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Teus olhos na escuridão. 9
Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastador.
No dia seguinte, uma sexta-feira, a realidade, quase sempre previsível mas por sorte e por toda parte imprevisível, trouxe novo fôlego à mídia televisiva – e que fôlego!, já que se tratou de uma caçada humana pela principal cidade do estado do Rio de Janeiro, metrópole a um tempo perniciosa e paradisíaca. Cerca de dois meses antes, o desaparecimento de uma garotinha de oito anos havia movimentado uma comunidade da zona norte e originado fortes protestos dos moradores locais. No mesmo dia, com o esforço comovente e sem trégua dos familiares da criança, a campanha ganhou dimensões nacionais. O rosto da menina sorria por todo o país, contando com a divulgação sem limites de todas as mídias disponíveis. Autoridades e uma vasta legião de voluntários engajaram-se, dia e noite adentro, em uma busca sem precedentes pela cidade, tendo ainda se estendido o alerta a toda a malha rodoviária próxima, caso o suposto sequestrador já houvesse deixado o centro urbano rumo ao interior do estado. Nem se falava em sequestro propriamente: a família da menina era formada por pessoas de baixa renda, moradores de uma casa rústica e mal acabada, na parte mais baixa de um dos morros urbanizados da região. Dois líderes de facções criminosas diferentes divulgaram mensagens em vídeo garantindo que nada sabiam sobre o caso e que nenhum de seus sectários estava envolvido com o sumiço da criança – um deles até desejou boa sorte à família. Apesar de todo o empenho de muitas pessoas, envolvendo um sincero e determinado esforço coletivo, a menina não foi localizada. Nada, nenhum sinal dela foi encontrado, e as buscas foram cedendo a uma gradual inação, carregadas, no entanto, de uma atmosfera densa de tristeza e revolta. Perto de uns vinte dias depois, uma testemunha anônima indicou a identidade do raptor – que, aliás, eram dois. As investigações confirmaram a narrativa e surpreenderam a todos, porque os criminosos eram rapazes de famílias média alta, apadrinhados por políticos influentes, amigos de seus pais. Encurralado por agentes de segurança, um deles decidiu confessar o crime: escoltado por ilustres advogados, entregou-se à Justiça e contou em detalhes as atrocidades a que haviam submetido a garotinha, drogando-a e seviciando-a por vários dias em um cativeiro, até que ela sucumbisse aos maus-tratos. Seu corpo, abandonado nos fundos de um hospital infantil, foi encontrado quase ao mesmo tempo em que a testemunha denunciava o crime. O rosto da pequena vítima fora dramaticamente desfigurado por algum tipo de ácido, provavelmente com o propósito de dificultar sua identificação. Tão logo o assassino confesso pipocou em todas as redes nacionais, seu parceiro de aventuras desapareceu. Nos dias que se seguiram, enquanto era procurado com alta prioridade, num esforço conjunto das autoridades policiais, seu advogado veio a público solicitar que cessassem as buscas, que aquilo tudo era um exagero frenético e desnecessário, que seu cliente viria a público assim que vislumbrasse o momento oportuno, que não havia absolutamente nenhuma prova contra ele – e todo o discurso padrão de um defensor de alta linhagem, lembrando que o suspeito tinha endereço fixo e enfatizando outras superficialidades, o que foi interpretado por muitos como uma clara estratégia para ganhar tempo, além de suscitar a hipótese, bastante plausível, de que o jovem em questão já teria, convenientemente, deixado o país. Mas aconteceu que uma outra testemunha, casual e improvável, o identificou enquanto atravessava um dos saguões térreos do edifício de luxo onde morava e onde ele, agora se sabia, estava escondido, auxiliado por outros de sua estirpe. Ao amanhecer dessa sexta-feira, tropas especiais cercaram o condomínio. Entraram a esquadrinhá-lo, centímetro por centímetro, contando com uma quantidade inusitada de agentes, por fim dando como certa a fuga do criminoso – que havia conquistado misteriosamente a simpatia de algumas mulheres, provavelmente por ser um rapaz sorridente e bem apessoado, conforme as imagens divulgadas insistentemente pela imprensa. Começou então uma caçada histérica e arrepiante por toda a cidade. Praticamente, todos haviam parado alguma coisa do que faziam para participar da empreitada ou para acompanhar, pelos variados meios midiáticos, confortavelmente mas filtrando grandes porções de adrenalina, o desenrolar da ação ininterrupta que seguiu pela maior parte do dia.
