Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 10

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

Descemos as escadas juntos, o Gabriel e eu. Na calçada, em frente à porta de vidro, ficamos parados, incomodando o percurso de um ou outro que passava, coisas de fim de tarde. Acendi um cigarro. A porta se abriu, a Cleo saindo. Nós dois olhávamos a rua, por isso não percebemos que ela vinha descendo as escadas. Além disso, nesse dia, ela estava sem aquele seu sapatinho de salto, que picotava os degraus, com seu ritmo próprio.

“Estão esperando carona?”

O Gabriel, com seu rosto sempre impassível, foi quem respondeu.

“Nós vamos tomar uma cerveja aqui perto. Não quer vir com a gente?”

“Sério?”

“Aqui pertinho. Vamos lá conhecer.”

Ela conferiu alguma coisa em seu personal. Guardou-o novamente.

“Vamos. Já que estou tão bem acompanhada…”

Seguimos caminhando sem pressa, ela entre nós, escoltada por dois homens determinados, confiantes e tranquilos – fingindo completa normalidade após aquele dia intenso, de emoções imprevisíveis.

“Está melhor, Cleo?”, perguntei.

O Gabriel a examinou num relance, curioso. Breve e disfarçadamente.

“Um-hum”, ela grunhiu, sem abrir a boca. Para quem é iniciante, não é bom ficar se mostrando sensível e afetada por noticiários: um profissional da imprensa tem sempre uma postura mais definida e segura quanto a isso.

Escolhemos uma mesa na penumbra, uma daquelas cercadas por um sofazinho em forma de U – não havia nenhum lugar vago na parte mais clara do salão.

O Gabriel logo puxou conversa.

“E aí, Cleo? Gostando da redação?”

“Sim, muito.”

Se não fosse um pouco baixo e um pouco flácido, o Gabriel poderia ganhar a vida como modelo fotográfico, quem sabe até como ator de telenovelas. Quase não move a boca ao falar. O queixo nem se mexe. Ele nem sempre foi um jornalista midcom. Era um externo, um infocamp, fazia trabalho de rua, reportagens, entrevistas avulsas, e creio que o mantiveram por certo tempo nisso por causa de sua boa aparência.

“Você mora por perto?”

“Não. Meio longe.”

Ele ia acender um cigarro, ofereceu à Cleo. Ela recusou, disse que não fumava. Dei um cardápio a ela, fiquei com o outro.

“O que vai?”, perguntei como se fosse eu algum atendente ou o chefe da cozinha. “Um cheese salada básico ou algo mais suculento?”

“Estou escolhendo ainda. Sou vegana.”

“Mesmo? E eu, vegetariano.”

“Ah, que coincidência”, ela sorriu. “Queijo e ovos ainda?”

“Ainda. Ovos, quase nada. Mas estou a caminho.” Voltei-me ao cardápio.

“Vamos pedir esses veggys aqui então.”

“Ah, ótimo! Eu não tinha visto.”

A atendente parou ao nosso lado, quieta, nem disse boa noite, pronta para anotar o pedido.

“Cerveja, você toma?”, perguntei. “Vou querer uma Tincobell.”

“Tomo. Eu gosto da Blue-F.”

“Ok. Gabriel, escolheu?”

Ele pediu Morgana Pielsen e um carne e queijo “no capricho”, como se isso mudasse alguma coisa.

As bebidas chegaram, brindamos discretamente, para começar. Acendi um Green Forest, puxei uma primeira tragada, sentindo a força fraca de seu prazer característico.

“Que dia infernal, não consegui fazer nada direito”, declarou o Gabriel, sempre tranquilo em suas expressões faciais. Só quando passou a abocanhar seu sanduíche, estraçalhando-o com boa vontade, é que pareceu surgir uma oportunidade de observar seu rosto se contorcendo um pouco, pelo menos a parte inferior. Alimentando-se para continuar sendo assim como é: impassível, indiferente, um exemplo de serenidade. Se não fosse um homem biológico, com genitália, seria mesmo um anjo: neutro, impessoal, quase invulnerável a influências externas. Eu nunca o vi alterado, rindo, levantando a voz ou revoltado com alguma coisa. Um anjo.

