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Teus olhos na escuridão. 3
Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastador.
Eu trabalhava havia oito anos na Facto quando a Cleo chegou. Comecei aos 24, após um ano de estágio em um periódico predominantemente impresso. A revista tinha pouco mais de um ano da fundação. Esse foi e (acho que até uns dias atrás) tem sido meu primeiro e único trabalho como jornalista midcom.
“Marco, essa é a Cleo. Começando com a gente hoje.”
Era o Rômulo quem a acompanhava. Levantei-me da cadeira, tirei o cigarro da boca.
“Muito prazer. Seja bem-vinda.”
“Brigada”, sorriu.
Mais baixa que eu, corpo roliço, quase sem cintura, e o andar adernante das garotas com sobrepeso. Quadris largos, ombros pequenos, abaulados, confundindo-se com a parte superior de seus braços curtos, que, tendo em vista o conjunto geral, se mostravam curiosamente bem proporcionados. Seios grandes, altos, robustos, sob uma blusa escura. Delicada, rosto redondo, pele bem tratada, olhos negros grandes, do tipo que lacrimejam naturalmente, umas mínimas sardas no alto das maçãs do rosto, boca de lábios grossos, um fio de espaço entre os incisivos superiores. Estudiosa e responsável, ela logo se destacou como uma valiosa articulista: sensata, criativa, atenta a certo perfeccionismo, muito dedicada ao trabalho. Tinha 23 anos. Sua proximidade me inspirou e me renovou os ânimos, porque, com meu tempo de casa e de profissão, pouca coisa me surpreendia, me entusiasmava ou me motivava a ser tão… perfeito e… Enfim, eu nem lembrava que ainda havia gente assim no mundo, disposta a dar o melhor de si em meio a uma rotina tão… Bem, não importa. O Rômulo a conduziu pela redação, apresentando-a aos outros colegas, mostrando-lhe nosso sistema de telas integradas e outras coisas tecnológicas básicas e bobas, que se encontravam em toda parte e das quais supostamente deveríamos todos nos orgulhar. Ajustei meus óculos e continuei trabalhando, enquanto suas vozes se deslocavam ali por perto, indo e vindo entre as estreitas fileiras de pontos de trabalho (Prazer… Prazer…), revelando sua mobilidade por meio de um precário efeito Doppler, que também me permitia localizar a posição de minha nova colega, ao assimilar o som de seus sapatos de salto médio no piso frio da redação.
Nesse dia, por mera coincidência, toda a equipe estava lá, no escritório. Rotineiramente, muitos de nós usamos o home office, agendamos revezamentos, mas, na maior parte do tempo, eram poucos os que aderiam a essa opção: a convivência presencial faz bem, acaba nos motivando a todos, são raras as empresas e escritórios que ainda usam de forma ampla o recurso do trabalho remoto, que parece remanescer de um tempo em que se acreditava que seria melhor atuar em home office o tempo todo, full time, como diziam, uma experiência inicialmente promissora, mas que logo deu mostras de fracasso e gradualmente se tornou obsoleta.
O Rômulo e a Cleo passaram de novo por meu ponto de trabalho, seguiram em sua expedição doméstica, agora em direção à copa. Contemplei a novata pelas costas, perfeitamente disfarçado e auxiliado apenas por um movimento quase imperceptível dos olhos, quase sem mover a cabeça, observando seu corpo a um tempo robusto e flexível, um misto de medidas largas e harmonia de proporções em relação à sua altura. Ouvi que o Rômulo explicava a ela a origem do nome de nossa revista virtual, que inicialmente seria Topfac, forma sintética de Tópicos Facultativos. Depois, por razões de sonoridade, creio, foi sugerida a inversão das sílabas, e ela passou a Factop; por fim, um dos fundadores sugeriu que se excluísse o P mudo, lembrando que o extinto Facebook teria começado como The Facebook, antes que seus sócios-proprietários optassem por eliminar o artigo que precedia o substantivo, argumento que considerei forçado, desnecessário e distante. Inicialmente, a proposta da Facto era produzir apenas facultativas. Mas logo se deu conta de que isso seria muito ousado, um risco que não valeria a pena correr – em uma profissão que, por muito tempo, se firmou pelo correr da pena. Foi aí que eu entrei. Eu, o Arthur e a Heleninha estamos entre os primeiros que ainda trabalham no mesmo lugar.
Logo após um primeiro surto de facultativas de sucesso, alguns perceberam que as notícias reais também se faziam atraentes, por algum motivo ou outro. Todos os periódicos, até onde sei, trabalham com fatos e facs, sem distinção, sem classificação em colunas, divisões, seções: os leitores usufruem de liberdade total para transitar entre uns textos e outros. Houve um tempo em que toda a imprensa se dividia quanto a isso. Nenhum veículo podia sustentar-se apenas com uma ou com outra, e isso era tema de teses e discussões acadêmicas, bem como de livros polêmicos sobre o assunto. Esse tempo passou.
Nesse mesmo dia, quase ao fim da tarde, o Hélio pediu nossa atenção para uma matéria recém-publicada pela Ciência em debate. A equipe se reuniu em torno de sua tela. O Edison Chafik saiu de sua sala, juntou-se a nós, percebeu que era algo interessante, decidiu democratizar a visualização.
