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Teus olhos na escuridão. 7
Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastador.
Uma quinta-feira, e ficou combinado que, no final da tarde, faríamos uma festinha surpresa para a Alice. A Heleninha aproximou-se de meu ponto, portando uma tablet, seu personal e uns papéis. A caneta vinha na boca, entre os dentes. Pegou-a com a mão esquerda, organizou-se para me abordar – ela é canhota. Chegou falando baixo, anunciando a organização do evento. Seus cabelos curtinhos, de um ruivo queimado, bem avermelhados e escurecidos, já foram azuis e já foram verdes.
“Já cumprimentou a Alice? É hoje o dia dela.”
“Já, logo de manhã. Tenho na agenda eletrônica o dia de todo mundo. Senão, não lembro mesmo.”
“Nem do meu, né, palhaço?”
“Nem do seu, adorável criatura.”
Passava recolhendo a cota de cada um. Toquei meu personal, acertei minha parte com ela. A Heleninha, com seu inconfundível piercing de argola no nariz, outros três básicos no supercílio, de um lado só, tinha esse jeito de hostilizar-brincar. Nada nela inspirava formalismos ou ranços de convenções sociais: era espontânea o quanto podia, sem deixar de ser atenta ao trabalho, um desses casos de astúcia, conhecimento de contextos, adequação e adaptação. Uns 27 ou 28 anos, acho. Com um mesmo namorado há mais de seis meses, o que para ela, e segundo ela própria, constituía motivo de comemorações e homenagens.
“Vamos pedir salgadinhos, doces, refris e umas cervejas. Ela não sabe de nada, ok?”
“Ok.”
O Edison também havia alertado a todos sobre a festinha para a Alice, sugerindo, no dia anterior, que ninguém ficasse em home office na quinta-feira. E que mantivéssemos tudo sob sigilo, evidentemente. A Alice cuidava do departamento financeiro da Facto: patrocinadores, convênios com agências de notícias e procedimentos de entra e sai, burocracias contábeis e similares, coisas que nós, midcoms, geralmente evitávamos ao máximo, a menos que emergisse algum caso de um contabilista cruelmente assassinado. A Alice: quarentona reservada, rosto comprido e magro, pele de quem nunca toma sol, um pouco triste e quase nunca entusiasmada com coisa alguma. Um pouco lenta, limitada. Seus filhos, casal de pré-jovens, eram o principal motivo de sua guerra diária: preocupava-se muito com eles, orgulhava-se deles, e quase nunca falava em qualquer outra coisa nessa mesma linha de valores. Estava com a mão direita enfaixada nesse dia. Fofocas davam conta de que, ocasionalmente, era agredida com mais intensidade pelo marido, a quem raramente se referia. Ela nunca confirmou isso, mesmo sob pressão das colegas, que se ofereciam, de tempos em tempos, para ouvi-la, ajudá-la de alguma forma e até mesmo, o que permanecia como uma vontade latente das voluntárias, denunciar seu marido e encaminhá-lo à Justiça. Que eu saiba, a Alice nunca dera margem a essa reviravolta em sua vida, e todos nós ficávamos confusos, pois ela sempre explicava algum ferimento com versões plausíveis, porém comprometidas por nossa suspeita tendenciosa. Um arranhão, uma torção, um hematoma, tudo isso ela conseguia disfarçar com roupas adequadas, além de relatar (convincentemente, de seu ponto de vista) as causas de cada marca epidérmica que ia cicatrizando ou sumindo, enquanto seus dias se somavam mais tristes.
De acordo com algumas estatísticas, a violência doméstica contra a mulher, além dos feminicídios, cresceu entre os últimos 12 e 15 anos. Mas, considerando-se algumas outras pesquisas, essa mesma violência diminuiu. Fica difícil, para um leitor comum, saber qual é a verdade. Mas nós, jornalistas midcoms, sabemos que as estatísticas que expressam as piores situações costumam ser as verdadeiras. Uma das razões mais simples é a lógica esperada de que nenhum governo, de federal a municipal, distorceria dados desfavoravelmente a si mesmo. Além disso, conhecemos os veículos de comunicação mais respeitados, que publicam suas facs sem alarde, em colunas secundárias e seções de menos destaque. No geral, esses recursos que visam confundir ou amenizar as coisas, essas distorções e polêmicas, alimentadas e sustentadas por facultativas, interessam principalmente ao poder público, pois fazem diminuir o comprometimento das autoridades com determinadas pautas, e os políticos podem, com base em números, promover cortes em orçamentos específicos, além de não terem sua imagem desgastada com a toxicidade das situações reais, sob o período de sua administração.