Talvez meia hora tenha se dissipado na penumbra e na fumaça fina que preenchia o espaço ali, entre conversas pequenas, quase todas repetindo o que havíamos presenciado durante o dia, como se precisássemos confirmar detalhes, um com o outro, assegurando que nada nos teria escapado.

“Colegas, vão ficar mais? Porque eu preciso ir. Marco, vê a minha parte aí.”

“Tranquilo. Toque nos seus itens, deixe a taxa por minha conta.”

O Gabriel se despediu, sem pressa, com atenção especial à Cleo, que, na penumbra, perdia sua palidez e parecia uma mulher mais madura, menos singela, e seus olhos naturalmente brilhantes cintilavam, simulando, em conjunto com sua maquiagem em tons de azul, alguma impressão talvez equivocada de malícia.

“Até mais, Cleo. Gostei de você ter vindo aqui comigo”, ele disse, cordial e animado, em vez de dizer “conosco” ou “com a gente”.

Pedimos mais cervejas, e parece que só então eu consegui relaxar de verdade, acomodado naquele sofazinho, descendo um pouco o corpo pelo assento, enquanto ela continuava firme, em sua postura disciplinada.

“Gostando de trabalhar com a gente?”, puxei uma conversa desse tipo, e ficamos falando sobre a rotina na redação. Ela foi me passando suas impressões sobre um e outro colega. Isso logo se esgotou.

“Vamos bater uma sinuca? Você gosta?”

“Não. Desculpe.”

“Não, nada que se desculpar. Mas, se um dia mudar de ideia, podemos formar duplas com uns colegas e nos divertir um pouco por aqui.”

Entendi que estava forçando algum estado de animação do qual eu mesmo não me convencia. Queria ser cordial, talvez. Ou ter um final de dia menos trágico, mais reconfortante.

“Foi um dia muito tenso”, ela disse em voz baixa, praticamente desviando-se da proposta.

“Foi sim.”

Uma nuvenzinha de fumaça bem formada flutuou quase à nossa frente, um pouco acima de nossas cabeças, e logo se perdeu.

“Vou tomar só mais uma e ir embora. Tudo bem?”

“Sim, claro. Tudo bem”, respondi, de minha posição fisicamente inferior, meio torto e afundado no assento. Então, ainda me arriscando na mesma chave do bom humor, tentando amenizar a tensão desse dia e dessa noite em curso, falei: “Me diz que o seu namorado não passa nem perto daqui.”.

Ela riu um pouco. “Fica tranquilo. Não mesmo. Ele mora do outro lado da cidade, e a gente nunca vem por aqui.”

Soltei um bloco fino de fumaça, entortando a boca para não incomodar minha nova colega.

“Ele fuma?”

“Quem?”

“Seu namorado”, expliquei rapidamente, movendo a mão com o cigarro no ar.

“Não. Acertou. Eu não namoraria alguém que fuma.”

Tomei mais um gole. Minha Tincobell estava acabando. Fiquei atento à passagem da atendente.

“Você vai a esses bares onde tudo é automatizado, sem atendentes?”

“Ai, não. Detesto esses lugares. Gosto de ver gente: consumindo, pedindo, atendendo, sorrindo… Até mesmo discutindo. E você, aonde costuma ir com a sua namorada?”

Esfreguei um olho, fazendo uma criança choramingona. “Não tenho namorada. Ninguém me ama…”

Ela moveu a cabeça negativamente, sorriso de boca fechada, como se aprovasse-desaprovasse minha imitação bobinha.

“Ei, ei, minha amiga! Mais uma Tincobell aqui, por favor. E uma… Blue-F pra minha confidente.”

“Não, chega. Brigada. Preciso parar de beber, preciso ir.”

“Se não quiser tudo, eu tomo a sua cerveja, não se preocupe. Também gosto da Blue-F, fique sabendo.”