“Gabriel! Põe no telão pra nós.”
Todos nos voltamos para a tela maior, da parede lateral, que servia também a apresentações para a equipe interna, coisas de reuniões, de atualizações, coisas do Edison, principalmente. O Gabriel subiu um pouco a página para que lêssemos o texto sob a imagem. (Para a foquinha Cleo, no primeiro dia dela, além de já quedar facilmente encantada com tudo o que via, esse tópico e essa aglomeração toda devem ter tido o efeito de um momento fascinante e motivador.)
O Copernicus Superstar, uma belíssima embarcação de cruzeiro, partiu ontem do Porto de Santos, escalas previstas em Buenos Aires e Punta del Leste, com destino à Antártida. Trata-se de mais uma das expedições anuais promovidas pela Fundação Estudos Geográficos Avançados, que pretendem trazer a lume as evidências finais da planicidade do planeta Terra. Ainda não foi possível chegar ao chamado Muro de Gelo, que seria a última barreira da terra firme, delimitando o espaço geográfico com o espaço cósmico, aberto à frente. No entanto, […]
“O texto é primoroso, típico deles”, comentou o Gabriel, em tom de elogio neutro. Sem ressentimento e sem entusiasmo.
A Iara apontou. “A foto, pessoal. Observem a qualidade dessa foto!”
O Tato disse que conhecia o fotógrafo deles, tinham trabalhado juntos havia alguns anos, também era coisa de expedição, de ir a campo, matérias ligadas ao meio ambiente e outros bichos. “Esse cara tem muito talento”, observou.
Eu tinha que admitir: para uma simples foto coletiva, a composição parecia perfeita. E o horizonte muito claro, nítido, delineado, mostrando, sugerindo, quase comprovando uma planicidade planetária acima de qualquer controvérsia. Uma foto que não apenas se mostrava de alta qualidade no que se referia ao uso da melhor tecnologia em imagens, mas na disposição dos elementos, na composição toda, como se observa na obra de um artista.
“Tudo gente média alta, pode crer”, disse o Robinho. “Não fica muito em conta uma viagem dessas.”
Dois pastores evangélicos e um padre católico com o grupo. Pouco ou muito, os religiosos sorriam.
O Rômulo ironizou. “Harmonia entre os poderes.”
“Olha aqui, não reconhece? Quem é esse aqui?”, a Heleninha apontando para um dos pastores.
“Amplia a imagem, Gabriel.”
“Ah, mas é ele mesmo, olha só: o pastor Ezequiel Madeira…”
“Bispo”, o Robinho corrigiu.
“Bispo, ok. Com todos os processos correndo contra ele na Justiça, e o cara aí, tranquilo. Como essas pestes sabem se dar bem, não é? Inacreditável!”
“Pensei que ele estivesse preso…”, era a Diana, em dúvida. “Não tinha sido preso? Alguém lembra?”
O bispo Ezequiel era o líder espiritual (e material) da SICQ, Santa Igreja do Cristo Quântico, a que mais prosperava no país nos últimos anos. Todos ali ficaram um pouco confusos, porque as informações sobre ele ter sido preso ou não se chocavam umas com as outras, como partículas em ambientes superaquecidos.
“Não tenho certeza. Achei que a prisão dele tivesse sido só uma facultativa, não um fato.”
“E eu pensei ter lido que a prisão dele tinha sido revogada depois de uma semana e pouco, mas não sei ao certo.”
“Grandes midcoms são vocês!”, ironizou o Edison. “Não sabem nada. Ficam perguntando uns aos outros, fazem uma confusão enorme com isso tudo.”
“Não podemos ler todas as facultativas que aparecem”, eu tentando defender a espécie. “Isso realmente gera uma grande confusão.”
“Ele não está aí de graça, minha gente. Está promovendo a igreja dele, lógico.”
“E apoiando essas excursões científicas… Se a Terra for mesmo plana, todo mundo vai ter que tirar o chapéu pra ele.”
“Os terraplanistas ainda vão dominar o mundo”, concluiu o Arthur, em seu humor enigmático.
A Iara, quem menos riu. “Não vão não. Os terraesfericistas ainda são 67% da população. E fiquem sabendo que eu me incluo nesse grupo.”
Alguém bateu de leve no ombro dela. De outros, um aceno amigável de cabeça. Apoio sincero, unânime.
“Nós nascemos e vivemos em um planeta esférico”, falei. “Tão esférico quanto todos os outros, mesmo que os terraplanistas conquistem todas as estatísticas.”
O Edison, nosso editor-chefe, homem alto, postura física exemplar, óculos retangulares de moldura azul-escura, passou a observar e a pontuar, fazendo-se professor, tudo que nos ensinava aquela admirável publicação. A Ciência em debate vinha conquistando mais e mais seguidores. Lembro que, quase sempre, publicavam alguma coisa sobre mecânica quântica, aplicada a tudo que faz parte da vida, a tudo que se faz na vida, desde relacionamentos amorosos a dietas com cenouras.
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