Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 17

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Na noite de quinta, fui conhecer o apartamento da Cleo. Era maior (e melhor) do que eu imaginava. Até mesmo em relação à imagem que ela havia me passado inicialmente, ao insinuar que era um lugar pequeno para os livros, mas onde caberia “um bom tanto”.

Ela me recebeu com os cabelos presos de um lado; camiseta escura, calça jeans justa, pressionando suas pernas roliças, e uns sapatinhos baixos, de tecido vermelho, não sei à moda de que país oriental.

“Que honra”, sorriu, descontraída. “Um dos mais talentosos midcoms que conheço, aqui, em minha casa.”

Acenei com uma negativa. “Obrigado por me receber, colega.”

Ela encostou a porta, que se trancou automaticamente, com um bip quase sumido. Eu estava no centro da sala principal, olhando tudo ao redor. Percebia-se ali algo de profissional, a mão de um decorador, talvez, ou projeções dos méritos dela mesmo, sua atenção às coisas, seu bom gosto. Não era um lugar como o meu, com móveis e objetos aleatórios: tudo ali se harmonizava, em cores e posições.

“Puxa, que lugar lindo…”

Fiquei positivamente impressionado com a qualidade do que me cercava ali: móveis, objetos, a decoração toda. Talvez eu tomasse meu próprio modesto apartamento como parâmetro para visualizar outros, semelhantes, de pessoas semelhantes a mim, jornalistas jovens ou estudantes, que supostamente não teriam ainda conquistado muitos bens materiais.

“Você… paga aluguel?”, perguntei quase acanhado, enquanto passava um dedo por uma prateleira da grande estante da sala, uma estante de parede inteira, provavelmente encomendada na medida certa e com esse fim, madeira de qualidade, superfície impecável, sem um átomo de poeira.

“Não. O apartamento é da minha mãe. Vem cá, o que você quer beber?”, chamou-me à cozinha, uma divisão tão bem planejada quanto parecia ser tudo ali, espaçosa como não costumam ser as cozinhas de apartamentos, tudo muito agradável e surpreendente.

“Não sei. O que você sugere? O que tem aí?”

“Tenho tudo. Pensei em fazer um chá e assar uns croissants.” Mostrou-me a embalagem do chá: algum produto importado, orgânico, sem isto e sem aquilo, talvez a folha de infusão mais confiável do mundo.

“Claro, pode ser. Parece bom.”

Fiquei por perto enquanto a Cleo preparava essas coisas. Ela estava feliz por receber alguém. Seus olhos, sempre lacrimejantes, pareciam despertos e prontos a observar qualquer mínimo movimento que eu fizesse – ou que ela mesma fizesse, não sei explicar como, pois contemplava a própria mão, de vez em quando, ou um ombro, talvez procurando algum fio de cabelo que espantar. Movimentava-se com certa agilidade, um efeito colateral de seu visível entusiasmo. Era como era. Em nenhum momento ela entrou no assunto “perder peso”, como se poderia esperar em casos assim, aproveitando um desses clichês de autoacusação, próprios a iniciar alguma conversa. Eu a admirei por isso.

“Então… Sua mãe é quem esconde a chave do cofre?”

Ela riu. “Minha mãe não me vê faz tempo. Ela esquece que nós existimos.”

“Nós? Você quer dizer: você e o seu namorado?”

“Eu e a minha irmã, que mora em Portugal. A gente não fala com ela faz tempo. E ela não nos procura, raramente entra em contato. Minha irmã não a suporta também. Aniversários e coisas assim são sempre uma pequena tortura, momentos constrangedores que nunca acabam bem. Mesmo quando acabam bem.”

“Puxa… E o seu pai…?”

“Ele morreu quando éramos pré-jovens. Deixou um bom patrimônio, que minha mãe soube aproveitar muito bem, quer dizer, vendendo parte dele pra gozar a vida, viajar por outros países. Nem preciso dizer que nós duas não fomos convidadas.”

