entanto, não havia nada de improvável nisso. Por que alguém não teria perto de 90 anos, não administraria uma cafeteria e não teria uma filha de 60 anos, com rosto cansado, forçado para baixo pela gravidade, ou com o aspecto agressivo de uma rapinante? Afinal… Não, não. Eu estava perdendo o juízo, forçando as coisas. Tinha que voltar ao meu arquivo de mulheres suspeitas, candidatas a fonte, começar do zero, ter paciência, sangue frio, analisar tudo outra vez com um olhar mais realista, menos desejoso de fechar logo a questão da identidade dessa minha singularíssima informante voluntária.

Noite desse dia, banho rápido. Vi um pouco do noticiário da BBN, para relaxar. Cochilei um pouco, o que me fez sentir melhor, desperto e sóbrio – e já estava decidido a não pegar uma cerveja sequer. Voltei ao meu GP, abri o arquivo com os nomes e as imagens dessas mulheres que vinham me atormentando sem saber. Em poucos minutos, resolvi imprimir tudo aquilo, sair da tela, visualizar minha galeria de diversificados tipos femininos da maneira mais básica, antiquada e eficiente: alfinetadas em um painel improvisado, como um quadro de avisos. Recortei cuidadosamente cada figura, como fazendo um importante dever de casa, e, como meu painel não passava de uma cartolina escura, cinzenta-quase-preta, um pouco amarrotada nas pontas, usei tiras curtas de fita adesiva, cortadas no dente, para afixá-las em certa ordem, apenas pela parte superior. Afastei-me um pouco, visão geral. Respirei fundo. Tranquilo. Consciente. Um daqueles rostos tinha de ser… ela.

De volta ao início. Essas personagens da vida pública foram tudo o que consegui sobre mulheres em cargos próximos a pessoas influentes. (Outras pessoas, funcionários e assessores, com cargos semelhantes, eram, obviamente, homens.) Pensei muito ao deslocar as cinco jovens para um espaço que imaginei reservado para as eliminadas. Mas acabei fazendo a mesma coisa de antes. Cíntia, que se encontrava no exterior no mesmo dia de meu primeiro encontro no Café Silene, era a única que podia ser excluída com certeza – ainda assim, eu não a tirava da lista, apenas a deslocava de um ponto a outro da cartolina, no fundo com alguma suspeita de que, em meio a situações muito complexas e pouco definidas, até isso poderia fazer parte de um truque e teria de ser revisto. As duas mais velhas me desafiavam: eu rejeitava a ideia de que uma delas fosse aquela voz de entonação perfeita que eu ouvia. Mas aí estava o erro, do ponto de vista da análise objetiva: eu não queria acreditar, não gostaria que fosse, atuava movido por resquícios de preconceitos e por meus tendenciosos anseios de homem. Nada de decisões nessa noite. Hora de parar com aquilo. Retomar na noite seguinte. Seria assim, sóbrio, consciente, com autocrítica, movimentos parcimoniosos e prudentes, que eu iria chegar à identidade dela. Que eu iria capturar sua imagem. Que eu iria vencer o jogo.

No dia seguinte, o Edison me encaminhou a pauta sobre o vulcão que ensaiava sua ressurreição na Europa. Nuvens densas, violentas, arredondadas, escuras, como grandes blocos de organismos vivos se sobrepondo e tentando fugir depressa de uma maldição que os houvesse selado no interior da terra, eram expelidas com espantosa velocidade pela abertura da montanha, alcançando alturas estonteantes e dissipando-se, em parte, por força das correntes de ar gelado do hemisfério norte. O tráfego aéreo, em certos pontos do continente, vinha sendo prejudicado desde a noite anterior: voos cancelados, prejuízo para as empresas de aviação, turismo, trabalho, para a economia em geral. Apesar das imagens fascinantes, transmitidas com certa frequência pelas mídias televisivas, aquele era um dos tópicos mais áridos em que se trabalhar. Por isso, acrescentei históricos de tragédias provocadas por esses picos ameaçadores, ao longo da trajetória da humanidade, e isso salvou um pouco o tédio de apenas relatar o que vinha aterrorizando o povo local e tirando o sono das autoridades. Fiquei quase o dia todo nesse tópico. Parei para almoçar e o enviei ao editor-chefe no meio da tarde. Nem sei se ele leu o meu texto, que foi publicado quase imediatamente.

A Heleninha vinha passando, com uns papéis, parou ao meu lado.

“Acabei de ler o seu texto sobre o vulcão. Muito bom, viu? Parabéns. É difícil cativar o leitor com um tema tão pouco interessante, não é? Parece que eles te dão os piores temas. Aquilo sobre Plínio, o Velho, eu não sabia.”

“Ah, isso? É, eu fiz uma pesquisa básica, você viu, comparei com outras erupções…”

“Ficou ótimo. Você é muito bom nisso, em enriquecer textos pobres. Você é fera.”

“Oh, muito obrigado, Leninha-ninha”, mão no peito, patriótico e agradecido. “Vindo de uma deusa como você, sempre, sempre uma grande honra. Vamos juntos, rumo ao porvir!”

“Palhaço. Sou sua fã, sabe disso. E o Edison gostou muito, fique sabendo.”

Um tchau agitando uns dedos no ar, e continuou andando.

Agora era a Diana quem me falava, inclinada, bem próxima, como se assistisse a algum vídeo em minha tela. Tinha voltado às suas trancinhas nagô. Parte delas caía na vertical, roçava-me o ombro.

“Que lindo, isso tudo sobre o vulcão. Aposto que nenhum outro periódico publicou um texto tão bom com essa pauta aí.”

“Minha amiga queridíssima, já ganhei meu dia com o seu comentário nada técnico.”

