Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 14

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Acordei disposto a voltar ao Café Silene, com sua fachada de madeira escura, que agora se instalava firmemente em minha memória das coisas. Olhando no espelho meu rosto mal barbeado enquanto escovava os dentes, constatei olheiras e um aspecto geral indisfarçavelmente abatido, mas, por dentro, entre sinapses agitadas eletrizando confusamente meu cérebro, erguia-me excitadíssimo com essa minha pretensa aventura.

Decidi tomar um ônibus, observar o trajeto, parte por parte, memorizar ruas, entroncamentos, desvios, observar veículos, gente, entrar na cafeteria certamente bem iluminada desde que teria sido aberta ao público, bem cedo, em meio ao expediente cotidiano, ao movimento, à vida transparente que acontecia por toda parte, verdadeira e palpitante, caracterizando o curso de mais um dia, sem grandes tramoias ou complicações. Estava a caminho, no coletivo urbano, sentado a uma das janelas, olhando preguiçosamente tudo o que se mostrava lá fora, quando recebi uma mensagem. Endireitei-me na poltrona, toquei o personal, ansioso.

Em home hoje? Que pena. Ia te pedir ajuda com uma ilustração…

Era a Cleo.

Oi, Cleo. Tudo certo por aí? Muita gentileza sua tentar me passar mais trabalho.

Ela me enviou uma caretinha enfurecida, seguida de um rostinho sorridente, piscando um olho. Que patetice.

Brincadeira, não tinha nada de ilustração não. Queria só saber de você.

Demorei um pouco a responder. Não estava disposto a pensar em qualquer outra coisa, mas enquanto o coletivo se deslocava, em sua monotonia habitual, seu silêncio-zumbido, sinal mínimo de um motor potente, instalado na traseira de sua estrutura, podia responder à minha colega com paciência, ao menos ser gentil com ela.

Está tudo bem. E você, tranquila aí hoje?

Pontos verdinhos indicavam que ela digitava.

Tranquila. Entediada, pra ser sincera. Posso te ligar?

Sim, claro.

Distraído, nem atinei a tempo com o fato de que ela não deveria ver-me sentado dentro de um ônibus. Apressei-me a digitar uma desculpa urgente, mas ela apareceu na tela, quase me flagrando no processo de digitação de uma mentirinha útil. Seu rostinho redondo parecia mais redondo na telinha, deformado por certa perspectiva de proximidade. Seus olhos naturalmente lubrificados, um destaque sempre chamativo: retinham um brilho líquido na base das pálpebras. Cobriu o sorriso com a mão.

“Ah, me desculpe! Achei que estivesse em casa.”

“Tive uma emergência. Estou voltando para casa agora. Mais uns minutos, e estarei lá.”

“Aconteceu alguma coisa?”

“Sempre acontecem coisas.”

“Ah, você entendeu! Não precisa ser grosso.”

“Não fui grosseiro, colega. Aceite meu bom humor.” Ajustei os óculos sobre o nariz, dei a ela um sorriso encenado e tão irônico quanto o pouco que havia dito.

Ela fez um gesto de desprezo, desistindo dessa conversa, iniciando outra.

“Estava lembrando de quando falamos nos livros. Por causa dessas ironias suas.”

“Minhas ironias são pobres e facilmente classificáveis, você já as conhece.”

“Aliás, estou procurando um calhamaço do século passado, queria saber se conhece.”

“O século passado foi o século dos calhamaços. Quando até mesmo editores experientes temiam o fim da era do romance, alguns autores bombardearam as terras da literatura com vastos volumes primorosos. Isso porque Proust dividiu sua obra em partes, senão…”

“Tudo bem então. Adivinha qual é.”

“Hum… Deve estar passeando por Joyce ou Musil ou…”

“Última década, pós-moderno.”

“Hum… Aquele sobre os irmãos Incandenza.”

“Esse mesmo! Exatamente! Como adivinhou?”