“Precisa dizer sim. Quero ouvir. Já acho curiosa essa história, até aí. Se não se importa de falar sobre isso…”

“Não me importo e sinto que até me faz bem falar nisso, principalmente com um amigo tão especial. Ops, queimei o dedo aqui. Au!”

“Sua irmã mora em Portugal, você disse. São só vocês duas?”

“Só. Só nós duas. Pouco tempo depois que o papai morreu (pouco tempo mesmo!), minha mãe conheceu um cara pelas redes sociais, um homem mais velho, com muita grana, sócio de uma grande seguradora e dono de alguns estacionamentos nas áreas mais disputadas aqui da capital. Parece pouco, mas faz alguém rico, viu?”

“Sei, imagino que sim.”

“E foi aí que ela ficou rica de vez. E parou de vez também de se preocupar com a gente.”

Mais um pouco dessa conversa e voltamos para a sala, onde ela já havia preparado uma mesinha com pratinhos, talheres e outras delicadezas. Sentei-me em uma poltrona baixa, de frente à mesinha e ao sofá de estofado cinza-pomba em que ela se ajeitou elegantemente. Aquele chá era de fato muito gostoso, o que nem sempre se confirma com esse tipo de coisa. Ainda bem, porque há muitas dessas infusões, filhotes de new waves do século passado, que não passam de remédios amargos, com o argumento pouco consolador de que fazem bem à saúde.

“Que chato isso com a sua mãe.”

“É. O lado bom é que nós temos liberdade, e ela provê coisas básicas (e importantes) como… isso aqui”, gesto abrangente e movimento de cabeça, indicando o apartamento.

Sorvi mais um pouco daquele chá intenso, quase com gosto de flores. Queria me expressar com alguma solidariedade, mas não estava seguro do que deveria dizer.

“Emocionalmente lamentável, eu acho. Mas, no fim das contas, parece ser um bom acordo.”

A Cleo acabava de mastigar um pedaço de croissant, olhava para baixo, por isso não sei se ela gostou do que eu disse ou se relevou educadamente essa minha conclusão, tomando-a, talvez, por uma gafe afetuosa e não intencional.

“E esse calhorda que é o marido dela”, continuou, tranquila e sem irritação, fazendo ver que de fato não se importava muito com aquilo tudo, que devia estar acostumada, “é uma espécie de malandro bem-sucedido, entende? Abriu uma cantina uma vez, que tinha tudo para dar certo, e quebrou. Depois, acertou o rumo com os tais estacionamentos, a partir de um primeiro, muito precário e fora do centro da cidade.” Ergueu a cabeça, levou mais um pouco de chá aos lábios grossos, destacados por um batom de cor forte, algo como um framboesa-escuro. “Mas isso contou com várias jogadas ilícitas, sabe? Aliança com traficantes, ladrões de veículos terrestres, e daí que ele entrou de sócio nessa tal seguradora. Enfim, eu não sei mais do que isso, nem quero saber. Mas pode ter certeza de que ele não ficou rico só trabalhando ou com aquela conversa bonitinha de que o seu negócio começou com um sonho.”

Assenti, assimilando todo o processo como bastante verossímil, principalmente em nosso país, onde a lei nem sempre confronta os infratores e, pelo menos em parte, costuma até beneficiar-se das atividades deles. Nesse momento, desfrutando dos croissants e do tal chá orgânico (o que não é orgânico no que comemos e bebemos?), minha impressão sobre a Cleo começou a mudar sensivelmente: ela se mostrava mais madura, menos ingênua, e isso talvez se devesse à circunstância de eu estar na casa dela, em seu território, sob o encanto de sua hospitalidade, e não na redação da Facto, onde ela me pedia orientações sobre itens próprios da rotina do trabalho.

“Vi que o seu sobrenome é Alcântara-Mello. Achei incomum. Bonito, mas incomum.”

“É. Isso. Meio incomum mesmo.”

“Geralmente esses nomes unidos por hífen são remanescentes de famílias nobres. Famílias ricas, de origem aristocrática. Famílias medianas, talvez, que um dia foram ricas. É isso?”