Ela aceitou, e ficamos um pouco mais. Observávamos quase ao mesmo tempo as pessoas por ali, de maneira que não nos olhávamos de frente, cabeças girando sutilmente para um lado e outro.

“Vou te dizer uma coisa”, comecei. “Eu gosto muito da minha profissão. De verdade. Não queria ser outra coisa. Adoro ler, adoro escrever. Pensar, saber, me informar… Mas, faz uns poucos dias, comecei a perceber que me sentia meio diferente quanto a isso, movido por uma impressão estranha sobre mim mesmo. Concluí que ando cansado de ler facultativas, por mais brilhantes que sejam. Acho que elas não deveriam ser valorizadas como são. Não deveriam ter o valor que têm. Afinal, o que são? Meias verdades, meias mentiras…”

“O que é a mesma coisa…”

“Sim, e para que servem? Para testar a capacidade criativa de seus redatores? Puro exibicionismo? Elas serão a forma mais sofisticada da ficção, justamente por não se declararem fictícias?”

A Cleo, um pouco inclinada sobre seu copo, voltou o rosto dessa vez, olhando-me com nova atenção.

“Acho que… a gente sai da universidade sem nem perguntar uma coisa dessas. Porque é tudo tão normal, tão parte da nossa vida, do nosso trabalho…”

“Sim, é. Nós sabemos da história toda, estudamos isso, sabemos como as facultativas começaram a ganhar espaço, a ganhar força, há mais ou menos… três décadas. De como elas primeiro sofreram reações da Justiça, da própria imprensa. No início, eram combatidas, desmascaradas, desmistificadas. E alguns de seus redatores eram impedidos de se expressar.”

“Alguns foram presos. Outros deixaram o país, não foi?”

“Foi. Um ou outro chegou mesmo a ser preso em outro país e trazido de volta para responder às acusações formais sobre o que escrevia ou divulgava em meios audiovisuais, nas redes. Era uma pauta polêmica e efervescente na época.”

A Cleo tomou outro gole, devagar. Parecia ter perdido a pressa de ir embora, interessada em meu desabafo. Não era mesmo comum um profissional midcom reclamar de uma coisa dessas, nem mesmo criticar uma coisa dessas. Ela não só estava participando com sinceridade da conversa como ajudava a pontuar a história recente.

“Foi no tempo do presidente Custódio que isso começou a se intensificar, não foi?”

“Foi.” Tentei encher meu copo, distraído. Só havia um restinho na garrafa, e isso, apenas isso, de maneira inesperada e em alguma proporção, me fez irritado, o que tive o cuidado de disfarçar. “Praticamente, nem se falava nisso antes.”

“E não havia ainda parlamentarismo de paridade de partidos, como hoje.”

“É. Mas será que a ascensão e a naturalização das facultativas têm alguma relação com a mudança do regime político?”

Ela também encheu seu copo, quase copiando meus movimentos, esvaziando sua long-neck. Olhava para a frente, sem piscar. Então, voltou-se para mim, novamente curiosa. Quatro caras começavam uma partida de sinuca – um deles, muito magro, intencionalmente arcado, nada elegante. Logo o som seco das bolas batidas começou a pipocar em meio ao ar embaçado.

“Não sei. Não vejo uma relação direta. Mas desconfio que chegamos ao Mundo Livre com algum grande acordo não divulgado, algo convencionado entre grupos de influência e forças políticas. Alguma coisa que me soa velada, inexplicada.”

“Ou só uma coincidência mesmo.”

A atendente voltou andando rápido, estacou ao lado de nossa mesa como num repente de desenho animado.

“Tincobell!”, garrafa à minha frente, batida firme, substituindo a anterior. “E… uma Blue-F geladinha pra namoradinha!”

A Cleo riu. Eu estava apegado ao fio de minhas reflexões pessimistas, e não tive tempo de achar graça.

“Viu o que já publicaram sobre esses dois canalhas que mataram a menina?”

“Vi. É muito talento mesmo, tenho que admitir. Midcoms que trabalham com isso devem ser muito bem pagos, não acha?”