“Adivinhar é assim.”

Ela virou o rosto, alguém a chamava.

“Vou desligar agora. Precisamos marcar um dia para falar de livros.”

“Sim. O Prime Time está lá. E sempre teremos Paris.”

“Ah, mas que bobo… Quero que conheça a minha biblioteca. E eu quero conhecer a sua.”

“Certo. Vamos combinar sim.”

“Vai estar aqui amanhã?”

“Vou.”

“A gente se fala então. Até…”

Ela desligou bem a tempo, que o ônibus já se aproximava do ponto mais próximo ao Café Silene. Sorte minha.

Desci, andei apenas um quarteirão e meio, e lá estava o estabelecimento real, funcional e cotidiano, que me havia servido como cenário quase onírico antes do amanhecer. Empurrei a porta de vidro, entrei. Imediatamente, o cheiro bom de café e de outras substâncias matinais envolveu-me com carinho. Procurei uma vaga junto ao balcão, e havia uma justamente ao lado daquela divisão à esquerda, a parede estreita que chegava ao teto e isolava o cubículo, agora atravessado pela inebriante luz do dia: era apenas mais uma mesa, como as outras, apenas a última da fileira junto à parede lateral. Sentei-me, e logo um mestiço alto, corpo bem formado, rosto de beleza serena, veio ver o que eu queria – ele nem podia imaginar o que eu queria. Pedi um cappuccino. O ambiente ali era agradável: pessoas conversando discretamente, coisas fumegando, cheiros bons. Ele voltou com o pedido.

“Cappuccino.”

“Obrigado.”

Sorvi devagar cada gole, deliciando-me com aquele momento. Fiquei observando tudo ao redor, e isso não era difícil: não havia qualquer sinal de anormalidade, em parte alguma. Quando o rapaz passou por perto, do lado de dentro do balcão, agora tranquilo, entre um pedido e outro, comentei:

“Eu não conhecia este lugar. Muito bonito. Faz tempo que vocês estão aqui?”

Simpático, enxugando as mãos em um pano cor de café com leite, deteve-se à minha frente, encostando-se com cuidado a uma bancada atrás dele.

“Faz sim. Uns… três ano, quatro ano, acho. Eu não trabalhava aqui na época. Faz menos de um ano pra mim.”

Eu tinha que tentar alguma aproximação, alguma conversa. Alguém tinha de saber de alguma coisa por ali. E se eu não conseguisse nada por vias da informalidade, poderia inventar que estava realizando uma série de reportagens sobre cafeterias e assim coletar informações que me fossem úteis.

“Gostei muito. Um lugar assim faz falta nesta cidade louca.”

“É, isso eu também acho.”

Na verdade, eu esperava algo mais antigo, mais tradicional, eu talvez influenciado pela bela fachada em madeira escura, lembrando a parede externa de uma cabana, tábuas se sucedendo na horizontal, formando uma espécie de sobreposição de ripas inclinadas.

“Desculpe, qual é o seu nome?”

“É Hermes.”

“Hermes. Certo. Olha, Hermes, eu trabalho com imóveis. E ouvi falar que este café está à venda. É verdade?”

“À venda? Não. Não sei não. Acho que não. Não ouvi falar nada disso.”

“O gerente está aí?”

“O dono, você quer dizer?”

“O dono, tudo bem.”

“Não. Ele vem mais à noite.”

“Como ele se chama?”

“É o seu João.”

“João… do quê?”

“João Yuprés.”

“João Iuprés… Como se escreve isso?”

“Com ípsolo.”

“Ahn… Tem algum telefone dele que você possa me passar?”

“Peraí, vou pegar um cartão.”