Ela achou engraçado, mas concordou. “Mais ou menos. Ainda somos um pouco ricos, como eu falei. E sim, há um passado todo impregnado nessa trajetória meio louca. Apesar de alguns ancestrais terem sido bem pragmáticos com esses arranjos, as coisas acabaram meio sem rumo, não sei como. Mas isso vai ficando distante, vai sumindo no tempo, não faz mais sentido. Sou Cleo Estefânia de Alcântara-Mello; minha irmã, Clarissa Carolina de Alcântara-Mello. O sobrenome da minha mãe, Casares, não entrou nos registros.”

“Coisas da realeza”, brinquei.

“Parece mesmo. Os sobrenomes das mulheres da família se diluíram, se perderam entre uns tantos casamentos e divórcios.”

“Puxa! E eu aqui, reles plebeu, origem interiorana, filho de um professor de Geografia, que dei duro pra pagar a minha universidade…”

“Olha só, como você não perde o humor”, ela estendeu a mão no ar, em minha direção, como me anunciando a alguém. “Você tem todos os méritos, é um profissional reconhecido…”

“Reconhecido?”

“Todos os nossos colegas admiram você, sabia? Seus tópicos são de alta qualidade.”

“Ah, mas um dia eu te conto umas fofocas dessa turma aí. Nem todos me admiram não, que eu sei. E os tópicos têm que ser de boa qualidade mesmo, esse é o meu trabalho. Quando um fato não oferece muito que desenvolver, como a construção da ciclovia na orla da Praia da Pescadeira, no litoral norte, eu pesquiso, tento fazer algo mais do que o esperado, porque sei que isso atrai o leitor, informa, instrui.”

“Leio tudo o que você escreve, sabia? Às vezes, você chega mesmo a ser instrutivo.”

“O Edison não costuma me editar quando faço isso. Se eu me entusiasmar muito, acabo chegando às origens da bicicleta, conto a história toda. Deve ser coisa de filho de professor.”

“Pode ser”, ela sorriu. “Mas isso de envolver ciência e história é uma maneira muito válida de buscar a verdade, de enfatizar e divulgar uma verdade, um dado confiável, documentado. A verdade é o que pode ser constatado, não é? Fora isso… E você tem esse perfil, visivelmente. Aliás, Marco, você está aqui comigo hoje porque não é um qualquer: é um cara que guarda livros. Aliás também, que tal vermos os livros?”, animou-se de repente, batendo palmas uma só vez, como alguma apresentadora ordenando que se abrissem as cortinas. “Não precisamos terminar esses croissants agora. Vamos lá. Pega o seu prato. A caneca.”

Um dos dormitórios era a sua biblioteca. Quase todas as paredes, com exceção de um espaço com uma mesinha e duas cadeiras, eram preenchidas por estantes de livros. A Cleo tinha muito mais livros do que eu. Fiquei fascinado com aquilo. Quase ninguém que eu conhecia guardava livros, à exceção de alguns professores que nos confessavam isso.

“Cleo, que maravilha… Isso é…”

Havia uma poltrona ali, posicionada em uma espécie de nicho, espaço entre uma estante e outra, ocupando o necessário para que alguém se sentasse e se levantasse, sem bater a cabeça na prateleira imediatamente superior, de onde partiam outras fileiras de deliciosos volumes, em cores e tamanhos diversificados. Uns poucos, talvez raros, ostentavam lombadas de marroquim, e eu já estava louco para passear por suas páginas. Deixamos nossos pratinhos sobre a mesa, deixei minha caneca também; ela ainda segurava a sua. Sobre essa mesa, três livros empilhados, de maneira irregular, como se iniciassem uma escadinha em caracol, degraus de tamanhos diferentes. A Cleo parecia muito organizada, e aqueles exemplares fora da estante talvez fossem um sinal máximo de sua displicência: não alinhar de forma simétrica os livros que, provavelmente, estaria lendo no momento. Eu avançava um passo demorado, pretendendo perfazer uma volta completa no cômodo, enquanto passeava os olhos, de alto a baixo, por toda aquela magnífica caverna dos tesouros.