Na redação, emitíamos boletins atualizados, fornecidos por nossos parceiros e por agências de notícias conveniadas, algumas delas situadas em países vizinhos, enquanto eu e mais alguns, direcionados pelo Edison, que estabeleceu com agilidade e muita competência a divisão de tarefas e os enfoques a que cada um de nós deveria se apegar, produzíamos tópicos sobre o caso.
A Diana ficou um tempo comigo, acompanhando, pela minha tela, a sequência de eventos adrenalínicos. Ela é uma negra jovem, simpática, e hoje estava nervosa, sensível, dizendo que não conseguia fazer nada direito, “tô fodida com tudo que eu tenho ainda pra terminar”. Nenhum de nós conseguia, eu acho. Eu também estava tenso, mas havia um clima de cumplicidade entre nós, e eu lhe pedi, bem-humorado, que parasse de roer as unhas daquele jeito e me ajudasse a “encontrar o bandido”. Peguei sua mão, aberta sobre a palma da minha, como se a examinasse; seus dedos estendidos, quase uma imagem publicitária, eu apreciando a cor intensa dos esmaltes que usava. Ela muda seu estilo de tempos em tempos – mas os esmaltes fortes são uma constante. No momento, anda usando roupas mais fechadas e trancinhas nagô, expondo e definindo sua cabeça e seu pescoço, de belas proporções: um perfil cativante, suponho, para um artista atento.
“Que tal trazer uma água pra nós?”, inventei.
“Tá.”
Ela se ergueu da cadeira giratória quase num susto, foi até a copa, obediente. Percebi que tinha conseguido acalmá-la um pouco (eu mesmo seguindo em meu estado próprio de tensão disfarçada), tanto que ela me trouxe um copo d’água, trocou duas ou três frases curtas em tom de agradecimento e voltou ao seu ponto de trabalho.
Em outro momento da tarde, a Cleo passou por meu ponto, com uns papéis que parecia apertar entre as mãos. Ficou olhando a tela, irresistivelmente. Imagens aéreas, em movimento, dos principais viadutos e pontes da cidade. Locutores incansáveis.
“Sei que é meio estranho perguntar isso agora, mas a Iara me pediu que eu desse andamento a um tópico sobre a inauguração, pelo governo federal, de um centro de treinamento de atletismo, e eu… eu…”, empacou, claramente alterada.
Que história era aquela? A Iara devia estar de brincadeira com a Cleo, algum trote tardio sobre a novata, pois aquilo não tinha a menor chance de se contextualizar num momento-dia como aquele.
“Vem cá, senta aqui do meu lado”, apontei uma cadeira próxima, na qual, há pouco, a Diana roía unhas.
Toda a equipe, desde cedo, estava irregularmente posicionada, uns levantando-se e não retornando, indo a campo ou se reunindo com outros na copa e ao redor da mesa do Edison, que havia deixado a porta de sua saleta aberta o tempo todo.
‘Vou te atrapalhar?”
“Não, fique tranquila. O que eu estou escrevendo agora não deve sair hoje mesmo, e quero acrescentar alguma pesquisa sobre casos semelhantes.”
“Ah, vou aceitar sim. Posso? Me desculpe, não estou me sentindo bem.”
A Cleo parecia trêmula, sensibilizada com o caso todo, não só por aquele momento em aberto, com o assassino em fuga. Seus olhos grandes e lacrimejantes agitavam-se com tristeza e insegurança. Tentei manter a neutralidade, para que ela se sentisse melhor.
“Em dias assim, não é fácil a gente ficar indiferente, eu sei. Mesmo com meu tempo de profissão, não consigo me fazer objetivo por muito tempo em condições dessas. Fico assimilando tudo e me controlando, me controlando… Fingindo que sou capaz de não me envolver pessoalmente com as coisas.”