Entregou-me o cartão, agradeci. Ali estava o nome completo. Administração de empresas. João Yuprés de Feijó. Dados para contato. Tudo certo. Mas algo me incomodou nessa sequência. Parecia artificial. Como um nome inventado. Algum resquício da infância, talvez. Mas não era isso que me interessava. Eu não pretendia ligar para esse tal Yuprés. Minha ideia era outra. Queria cruzar seu sobrenome com o das mulheres do governo ou com o de qualquer outra que eu encontrasse nas redes, que pudesse ser ela. Isso me fazia otimista e próximo de descobrir, quase num instante, a identidade daquele fantasma.

“Hermes, me diga. O seu Yuprés tem família? A família participa da administração, aqui, do café?”

“Não…”, ele respondeu devagar, em dúvida. “Que eu saiba, não. Ele é separado. Tem uma filha que mora com a mãe. Mas é em outra cidade. Tá na universidade já, ela. E uma irmã que trabalha no governo.”

Disfarcei ao máximo minha reação, com tendência a desequilibrar-me da banqueta, que consegui conter a tempo. Frieza de astronauta. Tomei mais um gole. Toquei a colherinha. Embora fosse isso mesmo o que eu procurava, não pensei que pudesse, de fato, chegar a algo assim consistente em tão pouco tempo. Praticamente, no mesmo dia!

“Trabalha… no governo? Que incrível. Deve ser muito bom ter um trabalho desses, imagino. E como ela se chama?”

“Ele chama ela de Paquinha.”

“Paquinha? Mas… o nome dela…?”

“Apelido dela, desde menina.”

“Mas o nome dela, de verdade, você sabe?”

“Ele sempre chamou ela assim.”

Revi, num instante, mesmo sem tê-la memorizado em detalhes, a lista que eu tinha conseguido, e recordava que nenhuma das mulheres elencadas tinha um nome que pudesse gerar um apelido como aquele. Nenhuma delas se chamava Paula ou Patrícia, alguma sílaba inicial que puxasse Paquinha. Entendi que deveria procurar mais nomes. Mas não sabia ainda onde buscá-los.

“Vem aqui, mais perto. Deixa eu te falar uma coisa, Hermes. É uma coisa à toa, mas se puder me ajudar… Se eu te mostrasse umas fotos, você a reconheceria?”

“Quem?”

“A Paquinha.”

“Fotos?”

“Fotos. Imagens dela. Sim.”

“Você é da polícia?”

Cortei imediatamente. Não poderia intimidá-lo: precisava dele como de um aliado.

“Não, não, não. Não sou polícia nada. Não mesmo. Trabalho com imóveis, já disse. Me responde: se eu te mostrasse umas fotos, você saberia dizer qual delas é ela?”

“Ela?”

“Ela, a Paquinha.”

“Não.”

“Não?”

“Eu nunca vi a cara dela na vida. Que eu saiba, ela nunca veio aqui. Se veio, eu não vi. E eles se falam pouco.”

Uma mulher bem vestida chegou, sentou-se à quina arredondada do balcão, perto da porta. Ergueu um dedo educadamente.

“Dá licença…”

O atendente se deslocou, foi até a recém-chegada.

Eu já tinha o bastante, para uma primeira visita. Qualquer migalha valia ouro para mim. E já estava atrapalhando o trabalho do meu novo amigo, a quem tinha muito que agradecer, pela produtividade do diálogo. Ele atendeu à freguesa, voltou ao fundo do balcão, perto de onde eu estava, ficou lavando alguma coisa na pia.

“Hermes, faz favor. Quando puder, vê pra mim um maço de Concert.”

Ele enxugou as mãos, parou em frente a uma estante de vidro junto ao caixa, mas dirigia-se a mim como se eu pudesse enxergar de longe.

“Qual? Esse faixa verde, crédito de carbono?”

“Não, não. Esse mais forte aí.”

“O faixa vermelha. Tá.”

Agradeci sinceramente.

“Muito obrigado por tudo, parceiro. Você foi muito gentil.”

Toquei meu personal, paguei o cappuccino, o cigarro, e saí.

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