“É de encher os olhos, de arrepiar. Senso sincero. Os incineradores de Bradbury fariam uma festa aqui.”

Ela sorriu. “Viva o Mundo Livre.”

“Sim. É isso. Agora, ninguém mais pode nos privar dessas maravilhas. Aliás, outro erro futurista, outra previsão equivocada, que recai sobre os antigos analistas de mercado, que…” Nesse ponto, com uma faísca de surpresa, eu próprio me peguei falando como o Tato, mimetizando sua influência, com aquele jeito seu de iniciar uma conversa sobre o passado arruinado pelos sistemas autoritários.

“Como assim?”

“Sobre queimar livros. Censurá-los, proibi-los. Com isso, mais gente passa a se interessar por eles, perceber o valor deles, lutar por eles. Morrer por eles.”

“É, pode ser. Mas hoje, de alguma forma, conseguiram fazer a maior parte das pessoas ignorar os livros. A liberdade total, o nosso Mundo Livre, afastou o interesse, a curiosidade geral por eles. Tudo fica muito acessível, e isso causa preguiça mental.”

Eu estava adorando a conversa, embora essa constatação, apontada por ela, me entristecesse um pouco, além de ser um chavão que todos nós repetíamos desde os tempos de escola.

“É. Parece que sim.”

“Você gosta de clássicos?”, perguntou logo após sorver um pouco de seu chá.

“Gosto de tudo. Clássicos, menos clássicos. Antigos, modernos…”

“Olha, vou falar uma coisa só pra você. É uma confissão.”

“Que privilégio”, disse eu ainda mirando os livros mais distantes, ao alto. “Estou pronto.”

“Eu detesto Shakespeare.”

Voltei-me para ela, e sorri. “Sério?”

“Um-hum. Não tem um só personagem que seja real. Até as pessoas mais simples, o beberrão no bar e o cuidador dos cavalos, falam por metáforas. Com toques de filosofia, fechando com aforismos. Ninguém, na vida real, fala daquele jeito. Veja o Romeu e a Julieta. Não é possível que dissessem todas aquelas coisas, daquele jeito, enquanto se conheciam, enquanto namoravam… Só mesmo no palco de um teatro.”

“Coisas de época”, comentei. “Não diminui em nada o valor das ideias. Mas eu entendo o que quer dizer.”

“Eu sei que a gente nem pode dizer isso assim, em público, sem passar por ignorante e qualquer coisa do tipo. Mas é o meu gosto, e daí?”

“Sim, por que não? Isso é importante: sermos fiéis ao nosso gosto, às nossas opiniões, sem sermos conduzidos pelo que já é consagrado na opinião geral. Gostei. Obrigado pela confiança. Prometo segredo.”

Tudo isso em tom de bom humor, leveza, amenidade. De repente, ela pegou um volume e o estendeu em direção a mim.

“Olha essa edição do Quixote…”

Peguei o livro, admirado. “Onde conseguiu isso? Uma edição antiga!”

“Minha irmã comprou na Europa. Não é lindo?”

“É magnífico! Que linda edição… E veja essa data… Incrível! E você, lê os clássicos?”

“Não muito. Gosto dos mais novos.”

“É?”, murmurei sem tirar os olhos do livro, sem parar de manuseá-lo.

Dom Quixote é fascinante, mas obras como a Ilíada me cansam: guerras, sangue, gente se matando…”

“Eu entendo. Homero é mais heroico, mais externo, menos pessoal. Os personagens atendem a um determinado padrão de comportamento, com seus códigos de honra e suas crenças. Mas o Quixote é subversivo. Inovador.”

Ela também deixou sua caneca sobre a mesinha e se aproximou de mim, como se fosse ler sobre meus ombros o livro que eu não parava de folhear com prazer.

“Gosto de muitas coisas aí.” declarou, simpática. “No final, quando ele pede perdão ao Sancho por tê-lo feito acreditar que havia mais cavaleiros andantes sobre a Terra, por exemplo.”