Antes do final da tarde, nós todos já disfarçando a chegada dos salgadinhos e das bebidas e distraindo a Alice quanto a isso, o Hélio veio até mim com alguma coisa. (Ele é mestiço de orientais, origem japonesa, e eu o chamo Hélio, meu amigo sol nascente, o que geralmente rende um gesto obsceno e um olhar de mafioso enquanto ele revida, tratando-me por Marquinho, meu amigo decadente.) A Cleo, de pé ao meu lado, tinha vindo me perguntar sobre uns contatos externos, e acabamos outra vez trocando curiosidades sobre os livros que mantínhamos, cada um em sua casa.
“Gente, desculpe interromper. Marco, a gente precisa ver isso agora, antes de fechar a seção das internacionais.”
A Cleo se afastou, discreta. “Depois a gente se fala.”
“Você vê pra mim? Tem um pouco de francês aí, pouca coisa. Pode ser?”
“Pode deixar.”
Revisei o que tinha em mãos, enviei pelo fast de volta ao Hélio, que me mandou em troca uma carinha carrancuda, com a língua caída de lado. Meu personal vibrou levemente, sinais verdinhos na parte superior. Toquei para ver. Mensagem breve, origem desconhecida.
Boa tarde.
Só isso. Apesar de tão concisa e cotidiana, fiquei olhando essas simples palavras com certa curiosidade. Ninguém que eu conhecia. Enquanto me demorava, com aquela preguiça natural de desviar os olhos, que nos faz vesgos, outra mensagem pipocou.
Boa noite. Você fuma?
De fato, começava a anoitecer. Não, também não poderia ser propaganda de cigarros, esse tipo de coisa nunca vinha pelo Afluente, que não aceitava apelos publicitários. Saí do aplicativo, desliguei o personal. Quando revelada a surpresa, a Alice pareceu feliz; chegou a sorrir. Na agitação que se seguiu, nós, toda a equipe, passamos a nos esbarrar e a nos arranjar, no espaço improvisado a um canto do salão, imediatamente ao lado da entrada da copa, com o deslocamento de algumas cadeiras giratórias e a junção de três mesinhas, agora sob uma comprida toalha amarela. A Iara, blusinha de alças mostrando pescoço e ombros, sua pele escura bonita e bem tratada, de uma suavidade que se poderia tocar com os olhos, esbarrou em mim com seu corpo manequinesco: ela portava um desses pratinhos de fibras recicladas e o preenchia com certa variedade de salgados, que coletava cuidadosamente. De todos os colegas da redação, ela era a pessoa que mais me ignorava e evitava, sem que eu lhe desse motivos para isso (e como poderia responder por ela, quanto a possíveis motivos?). Quando tínhamos de nos falar, ela me tratava com frieza, enquanto seus olhinhos brilhantes pareciam avaliar-me o tempo todo, como se não confiasse em mim – e acho que não confiava mesmo. Coisas de antimagnetismo, intuição? Não sei. Não sou supersticioso, e também não me importava saber por que ela não agia naturalmente comigo. Eu tentava sorrir e falar tranquilamente, coisas de trabalho, informações, dúvidas, e ela, no máximo, fingia normalidade, quase sorria em troca, o que não passava de um esboço mínimo, um sinal facial que no instante seguinte desaparecia. Logo ela se desvencilhou da aglomeração, do ambiente congestionado, principalmente com a presença do corpulento Robinho, gigante nem sempre gentil, e se encaminhou ao canto angular da bancada de granito, onde ficava o filtro de água, ponto menos procurado pelos colegas no momento. Curiosamente, ela não ficou muito tempo ali: tornou a entrar na fila, percorrendo a extensão da mesa lateral junto à parede, e passou a montar mais um pratinho de salgados, semelhante ao primeiro.
Em algum momento, também circulando, coletando comidinhas e me deslocando entre movimentos alheios avulsos, acabei escapando para a copa, e fui me apoiar em uma extremidade da bancada da pia, perto do vitrô basculante que dava para a rua. Um minuto depois, o Tato se instalou ali também, ao meu lado.
“Que gente agitada”, ele em tom de crítica, enquanto mordia uma empadinha. Sua seleção-coleção de salgados me pareceu ser a mesma da predileção da Iara.
“Festinhas são assim mesmo. Vamos aproveitar e relaxar um pouco.”
Ele tomou um gole de guaraná gelado, ainda mastigando. De vez em quando, em momentos de copa e café, um ou outro colega brinca, perguntando sobre quem era do tempo dos copinhos de plástico. Eu e o Tato éramos. Dois anos mais velho que eu, idades próximas, usávamos normalmente copinhos de plástico quando crianças.