“Mas é um bobo…”

A Cleo, em seguida, com a Diana ainda de pé ao meu lado.

“Esse foi demais, hein? O número de leitores do seu texto disparou, dá uma olhada aí na sua tela. Subindo mais rápido que a fumaça do vulcão. Acho que o Edison só tem motivos para amar você, mas não quer confessar.”

A Diana riu. “Mas claro. Olhe como ele publicou na hora o seu tópico. Confiança total.”

“Que exagero. Não é tão difícil escrever sobre isso. Falando nisso, por que será que os meus colegas homens nunca me elogiam por nada? Bom, não importa. Que continue assim.”

As duas me ironizaram, e a Diana saiu de perto, voltou ao seu ponto de trabalho.

“Então, o Edison Chafik me ama, é?”

“Ter um redator desses é pra se amar mesmo.”

“Sei…”

A Cleo foi direta: “E então, quando vamos conhecer os seus livros?”.

“Oh, sim. Vamos sim. Considere-se convidada. Que tal… amanhã à noite?”

Combinado. Mas por que amanhã à noite? É que eu estava ansioso para chegar em casa nesse mesmo dia, voltar ao meu quadro detetivesco das candidatas a delatora de alto nível, e já me havia ocorrido uma ideia nova que talvez ajudasse a aperfeiçoar o filtro e a fechar o foco. No WeWatch, encontrei um vídeo em que uma delas apresentava uma conferência. Microfone oculto em alguma parte do vestido, ela reforçava, com duas ou três frases, como uma vinheta que abrisse um capítulo, o tema tratado ali: a importância de se investir na fiscalização para inibir crimes ambientais. Ela pedia que se recebessem com aplausos uns ilustres convidados. Ela sorria e aplaudia também, conduzindo a plateia. Ela era comunicativa, articulada, desinibida. Ela se deslocava com elegância e naturalidade. Ela se mostrava no domínio de uma voz clara e entonação de frequência moderada, sem agudos desnecessários, sem desvios, sem falhas. Ela… não era ela. Movi sua foto para a direita, no painel exposto em meu escritório. Djanira estava eliminada.

Eu tinha agora quatro potenciais pretendentes a ocupar a mesa isolada de minha mensageira noturna, a quem eu continuava mentindo, afirmando que não procurava identificá-la. Elas não sabiam que eu as olhava de frente. Imagens, representações. Reproduções de seus rostos. Essas personagens fabulosas, que ficariam bem como componentes de uma mesma banda musical, ao lado umas das outras ou abraçadas lateralmente, em algum flagrante coletivo, aparentavam algo entre 35 e 50 anos, mais fortemente na faixa dos 40. As quatro eram atraentes: tipos físicos diferenciados, rostos bonitos, ombros e parte superior do corpo sugerindo proporções agradáveis. A partir dessa nova consideração, fui buscar por mais imagens delas, algo que, por um motivo qualquer, não me havia ocorrido antes. Era tudo muito recente, e minhas ideias estavam ainda ricocheteando nas paredes internas de meu crânio – e também nas externas, ao meu redor, como átomos e moléculas agitando-se sob a pressão de alguma forma indefinida de energia. Sob a pressão de minha efervescente curiosidade. Sob a pressão do desdobramento de uma situação inusitada e quase absurda. Enfim, encontrei mais algumas imagens delas, de corpo inteiro, confirmando minha suspeita de que eram, no conjunto, mulheres comuns, sem nada que se destacasse em seus corpos, sem exageros físicos, sem pontos de insinuação intencional, e por isso mesmo belas. Mas isso, afinal, já não significava muita coisa. Não me levaria a nada, nesse caso. Eu precisava, acima de tudo, de sua voz.

Retratinhos no centro do quadro. E as finalistas.

Áurea Silvério de Souza

Morena clara. Cabelos ondulados, caindo mais de um lado do rosto. Nariz afilado. Queixo anguloso. Não sorri na foto.

Selma Akemi Miyazuka

Morena clara. Etnia oriental. Cabelos lisos, repartidos ao meio. Pele bronzeada. Rosto oval. Boca pequena. (Inferir que esse bronzeado sedutor não combinaria com minha informante seria outro equívoco tendencioso.) Sorri na foto.

Soraya Regina dos Santos

Negra. Cabelos alisados, lembrando alguma atriz de filmes. Rosto comprido. Olhos grandes e ligeiramente oblíquos. Boca harmoniosa. Não sorri na foto.

Eliane Albuquerque

Loira. Cabelos curtos, soltando pontas em volta do pescoço. Propensa a sardas. Olhos estreitos. Boca de lábios finos. Sorri na foto.

Eu me casaria com qualquer uma delas. Mas o que tem isso? Já me entendia perdido de novo. Dizia a mim mesmo que prosseguisse com paciência, dia após dia. Pausadamente. Aos poucos. Raciocinando sem ansiedade. Sem preconceitos, preferências masculinas ou sentimentalismo. Minha intuição já não era grande coisa, por isso eu deveria compensá-la com certa frieza analítica. Já havia conseguido alguma coisa nessa noite, com aquele vídeo sobre a conferência apresentada por Djanira. E sabia que Cíntia estava em Guadalajara na primeira noite – a essa altura, já devia estar de volta. Isso me animava e contava pontos para mim. Como naquelas investigações em que se chega a um beco sem saída e é preciso recomeçar, retomar todo o caso a partir do zero, atento a algum detalhe que eventualmente tenha passado despercebido, eu pensava em não eliminar completamente nenhuma delas. Seria saudável. Mas muito radical: pelo menos Djanira e Cíntia estavam fora de meu escopo. Teriam de estar. Era assim que eu deveria seguir em frente.

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