Ela me fez recordar essa passagem.

“Sim, isso é lindo. É comovente. Na verdade, eu gostaria de um mundo onde os quixotes fossem desnecessários. Lembro que escrevi sobre isso uma vez. Onde houvesse justiça suficiente. Ou que não fossem tão loucos os idealistas. Ele via moinhos como gigantes, monges como demônios…”

“Você acredita que existam mais desses cavaleiros andantes sobre a Terra? Outros Marcos tentando instruir leitores desinteressados?”

Fiquei surpreso com a brincadeira.

“Oh, não”, fechei o livro e o encaixei de volta ao seu lugar, na estante. “Você me vê como um desses? Não, não. Faço isso porque quero, porque gosto. Não espero mudar nada no nosso Mundo Livre, já tão consolidado, com suas tantas decantadas conquistas. Gostaria apenas que as pessoas todas procurassem conhecer mais e fofocar menos. Nenhuma facultativa, você sabe, trabalha com dados reais ou tenta instruir alguém.”

“Ao contrário: tentam confundir e polemizar. E as pessoas acabam com preguiça de confirmar o que estão lendo.”

Como já vinha acontecendo pontualmente, durante todos os dias a partir de terça-feira, voltaram-me imagens e frases do encontro no Café Silene: a penumbra, a escuridão, o cenário estreito, a voz característica e um arrepio de nervosismo ao assimilar novamente tais impressões de sonho e de intensa realidade.

“Isso mesmo”, concordei, um instante após o assalto da memória, também tomando um mínimo de tempo em relógio, uma fração, um micropulsar de qualquer coisa muito, muito breve. “Além de perceberem tudo como uma espécie de grande brincadeira, não importando se estão diante da verdade ou não, desde que se entretenham, se distraiam, e polemizem algo que, um minuto atrás, não daria margem a qualquer motivo de polêmica. Mas há leitores para tudo, como sabemos. Não me sinto frustrado.”

“Não?”

“Não. Um pouco indignado, como já lhe disse, com essa voracidade das facultativas, com esses ataques massivos que partem dos redatores, cada vez que um tema mais chocante abala a sociedade. Mas não há o que fazer quanto a isso. Afinal, somos todos livres.”

Continuei andando devagar, como um monarca passando em revista seus súditos livros, enfileirados em silêncio. “Ah, você leu este aqui?”

Era o calhamaço de Robert Musil.

“Não terminei. Você, o que achou?”

“Muito singular, muito original.”

“Sempre achei meio estranho esse escritor aí. Já li algo mais sobre ele. Um austríaco, certo?”

“Sim, o que tem?”

“Porque os alemães é que são os monstros da literatura local. Autores de calhamaços.”

“Sim, mas esse autor destoa dos padrões da época, pelo menos na literatura de língua alemã. O Musil tem aquele tom irônico e bem-humorado que os alemães, sempre muito solenes, não têm. Que alguns de nossos autores têm.”

“Interessante. Não tinha pensado nisso.”

“E esse retrato fiel de seu tempo é muito revelador. Aquela ingenuidade, aquela cegueira das elites do império, propondo meios de divulgar e democratizar seu estilo de vida e sua política, enquanto o barril de pólvora da devastadora Primeira Grande Guerra vibrava ruidosamente sob seus pés. É algo de arrepiar, pensando bem.”

Em contraposição aos calhamaços, a Cleo pegou um livro estreito, poucas páginas, na estante oposta.

“Olha isso.”

Terminei de mastigar mais um pedaço esfarelado de croissant, peguei o livro que ela me passava. “Augusto dos Anjos. Edição antiga também. Lindo.”

“Abre na primeira página.”

Segurei o croissant para que não me caísse da mão. “Não pode ser! Será mesmo verdade?”, paralisado ao ver umas linhas inclinadas, de caligrafia quase incompreensível, arrematadas com a assinatura do autor.

“Uma professora comprou num sebo sem perceber, porque a primeira página estava meio viciada a grudar-se na primeira capa. O dono do sebo também não deve ter visto. Quando ela chegou em casa, viu que tinha uma pedra preciosa nas mãos.”