“Terminou seus textos de hoje?”, resmungou sem me olhar.
“Mais ou menos. Acabo fazendo um pouco mais em casa. Esta semana foi tranquila, sem muito alarde, nada impressionante, e isso me leva a inventar temas para os tópicos, entrando em pesquisas, e assim vai. E você? Facultativas que valem a pena?”
“Não, não. Pelo mesmo motivo. Quando está tudo tranquilo, não tenho muito que fazer. Não vale a pena ficar distorcendo informações inofensivas, sem grande efeito.”
“É, eu sei. E sem nenhum sinal de limites, as coisas até perdem a graça.”
“Perdem. Enfim… Trabalho é trabalho.”
“Não há o desafio de tentar driblar qualquer tipo de censura, os limites acabam sendo apenas físicos, quantidade de caracteres etc.”
“Que foi?”, ele querendo sorrir enquanto mastigava mais, e mais rápido. O Tato revelava um admirável autocontrole, mas não conseguia disfarçar certa ansiedade quase permanente. “Nostalgia dos tempos da censura, que você nem viveu?”
“Talvez”, sorri em troca. “Gostaria de estar lá, no século 20, sentir o dia a dia daquela gente da imprensa, algo mais aventureiro, arriscado, desafiador, pressionando todos à criatividade.”
“O Mundo Livre tem sua bela cota de tédio, sim. Mas seria inevitável, pensando historicamente, que chegássemos até aqui. Os regimes totalitários do século passado foram um desastre. Todos fracassaram, alguns rapidamente. O fascismo, o nazismo… Um rastro de destruição, e, um pouco à frente, a falência completa.”
“Sim, eu sei. Isso não devia ser nada bom. Lembro que os nazistas andavam com cápsulas de cianeto, algumas em dentes postiços. Já aderiam ao regime pensando no suicídio como possibilidade real.”
“Prova de que eles já sabiam, ou intuíam, sobre a grande chance de se darem mal. Stalinismo, fascismo, nazismo: regimes fadados ao colapso. Rápido ou lento. A queda drástica, dramática, com a ruína imediata das nações, ou a degradação lenta, década após outra, até o ponto insustentável em que o próprio povo acaba se voltando contra seus mentores políticos. Não é possível controlar a todos, isso foi um erro primordial deles. Custa caro e não é eficiente. É melhor (e mais barato) que a oposição se mostre com liberdade, com transparência.”
“E isso só prosperou depois que pararam de combater a publicação de facultativas…”
“Sim, sim, outro erro histórico. Foi um grande trunfo do poder político entender que não precisava de um regime autoritário para controlar a sociedade. Que era possível monitorar qualquer indivíduo, em meio à liberdade. A censura que existia em nosso país era um fiasco. As canções proibidas se tornavam mais faladas, mais comentadas, mais famosas. Livros considerados subversivos circulavam sem controle, de mão em mão, entre cidadãos comuns.”
“Não sei”, falei em voz baixa, meio pensativo. “Com liberdade ou com repressão, nunca se consegue controlar a todos. Você é inteligente, tem consciência disso. Ninguém controla o seu pensamento ou o meu.”
O Tato pensou por um segundo, sem tirar os olhos de seu guaraná. “Pode ser. Mesmo assim, você tem que escolher um lado. Não pode ficar neutro.”
Senti um arrepio ao compreender perfeitamente o que ele queria dizer. E me senti um ignorante avulso, um observador desatento. Até mesmo um covarde.
“Como na Guerra Fria…”
“Como na Guerra Fria. Você não podia ficar neutro. Tinha que estar de um lado ou de outro. Mesmo que traísse o seu lado. Ou os dois.”
O Tato tem essas afinidades comigo. Gostamos de política e de geopolítica. Em poucas e boas oportunidades, tocamos nesses assuntos e não paramos mais. Podemos compartilhar facilmente nossa visão da sociedade, da história e até mesmo de futuro, visto que temos um nível parecido de conhecimento e de interesse pelos temas. Mencionamos personagens históricos, detalhes curiosos, erros grosseiros de grandes estrategistas e erros sutis de pequenos estrategistas, coisas assim. Ele deve ter sido o que antigamente se definia como um bom aluno, algo semelhante ao menino que eu fui. Mas nossa amizade parecia limitada a esses contextos. Por vezes, eu me dava conta de que não sabia quase nada de sua vida pessoal.
“Tato, você me faz ter saudade das aulas no Centro Universitário.”