Nesse momento, as notícias davam conta de que o fugitivo havia sido visto próximo a um resort balneário, ponto de encontro de pessoas economicamente avantajadas, lugar que ele talvez conhecesse a fundo, de ter se hospedado lá alguma vez, ou mais vezes, e que, por isso, possivelmente lhe permitisse uma chance maior de se esconder por mais tempo. Ou talvez fosse apenas uma conveniência: ele podia estar se deslocando ali por perto e viu a oportunidade do esconderijo. As sirenes ecoavam por toda a área próxima da estância. Drones e aeros policiais giravam no espaço acima. Ouviu-se o som distante de um disparo, mas ninguém viu nada. E poderia ter sido um estampido qualquer, em meio à confusão e ao ruído causado pelos muitas pessoas hospedadas, pegas de surpresa e interrompidas em suas amenidades, pois as forças especiais tinham acabado de invadir o local. Os hóspedes saíam às pressas, em pijamas, trajes de banho, qualquer tipo de indumentária que estivesse à mão. O país inteiro acompanhava o cerco. Minutos depois, vasculhando a garagem coberta, próxima ao ancoradouro, um dos agentes desconfiou da lona branca que cobria um dos barcos, por não estar devidamente ajustada e assim destoando do padrão das demais. Acercaram-se do barco, ergueram a coberta protetora: ele estava ali, quase desfalecido, sangue em boa parte do rosto e sobre o peito, mandíbula deslocada por um tiro mal-sucedido com o qual pretendia dar fim à sua juventude privilegiada. Ainda assim, teve forças para erguer sua arma com agilidade e ferir um dos agentes, que revidou rápido e o matou no local.
Essas imagens foram transmitidas ao vivo. Logo posicionaram o corpo do fugitivo sobre uma maca dobrável e o retiraram do resort, às pressas, talvez supondo poder salvá-lo ou apenas com o fim de observar o protocolo que atende a esses casos. Enquanto narrava a sequência seguinte, sustentada por veículos policiais terrestres em alta velocidade, seguindo pela avenida da praia rumo ao hospital mais próximo, a emissora repassou todo o caso, desde o início. A Cleo segurou meu antebraço e começou a chorar.
“Pobrezinha… Como deve ter sofrido…”, levou a mão a cobrir a testa e os olhos, inclinando-se sob o peso de soluços contidos, e parecia envergonhada. Logo ela se recompôs, suspirou um pouco trêmula e me pediu desculpas.
Passavam por minhas ideias interrogações mais ou menos desafiadoras: que tipo de facultativas os redatores mais talentosos poderiam escrever sobre um crime hediondo como aquele, com tal desdobramento convulsivo, eletrizante e acompanhado ao vivo por uma das maiores audiências dos últimos tempos? Pois não é que logo vieram a público algumas delas? Um tópico questionava a inocência do rapaz que foi morto. Negava a relação dos dois amigos com políticos importantes, embora houvesse circulado uma foto de um deles abraçado a um senador da República, em uma festa para poucos convidados. Em alguns dias, certas facultativas quase invertiam o que basicamente consideramos ser o justo, culpando a ação agressiva dos policiais, a negligência dos pais da menina por terem permitido que fosse sozinha à escola e trazendo a insinuação de que os jovens pretendiam apenas fazer uma brincadeira, quando foram surpreendidos pela morte da criança, cuja saúde frágil não era anunciada por seus pais nem mesmo aos mais próximos, em sua comunidade, o que, segundo os autoconfiantes autores de facultativas, merecia ser criticado como uma omissão injustificável.