“São, sim, muito bem pagos. Mesmo os que não são assim, tão bem remunerados, ganham sempre um pouco mais do que nós, de qualquer jeito. Já reparou que, quando há alguma relação com políticos importantes e com gente de poder, as facultativas costumam ser mais numerosas ainda? Mais… rápidas, agressivas. Um senso de urgência, parece. Quase febris.”

Começamos nossas cervejas novas, geladas, promissoras.

“Pra ser sincera, eu nunca pensei nisso.”

“Não sei como, um dia eu percebi assim, por acaso. Passei a observar. Comentei com meu pai, ele também não viu nada de estranho, disse que iria prestar atenção, mas que eu podia estar exagerando, talvez.”

“Seu pai é jornalista também?”

“Não. Professor de Geografia. Aposentado. Um homem simples, inteligente. Muito atento a tudo que passa por ele.”

“E a sua mãe, faz o quê?”

“Ela morreu faz tempo, quando eu era menino.”

“Ah, me desculpe. Que pena… Que aconteceu?”

“Foi uma das muitas vítimas da covid-19. Eu tinha quatro anos. Meu pai sobreviveu por pura sorte genética, o ataque do vírus não o afetou tanto. Eu era criança, como disse, e é claro que eu não entendia nada sobre a relação das facultativas da época, recomendando medicamentos falsos, com a morte de tantas pessoas. Em outra fase, meu pai me ensinou isso. De certa forma, minha mãe morreu por causa das facultativas. Muita gente acreditava no governo federal, que promovia e até financiava essas mentiras todas, ridicularizando pesquisadores gabaritados e autoridades médicas em geral, como parte da estratégia.”

A Cleo acenava lenta e positivamente com a cabeça, conhecedora dessa história toda.

“Já li muito sobre isso, sobre esse período. Além de ter estudado sobre a pandemia na universidade, em História das Facultativas. Matéria do primeiro ano.”

“Isso mesmo, do primeiro ano, lembro. Quando a minha mãe morreu (e tantos outros, na nossa cidade), as facs ainda eram motivo de reações por parte da Justiça e de muitas instituições representativas da medicina, da ciência. Mas essas mentiras medíocres, inicialmente tão mal elaboradas, que hoje definimos como facultativas, estavam começando a se aperfeiçoar e a se expandir, num caminho sem volta.”

“Sim, isso mesmo. E isso é bem documentado. Uma professora de História, quando eu estava ainda nos precedentes, no segundo ano, sabendo que eu gostava de ler e de saber coisas, me indicou um livro muito bom, detalhado, sobre a pandemia e a política nociva que reinava na época. Deve ter sido muito difícil, pra muita gente. Aquela agonia toda…”

Enchi meu copo, tentando não me irritar com o som repetitivo, quase agudo, que chegava regularmente da mesa de jogos, moldando um padrão de frequência. A Cleo estava sendo compreensiva, participante. Atenta e um tanto mais fluente. Uma boa companhia, como eu não esperava.

“Meu pai não teve tempo de atinar com aquela farsa. No início, pouco se sabia sobre a doença, e ele se recuperou por conta de seu próprio organismo, graças à ação de anticorpos já constituídos, assim como saramos de um resfriado, uma gripe ou coisa parecida, com seu ciclo natural, sem tomar remédios. Em dois ou três meses, depois que o governo federal alardeou insistentemente que o vírus não era perigoso, pesquisadores de países desenvolvidos deixaram claro, com suas experiências, que as prescrições vindas do nosso presidente e de seu entorno não passavam de água com açúcar, sem nenhum resultado real. Em suma, uma fraude.”

“É. Foi pouco tempo depois mesmo. E essa campanha mentirosa se estendeu por muito tempo, infelizmente. E por falar em facultativas, semana que vem tem a entrega do prêmio Fac Plus Ultra, lembra?”

“Sei”, respondi sem ânimo. Quase um fantasma falando.