Ele só estreitou os olhos, no que seria o sinal de um sorriso incipiente, pois sua boca não se detinha por muito tempo sem morder alguma coisa que estivesse à mão. Era a um tempo bem-educado e sutilmente agressivo.
“O stalinismo durou mais tempo, mas apodreceu” o Tato continuou, em sua aula movida pela paixão, ele que era um defensor declarado e entusiasta irretocável do Mundo Livre. “A morte do líder tornava tudo mais difícil, e esse era outro modelo de erro básico: centrar a propaganda do poder em um indivíduo, em uma personalidade específica.”
“Com a morte de Átila, os hunos se desorganizaram, desapareceram”, observei.
“Um bom exemplo, sim. Mas ainda eram povos pequenos, mal organizados. O Império Romano também fazia propaganda de seus líderes, mas sobreviveu à morte de cada um deles. Com os bolcheviques, foi um pouco diferente: destituíram o czarismo e assumiram sua postura – de maneira mais moderna, mais técnica, mais… tóxica. A União Soviética esgotou suas finanças e seus cidadãos. Implodiu. Minada por sua própria radioatividade.”
“Interessante dizer assim. Associando Chernobyl ao crepúsculo…”
“As ditaduras na América Latina: sangrentas, precárias, lideradas por medíocres, não serviram para nada e ainda deixaram os países endividados, alguns falidos, após manobras politicas e bélicas desastrosas. Uma coleção de erros, que só se repetiria em países muito atrasados. Mas parece que o Mundo Livre engolfou a todos, quase naturalmente.”
“Tato, você já leu o Subverdades, do Vendime?”
Ele respondeu sem parar de mastigar. “Hum-hum! Claro que sim.” Ergueu o copo de guaraná, como pedindo um tempo. “Me serviu e ainda me serve muito, na minha profissão. Na nossa profissão.”
Prosseguimos nessa conversa quase acadêmica. Acendemos cigarros. Ele fumava Continental Master, marca antiga, dentre umas poucas tradicionais que ainda subsistiam no mercado, do tempo em que se acreditava que cigarros causavam câncer.
“Toda universidade usa esse livro, até hoje”, disse ele soltando uma porção forte de fumaça. “Você o deve ter lido no terceiro período, nas aulas de…”
Além da diversidade de vozes, entonações desencontradas e repentes de bom humor, um ruído mais forte aconteceu bem ao nosso lado: era o Robinho, entrando espalhafatoso, quase tropeçando.
“Mas do que é que vocês tanto estão falando aí, seus chatos? A festa é lá, ó! Deram um abraço apertado na coitada da Alice, pelo menos?”
O Robinho, grandalhão, alto e largo, o que tinha de sobrepeso se devia também a um porte robusto, uma compleição física avantajada, pouca gordura, muito de sua natureza bruta, barba com falhas, fios enrolados como os de seus cabelos, traços grisalhos nas têmporas e mal distribuídos por todo o queixo.
“Veio até aqui só pra encher o nosso saco?”, o Tato o encarando firme, fingindo bronca, com seus olhos azuis muito claros, nesse momento quase hipnóticos, como se tivessem lentes de cristal embutidas nas órbitas. Eu, diretor de cinema, como no século passado, o escalaria sem hesitações para encarnar um arrepiante psicopata.
“Vim pegar mais pratinhos, seu doente mental! O que tinha lá já era.”
Enquanto o Robinho se virava para voltar, vimos a Heleninha passando, abraçada à Alice, dando-lhe apoio enquanto a conduzia, como se a aniversariante estivesse passando mal. Seguiram rumo aos sanitários. A Alice estava chorando.
A Iara, da porta, fez um sinal para o Tato, que se deslocou em direção a ela enquanto limpava a boca com um guardanapo de papel. Fui saindo também, levando meu copo de refrigerante, quando meu personal acusou alguma atividade. Parei no meio do caminho, peguei a ver.
Boa noite. Você fuma?
Mais uma vez, essa mesma mensagem, pelo Afluente. Vi que não era um automático: era alguém de verdade. Não costumo me irritar com pouco, só achei melhor não dar atenção, por desconhecer a origem do contato. Desliguei o personal, voltei ao que ainda seria uma festinha, agora sem a homenageada. Fiquei pensando no que havia recebido há pouco, dada a raridade de eu ser procurado por esse meio, o Afluente. Quem seria esse cara? Por que não se apresentava, não dizia diretamente o que queria comigo? (Eu só não imaginava que a repetição dessas mensagens básicas eram os primeiros sinais, representativos da pobre função fática, de que, nos próximos dias, meu envolvimento com algo surpreendente, arriscado e arrebatador estaria apenas começando.)
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