“Incrível! E como chegou até você?”

“Ganhei!”, ela respondeu com um sorriso autoconfiante de criança premiada. “Ganhei de um colega de escola. Um cara que não dava a mínima pra isso e estava se desfazendo da biblioteca da avó, falecida. Para ele, um PDF ou um holopaper desse livro eliminam de maneira inteligente a necessidade de preservá-lo. Viu só? Os quixotes aproveitam.”

Eu estava maravilhado. Com os gostos da Cleo e com sua biblioteca. Era uma quinta-feira, e o que tinha me acontecido desde o início da semana impulsionava minha rotina a um patamar absurdo de novidades. Depois de vivenciar aquela preguiça benigna de não querer ler todas as lombadas disponíveis, elogiei sua coleção e me ofereci para emprestar-lhe algum autor que não conhecesse. Com isso, voltamos à sala, e ela me ofereceu mais coisas, torradas ou o que eu quisesse, mas eu não quis mais nada. Ficamos no sofá, emendando uma conversa com outra, como se tivéssemos muito a dizer, chegando a nos interromper e a nos desculpar em seguida, sobrepondo assuntos, trocando gentilezas.

“Se importa se eu fumar?”

“Prefiro que não.”

Recuei em meu gesto de buscar os cigarros no bolso, tentando evitar algum constrangimento, salvando tudo com o velho e útil bom humor, careta de menino travesso, flagrado em meio a alguma trapaça, mão na boca como arrependido de ter dito algo impróprio. O tom calmo e assertivo com que ela passou-me a negativa fez-me lembrar de imediato de sua recusa em jogar sinuca, quando a convidei a jogar, no Prime Time: simplesmente não.

“Seu namorado não fuma, certo?”

“Não. Acertou. Eu não namoraria alguém que fuma.”

Ela mostrou-se fascinada, e eu, divertido, quando descobrimos (algo que, por falta de um motivo qualquer em nossa interação, até aí ignorávamos) que tínhamos estudado na mesma universidade. Mesmo curso, muitos dos mesmos professores. Tocou-me o braço, positivamente admirada, quando então comentei que tivera aulas com o autor do famoso Subverdades.

“Sério?! Que incrível!”, exclamou, com os olhos muito abertos. “Você teve aula com ele?! Com o Heródoto Vendime?!”

“Sim. Facultativas I e Facultativas II.”

“Por que eu não tive? Que falta de sorte…”

“Ele se aposentou pouco depois. Vive só de palestras, como você sabe. Quando você ingressou no curso, ele já era milionário.”

“Entendi. Esse livro dele, Subverdades e recondução das massas é uma referência! Eu o li interessadíssima, impressionada, não conseguia parar.”

“É sim. Uma referência. Uma espécie de guia para as facultativas. O primeiro a tratar detalhadamente da assimilação desse fenômeno nas mídias contemporâneas. O primeiro e ainda o melhor.”

“Sim, um clássico, já que falávamos em clássicos. Nessa obra, ele deixa claro que o consumidor é o ‘senhor do poder’ e que o Mundo Livre não vai voltar atrás – sendo bem superficial e concisa no que eu estou dizendo, reconheço.”

“Eu também vejo assim, pensando resumidamente. Foi um bom curso, afinal. Enriquecido com a minha sorte de ter conhecido o Heródoto pessoalmente, de ter sido seu aluno. Seu namorado estudou lá também?”

Ela pareceu fechar um pouco a cara. Era a segunda vez, em pouquíssimo tempo, que eu perguntava sobre o convenientemente ausente namorado dela.

“Não. Ele não é jornalista. Trabalha em outra área”, respondeu, minimamente irritada.

“Entendi.”

Olhou-me séria por um instante, antes de baixar os olhos aos próprios seios, me pareceu. Também em um instante, voltou à conversa com a mesma segurança, sem abrir mão, no entanto, de um cinismo que se sustentava por um fio.

“O que você estava querendo me perguntar mesmo?”