“Já anunciaram os finalistas. Os seis serão entrevistados, dois dias antes da transmissão da entrega. Este ano, aumentou o prêmio em dinheiro, você viu? É muita grana, não é? E só aumenta, a cada ano…”

“Muita. É sim. Escuta…”, olhei fixamente para o copo gelado, pela metade, que eu movia lentamente entre os dedos. “Eu sempre tive alguma consideração pelo talento desses redatores, é sério. Mas, com o tempo, passei a antipatizar um pouco com eles. Parece que têm todos um mesmo perfil. Alguma autoconfiança além do normal, alguma arrogância, alguma motivação forte e permanente. E tudo isso para fabricar distorções da realidade.”

“É o trabalho deles.”

Tomei outro gole espesso, gelado. Voltei o copo à mesa com certa agressividade.

“Olha, Cleo, eu conheço pouco você, mas sei que merece minha confiança. Eu sinto isso.”

“Brigada. Pode confiar sim. Mas não precisa me dizer nada que não quiser. Não vou perguntar nada, ok?”

Eu quase a interrompi ao iniciar a fala seguinte, sem nenhum interesse por esses pequenos acordos avulsos.

“Eu ando muito impaciente para tolerar facultativas. Elas neutralizam tudo: meio ambiente, a política deste governo, de destruição para favorecer aproveitadores, nossa educação jogada às traças, universidades sem verba, praticamente nada para pesquisas…”

“Calma”, ela pousou a mão sobre meu antebraço, solidária. Sim, eu estava me exaltando. Até mesmo me fazendo piegas ao enumerar itens que geralmente os políticos repetem e enfatizam em suas campanhas eleitorais, ricas em hipocrisia.

“Estou cansado de tolerar quem admira facultativas. Toda essa gente que parece tão capacitada, mas que não se importa com nada.”

A Cleo provavelmente ficou em dúvida sobre se eu me referia aos autores de facultativas ou aos seus leitores, que os seguem e aplaudem. Ouvia atenta, sem me rebater, sem tentar amenizar meu nervosismo com palavras de compensação. De certa forma, ela parecia estar diante de algo novo, esse meu discurso indignado. Tocava meu braço, inclinava-se em minha direção, demonstrando compreensão e companheirismo. Nisso, os jogadores de sinuca riram alto de alguma bobagem que dividiam entre si. Eu me contive: não queria cultivar a impressão injusta de que eram todos alienados e fúteis, sabia que isso não era real. Mas era, no momento, uma impressão forte, desagradável e convincente.

“… destruindo o hábitat, o lar dos animais. Incendiando áreas inteiras, deixando-os sem defesa, sem proteção, sem alimento – e isso para os que sobrevivem. É triste ver pequenos mamíferos desesperados, tentando escapar das chamas, morrendo em agonia, carbonizados…”

A mão dela, pousada em meu antebraço, me pressionou um pouco.

“Eu também sinto muito por isso. Sempre gostei de animais, tenho muita pena…”

“E tudo isso para satisfazer a ganância desses pequenos grupos de canalhas, que um dia vão morrer também, deixando um legado infame, lamentável, devastador…”

“Muitos já escrevem sobre isso, você sabe. Há livros, artigos em revistas, documentários televisivos de qualidade, com ênfase em denunciar todo esse processo criminoso. Estamos no Mundo Livre. Todos podem produzir matérias denunciando esses crimes.”

“Sim, mas as facultativas parecem atuar no sentido contrário, pondo em dúvida todo esse trabalho honesto dos ambientalistas e…” Passei as mãos pelo rosto, descendo da testa até o queixo. “Me desculpe. Eu mesmo queria ter um momento de descontração, de bom humor…”

“Não, não, tudo bem. Essa conversa toda me interessa muito, saiba que sou assim, sempre gostei de estudar, de saber… Eu entendo sim, pode falar à vontade.” Na mesa ao lado, um homem sucumbia a um acesso de tosse, forte e contínuo, e alguém o amparava. “Gosto de pensar, de aprender, e acho que sempre aprendo um pouco mais com você. Eu entendo, sim, o motivo da sua indignação. Mas a gente precisa respirar um pouco e… quem sabe, encontrar num meio de mudar as coisas.”