Estou acostumado a esse tipo de coisa. Estudamos essas técnicas na graduação, e muitos admiram a capacidade dos redatores de facs por encontrarem pontos vulneráveis em pautas que, à primeira vista e sob um olhar generalizante, nem mesmo oportunizariam qualquer chance de serem questionados. (Há uma espécie de campanha velada do Ministério da Educação para que a disciplina Facultativas, que trata de como redigi-las e não de estudá-las, seja incorporada aos cursos precedentes, iniciando os mais jovens, potencialmente universitários em breve, nesse caminho profissional. Como é uma prática muito específica do jornalismo midcom, as secretarias estaduais de educação têm protelado esse debate, que não tem nada de urgente ou prioritário.) Estou acostumado, eu disse, como muitos de meus colegas, como muitos profissionais da imprensa e dos meios midiáticos em geral. Mas, nesse dia, senti um arrepio diferente. Queria preservar meu profissionalismo, minha objetividade, minha racionalidade aplicada apenas às técnicas do discurso, porém, alguma coisa parecia estar despertando em meu cérebro e derretendo em minha crença, um e outro talvez afetados pela comoção recente: uma aversão especial a essa casta de profissionais. (A Cleo, abalada e tão próxima, talvez tenha me influenciado sem saber.) Assim como advogados brilhantes defendem o mais cínico dos assassinos, os autores de facultativas também são respeitados e admirados por muitos. Não entram aí, ao que tudo indica, critérios associados a itens como ética e caráter. O Mundo Livre fez evoluir muito a tecnologia e também criou profissões novas, muito promissoras, como a dos autores de facs, um subproduto da profissão jornalista midcom, uma profissão como outras, dentre as que exigem talento e criatividade: publicitário, arquiteto, roteirista de séries televisivas… Fiquei distraído com tais divagações, afetado por uma tensão especial, contida, remoendo um mal-estar incipiente mas considerável.
Continuei conversando com a Cleo até que ela se acalmasse. Pensei em me oferecer para acompanhá-la até sua casa, uma vontade impulsiva, imediatista, mas calei-me a tempo, antes que ela pudesse, por alguma razão, interpretar-me mal. De qualquer forma, minha colega tinha um namorado para cuidar, e que cuidasse dela.
“Hoje precisamos todos de uma bebida”, eu disse.
Estava anoitecendo, meus colegas já escasseavam por ali. Eu também me organizava para ir embora, seguir mais dos desdobramentos desse dia, em casa, depois de um necessário banho. Já tinha desligado meu equipamento, estava de pé, perguntando a mim mesmo, em voz baixa, se não estaria esquecendo algo, quando meu personal, com seus verdinhos, passou a viver. Toquei o visor. Outra vez a mensagem estranha, quase neutra, quase engraçada.
Boa noite. Você fuma?
Eu já sabia que não era uma mensagem comercial, o Afluente não permitia isso. Alguém tentava falar comigo. Talvez para vender cigarros mesmo. Quem seria esse sujeito? Não era possível que estivesse falando sério, depois de um dia apreensivo, nervoso e extraordinário como aquele.
Boa noite. Você fuma?
Resolvi responder.
Olá. Boa noite.
Devia ter passado um minuto.
Tenho algo que pode lhe interessar. Me encontre no Café Silene. Segunda-feira. Meia-noite e meia. Que já seria terça-feira, compreende? Leve óculos protetores de sol.
Óculos protetores de sol?! Que bobagem era essa? Ao menos, eu tinha de admitir que se tratava de uma mensagem muito, mas muito peculiar para ficar no nível de um simples trote. Podia ser mesmo que alguém estivesse tentando passar alguma denúncia à imprensa, preferindo não se identificar. Um jornalista midcom (e mesmo um infocamp) não pode perder oportunidades, isso é básico e rotineiro, desde o primeiro ano de estudos. Desde sempre.
Quem é você?
Menos de um minuto.
Delete toda esta conversa. Não vamos mais nos falar por aqui. Espero você no local combinado.
Tom definitivo, de quem punha a conversa a encerrar-se assim. Local combinado? Eu nem disse que estava de acordo.
Quem é você? Como me conhece?
Silêncio de pontinhos flutuantes.
Me encontre onde indiquei. Se não quiser, não vá. Eu desapareço.
Fiquei intrigado com a concisão e a determinação desse sujeito. Parecia já ter decidido por mim. Parecia, não: já se entendia tudo como decidido, estabelecido entre nós. Agora, era comigo: ir ao tal encontro ou ignorar essa proposta estranha, mal consolidada. (Eu desapareço, ele disse.)
Pode, pelo menos, me dizer do que se trata?
Esperei mais do que o necessário para compreender, ingenuamente, que não haveria mais mensagens daí em diante. Agora sim, encerrava-se de vez a sucessão de respostas.
Um toque em meu ombro, era o Gabriel.
“Marco, acabou aí? Estou pensando em tomar umas no Prime.”
“Acabei.” Enfiei meu personal no bolso. “Olha, vamos sim. Preciso comer alguma coisa também.”
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