Admirei a sutileza, a inteligência dela. Eu tinha de voltar ao jogo.

“Ahn… Você entendeu assim, sobre o consumidor?”

“É. Entendi assim. E tem aquele capítulo sobre religiões que é devastador: uma análise profunda e perfeita. De como exploram o vazio em nós.”

“Sabe, eu não concordo com tudo, embora ele seja um mestre. Eu acho que religiões não deveriam existir. Mas ele acha que sim. Não somos vazios.”

Ela pensou um pouco. “Temos momentos desse… vazio, digamos assim.”

“E daí? Isso é só uma artimanha para nos caracterizar em algum momento vulnerável. Acho que o grande mérito da obra dele é constatar que o ser humano precisa mais de mentiras do que de verdades. Talvez nenhum governo do mundo subsista apoiado só na verdade. Para os detentores do poder, seja ele político ou econômico, a verdade é usada como parâmetro para as coisas físicas, práticas: a ciência, a medicina, os processos industriais, a telecomunicação, os transportes, a previsão meteorológica… Mesmo assim, como hoje sabemos, tudo isso pode ser distorcido em função de um interesse qualquer, mesmo que o tal interesse nem fique claro para nós, e soe misterioso, incompreensível.”

“Pode ser. Tem razão. E nem sempre foi assim.”

“Não. Isso é uma conquista do Mundo Livre.”

“Você talvez fosse muito pequeno para lembrar, mas estudamos isso em História das Midcoms: sobre um tempo em que a democracia ainda era limitada, e se combatiam duramente as facultativas. Seus autores eram punidos pela Justiça. Bloqueados, indiciados, presos…”

“Muito pequeno mesmo, foi quando perdi minha mãe. Só conheci essas coisas depois, estudando. Aliás, gosto de ver filmes sobre esse tempo. Além dos documentários. Sinto uma ponta de nostalgia do que apenas transcorreu em minha primeira fase de vida, sem eu saber, e alguma vaga esperança de atinar com algo que eu não tenha considerado ainda. Sobre esse tempo, aquele tempo, digo.”

“Foi o que entendi. Interessante. Você é sensível.”

“Não sei. E não me importo com isso de ser sensível ou não. Gosto de explorar informações sobre o passado, tentar entender claramente como se deu essa transição. Quando, decisivamente (e por quê), a maioria das pessoas passou a consumir facultativas sem nenhum senso crítico, como parte de uma indústria de entretenimento qualquer. Essa é uma conversa que eu e o Tato costumamos ter, quando acontece de estarmos juntos. Temos muitas afinidades, eu e ele. É um cara com muito conhecimento, muita agilidade de pensamento. Eu o admiro.”

“O Tato? O Octavio Germano? Não sabia que eram tão amigos. Não dá pra perceber isso na redação. Ele mal fala com os colegas. E fica horas com o Edison, naquela sala antiquada dele. Deve ser um tremendo oportunista. Você confia nele?”

“Sim, por que não? E não somos propriamente amigos. Nunca nos encontramos fora dali. Mas eu o compreendo: ele não tem paciência para dividir com a gente essas nossas conversinhas cotidianas, sobre os temas do dia a dia. Parece que procura algo mais desafiador, que alimente sua inteligência ativa. E ele gosta de falar comigo. Sempre que isso acontece, entramos, quase naturalmente, nessas questões históricas e mais abrangentes e… Basicamente, isso.”

Ficamos mais um tempo ali, naquele sofá: a Cleo com uma perna dobrada sobre a outra, eu tentando descontrair meu corpo, até que ela me oferecesse algo mais de comer e de beber. Não, obrigado. Hora de partir.

Foi comigo até a porta.

“Obrigado por me receber, obrigado pelas delícias. Por me mostrar os livros. Foi tudo muito bom.”

“Obrigada por ter vindo. Adorei a conversa. Agora é você quem vai me mostrar os seus livros.”

“Sim, vamos combinar isso, sem dúvida.”

Trocamos beijos leves e rápidos no rosto, quase aéreos.

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