“Tem razão.” Enchi meu copo. Bebi mais.

“Talvez você precise de férias. Já pensou nisso?”

“Não gosto de férias. Gosto de trabalhar, é o que eu mais amo fazer.”

Ela me soltou e aprumou-se, lenta e discreta.

“Ou talvez seja o que restou.”

“Como é?”

“O que restou: o que se tornou possível amar.”

À frente de nossa mesa, passou uma garota muito embriagada, rindo muito, com muito gosto, emergindo do ponto mais enfumaçado do salão, avançando aos tropeções, auxiliada por um casal que a conduzia à porta da rua, provavelmente.

“Faz tempo que não vejo meu pai. Talvez eu emende uns dias e fique lá, com ele, um pouco.”

“Faça isso. Pode lhe fazer bem. Mas eu entendo. Você gosta de trabalhar porque o seu… o nosso trabalho é uma extensão dos nossos estudos, da nossa atividade intelectual: ler, escrever, pensar… Também gosto muito. Nosso trabalho não é só o que fazemos. É o que somos. Gosto de saber sempre mais, de superar a mim mesma…”, agora era a jovem entusiasmada quem tagarelava, motivada por seu novo emprego, trazendo consigo tecidos irregulares, mal costurados, de ideais que afrontam o mundo, levando puxões e mordidas dilacerantes, sendo rasgados aos poucos, isso quando não acabam carcomidos por traças ou manchados por fungos – ou sepultados pelos próprios idealistas, por nós mesmos.

E era essa jovem recém-formada, de rosto redondo e ombros abaulados, olhos grandes e faiscantes, aprendiz de midcom digital e que eu agora avaliava com certo dó, quem me consolava nessa noite, a um canto desse reduto enfumaçado, em meio a murmúrios, risadas e música vulgar, ecoando as batidas que se repetiam, fracas ou agressivas, nas bolas numeradas, vindas do espaço à frente, subindo um degrau. Era ela quem me detinha, para que eu não desmoronasse sobre mim mesmo. Tincobell. Cleo. Gratidão enevoada.

“Eu entendo, porque sempre gostei de estudar, você ouviu, não é? Não consigo pensar em mim mesma como uma pessoa inculta, sem instrução, sem curiosidade, não sei como seria isso. Não sou como o De Castro, esse primeiro-ministro ridículo, ignorante, tosco. Viu a asneira que ele falou semana passada sobre o ensino da Matemática?”

Era ela retomando o bom humor, não eu. Tive de me render e me sentir grato.

“Claro que vi. Foi horrível. Os assessores dele devem ter sofrido um estresse extra para disfarçar e contornar aquela gafe medonha.”

Lembramos mais gafes do primeiro-ministro. A Cleo conhecia todas, boa aluna que era, e isso me divertiu de certa forma, principalmente me fez mais calmo, com a cumplicidade sincera dela.

“Você está tenso. Se preocupa muito com isso, não é?”

“Eu não me preocupava antes.”

“Eu entendo. Nem sempre as coisas são justas. Há muitos meandros nas leis…”

“Um crime contra a vida: não precisamos de leis para entender isso.”

Melhor ir embora. Ou eu iria fazer desfilar meu pessimismo outra vez, entre aquelas mesas, aquele ar nublado. Enquanto caminhávamos para a saída, passando pela parede com a exposição de fotos, ela identificou uma celebridade, o vocalista de uma banda de popblue-sertanejo, morto em um bizarro acidente aéreo.

“Olha só! Ele também passou por aqui”, apontando a imagem, entre curiosa e triste.

Não tive coragem de lhe revelar que a maior parte daquelas fotos era fabricada, que aquilo era, no geral, uma desavergonhada fraude.

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Comentários

Uma resposta para “Teus olhos na escuridão. 10”

  1. Avatar de Elisângela Gusmão

    O equilíbrio entre ser “Cleo” e Gabriel, entre o ying e o yang, neste reside a relativa “felicidade”. Elis

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