Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 11

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Passei o final de semana olhando, periodicamente, a tela do personal e esperando alguma nova palavra do emissor misterioso. Cheguei a perguntar a ele se estava , se queria dizer algo mais, qualquer coisa que fosse, o que se revelou completamente inútil. Poderia tentar um contato com as autoridades, tentar identificar a chamada. Mas para quê? Talvez fosse justamente uma denúncia contra alguém da polícia o que esse estranho, de linguagem sucinta, pretendia me comunicar. Como saber? E essas poucas mensagens recebidas não me permitiam quase nada em termos de sinais interpretativos, a não ser que meu interlocutor morava em minha mesma cidade, ou em algum distrito muito próximo, já que escolhera o tal Café Silene para esse nosso encontro improvável.

Em geral, não sinto medo de nada, e isso já me proporcionou riscos reais contra meu bem-estar físico – sendo mais direto, riscos de morte. Eu comentava com meu pai sobre isso, ele confessava que também se sentia assim, era de sua natureza. Havia em nós certa impulsividade congênita frente a situações desconhecidas. Mas ele sempre lembrava que era preciso controlar isso, conter-se, ponderar, manter sob controle essa tendência que parecia pouco vantajosa, pois quem tem medo procura preservar-se com mais empenho do que o fazem indivíduos como nós, destemidos e inconsequentes. Eu chegava perto de extremos perigosos, que subestimava, mas isso, a bem da verdade, em raras ocasiões. Na maior parte do tempo, era tudo inofensivo mesmo. A morte me acenava, mas não me matava. Já fui assaltado duas vezes: entreguei ao bandido o que tinha de entregar, virei as costas e segui minha vida, incomodado por ter que providenciar, em seguida e no menor tempo possível, os itens subitamente subtraídos de meu cotidiano, de minha vida prática. Não senti medo. Não sinto medo. Compreendi de imediato a situação, surpreso por não ter percebido a aproximação do delinquente, mas, à parte isso, minha pulsação não se alterava quase nada. Uma frieza de astronauta, comentou certa vez uma colega de universidade, quando eu lhe contava algo sobre mim – o que considerei um pouco forçado e também anacrônico.

Dentre as escassas recordações com minha mãe, esta, algumas vezes recontada mais tarde por meu pai e que se alinhava com minha memória das falas dela, voltava-me de maneira singela: “Seu pai tá parecendo um bode, com essa barbicha aí.”. Ele estava começando a usar um cavanhaque, que não era a preferência de sua namorada-minha mãe. “É o papai bode”, eu ria, apontando seu queixo. Ele então me encarava com uma expressão estática, olhos arregalados, simulando um bode assustador. Em seguida, me atacava com cócegas, e eu ria quase sem controle disso tudo. Depois da morte dela, por um motivo qualquer, ele tornou a deixar a barba toda crescer, hoje cheia e grisalha.

Eu era pequeno, e brincávamos de esconder, no bosque do fim da rua, próximo de casa. Ele me contava histórias de bodes (bodes vermelhos, bodes amarelos, bodes azuis…), que me encantavam, e eu passei a chamá-lo de Papai Bode, por causa de seu criticado cavanhaque. Vez ou outra, eu me perdia dele nessas brincadeiras, entre moitas, árvores e arbustos. Não conseguia seguir por um rumo qualquer, pois parecia que, em vez de identificar o caminho de volta, ia adentrando mais e mais a mata sem sinais de orientação – pelo menos para mim, naquela idade. Eu o chamava, tenso: “Papai Bode, cadê você?!”. Ele ouvia, sabia que eu andava ali por perto, mas fingia ignorar meus apelos, mantendo o tom de suspense da brincadeira do esconde-esconde. De minha parte, porque me entendia verdadeiramente perdido, acabava tomado por uma crescente agonia, enquanto passava por uma trilha e outra, procurando e chamando por meu pai, sem resultado. Começava a me preocupar nervosamente, pensando que o havia perdido, mais do que eu estivesse propriamente perdido, por confusão minha: não que eu me houvesse perdido, mas que ele se houvesse perdido de mim. Então, ele aparecia de surpresa, saído de algum lugar bem próximo, uma árvore ou uma moita alta, e me abraçava. “Ahah! Te peguei!” Eu o abraçava com força, à altura das pernas, amedrontado, trêmulo, quase chorando, e pedia: “Papai Bode, cuida sempre de mim…”. Ele me erguia, me colocava sobre seus ombros, ao redor do pescoço, como costumava fazer, eu o agarrava com toda força, sua cabeça e cabelos, suas mãos grandes me amparando. “Cuido sim, meu querido. Cuido sempre de você. Agora vamos, vamos voltar pra casa.”

Esses medos antigos ainda me contavam histórias. Depois que mamãe morreu, tive medo de perder meu pai, o que se justificava naquela minha idade, naquela circunstância, e que depois se dissipou naturalmente, enquanto eu o tinha comigo, enquanto cresci e vim para a capital, estudei, iniciei minha carreira no jornalismo midcom, enquanto ele prosseguia com sua carreira no magistério, suas aulas na modesta escola pública local, e enquanto ele, também, renascido da doença e refeito do luto, voltava a namorar.

Ocorre que minha curiosidade, tão congênita quanto qualquer outra característica que não se assimila das situações externas, somada a algumas descargas suaves de adrenalina, costuma moldar decididamente minhas atitudes em certos momentos. É como se eu soubesse de antemão que iria me decidir por uma opção ou outra, mesmo avaliando racionalmente que seria melhor não me atrever a nada, a nenhuma delas. Sobre o convite mais recente, especial e incomum, o que eu tinha a perder? Se fosse um trote, eu voltaria para casa: vida que segue. E não havia motivos materiais, reais, para que eu fosse vítima de alguma cilada engenhosa, como nas histórias em quadrinhos, um sequestro articulado ou simplesmente um cerco, forçando-me a alguma rendição, à submissão, à entrega de qualquer item de interesse: eu não tinha a combinação de um cofre, não cuidava de nada que envolvesse valores, não, nada disso parecia provável, por mais que eu inventasse, em minha imaginação agora ativa, como faziam os antigos roteiristas do cinema, um procedimento de motivação razoável. Minha vida andava mesmo declinando a alguma nova fase entediante, mal pontuada por certa irritação e indignação por minha própria passividade, e talvez essa novidade estranha viesse mesmo em boa hora.

Busquei por Café Silene. Observei a localização, a imagem do estabelecimento, da rua, a distância do ponto onde eu estava, por aeros, por veículos terrestres e a pé.

Fui sozinho ao Prime Time, na noite dessa segunda-feira: tomar uma cerveja, calcular o tempo. Também filosofar um pouco. Avaliar minha falta de medo e minha falta de coragem. Essas coisas, para mim, funcionavam em conjunto: uma não anulava a outra. Atuando simultânea ou paralelamente, compunham um aspecto mais ou menos neutro de minha personalidade. É isso ser objetivo?

A última mensagem enviada por esse contato anônimo sintetizava a seguinte instrução.

Nesse horário e nesse dia, essa rua estreita fica praticamente deserta. Pelos vidros, você vai ver uma luz acesa no teto do balcão. Uma única lâmpada fraca, à direita de quem entra. A porta da frente estará destrancada. Basta empurrar.

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