Office in a Small City por Edward Hopper

Teus olhos na escuridão. 2

Uma aventura perigosa na clandestinidade.
O mapa de um escândalo.
Um segredo potencialmente devastad
or.

No primeiro dia, liberado à noite, após quase doze horas de interrogatório, fui para casa a pé. A chuva forte da manhã havia se esgotado no meio da tarde, como soube depois. Todas as ruas ainda estavam molhadas, e o céu, mais claro que o das noites anteriores, assumindo-se preenchido por uma espécie de vasta única nuvem contínua que se estendia a horizontes apenas vislumbrados, entre recortes de casas, árvores e edifícios, consolidada por todos os pontos cardeais. Na delegacia, depois de um banho quente, emprestaram-me uma camiseta, uma calça larga e chinelos, enquanto minha roupa do corpo e sapatos secavam em alguma outra parte, por ali. Eu estava vestido como antes outra vez. Essas minhas roupas devem ter sido secadas artificialmente, em máquinas, que o dia não estava para procedimentos domésticos cotidianos. Fora isso, um dia quase feérico, como poucos que me lembram ou mal me lembram ter vivido alguma vez. Muita gente deve tê-lo sentido assim, sob o impacto dos pronunciamentos feitos às pressas pelo porta-voz do governo, ele sempre tão calmo e exemplar, agora disfarçando muito mal uma irritação crescente e preocupante, quase ansioso por vingança, enquanto declarava, enfático e com todas as sílabas, que “essas calúnias absurdas” haveriam de ser em breve esclarecidas, pressionado e quase arranhado pela ação agitadíssima das mídias, principalmente as televisivas, que cercavam todas as entradas e saídas possíveis das divisões de edifícios governamentais com uma horda de jornalistas infocamp, previsivelmente afoitos e impiedosos.

Entrei em meu apartamento, ruído de chaves e passos nervosos, no mais só o silêncio próprio dos recintos inabitados. Olhei ao redor, na sala e no quarto, girando a cabeça e também o corpo, objetivando uma varredura relâmpago, atento a detalhes, movido por uma curiosidade e uma premonição exageradas, desconfiando que alguém poderia ter estado ali e mexido em minhas coisas. Mas não percebi nada estranho. O lugar todo parecia intacto. Peguei meu cartão magnético, que dormia há tempos em uma gaveta, enfiei-o no bolso da camisa. Peguei também um casaco, lá fora fazia frio. Eu tinha de sair de novo: algo mais a fazer.

Encontrei um quiosque de eletrônicos aberto, na esquina da Praça da Abolição. Era essa a minha esperança, por isso passei por ali. Precisava de um novo personal, tinha que me comunicar com a Cleo, em primeiro lugar, antes de tudo, com a máxima prioridade, movido pela urgência de saber sobre ela, de ouvir-lhe a voz, e por um sentimento muito forte e irrefreável de carinho. Os investigadores poderiam ter copiado o conteúdo do meu aparelho antigo (antigo, que findara ainda hoje, pela manhã, nesse dia que não parecia ser o mesmo, de tão longo e tortuoso) e ter me devolvido esse mesmo aparelho em seguida. Mas não o fizeram, e eu achei melhor ficar quieto, porque ele devia estar mesmo encharcado, ferido mortalmente. Escolhi um modelo parecido, informei-me do preço, mostrei ao vendedor o cartão de crédito que trouxera de casa. Ele sorriu, curioso.

“Olha só! Quanto tempo que eu não vejo um cartão!”, disse com entusiasmo, como se estivesse abrindo, ensolarado, seu negócio pela manhã e não fosse aquele o fim cinzento de um dia úmido e terrível. Esse rapaz de sobrancelhas grossas, pele marcada talvez por violentas espinhas de alguma fase anterior, entre a pré-juventude e a primeira juventude, parecia exalar levemente algum mau hálito característico, como se soprasse uma tênue brisa morna com cheiro de carne, entre as palavras.

“Pode passar no débito. Funciona normalmente.”

“Não, mas não precisa. Dá aqui o personal, vamos ativar ele, você já faz o pagamento por ele…”

Fuçou um pouco, compenetrado, despertando mínimos sinais sonoros de confirmação, deu como terminada a tarefa, estendeu-me o aparelho. Agradeci, e quitei a primeira parcela.

“Dia louco hoje, hein? A coisa tá pegando fogo nesse país! Nunca vi!”

“Obrigado. Me ajudou muito.”

Um aero policial passou por cima da praça, com seu mínimo som de ruflar de asas característico, um murmúrio continuado e sutil, luzes azuis piscando com violência, e logo desapareceu. Deixei o quiosque, guardei o personal no bolso e continuei andando, olhando para um lado e outro, nunca para baixo, um pouco para trás também, de quando em quando, imaginando flagrar alguém que eventualmente estivesse me seguindo. Um homem de cabeça baixa, boné e capa de chuva, chegava ao quiosque em seguida. Diminuí o passo, parei junto a uma árvore, fiquei por ali, fingindo que procurava os cigarros, enquanto o observava gesticulando e falando ao vendedor. De onde estava, não podia ouvir o que diziam. O homem comprou alguma coisa e logo foi embora, seguindo pela mesma rua, em sentido oposto ao meu. Acendi um cigarro. Continuei andando. Mais tranquilo, mas não desatento. Desde a minha primeira publicação supostamente comprometedora, o tópico sobre a restauração do Estádio Romualdo e toda a corrupção entranhada nos trabalhos, eu já havia recebido um alerta de que poderia estar sendo monitorado.

Antes de chegar em casa, usando o personal novo, enviei um fastpost ao Edison dizendo que estaria em home office no dia seguinte, teria de me apresentar novamente na delegacia, que isso já estava agendado. Ele respondeu com um ok e não falou mais comigo – o que me pareceu incomum e me causou um vago incômodo, como se, de alguma maneira, ele estivesse me evitando, com alguma razão.

Acendi as luzes, tranquei a porta da frente, fui tomar um banho de verdade antes de começar qualquer outra coisa. Liguei meu GP, que despertou em segundos. Fiquei vasculhando todas as redes, lendo todas as notícias. Eu estava no foco de todo o escândalo, sem que ninguém soubesse quem eu era. O dia todo transcorrera muito tenso, por toda parte. A publicação de meu tópico forçava entidades governamentais a responder à fome ansiosa da imprensa e a improvisar discursos disparatados e contraditórios, que, por incompetência de uns e por desinformação de outros, só serviram para complicar as coisas ainda mais, para eles. Um caos em andamento.

Alguns periódicos publicaram algo específico sobre a Facto.

Pretensas denúncias publicadas pela revista virtual Facto, um dos periódicos menos influentes do pais, estão, ocasionalmente, agitando o poder central. Tanto que o ministro das Comunicações, normalmente muito simpático, fez um pronunciamento austero na manhã de hoje, desmentindo todas as possíveis acusações e criticando a baixa qualidade da facultativa em questão. […]

São gravíssimas as denúncias expressas em um artigo-tópico da revista Facto, na manhã desta quinta-feira, mostrando as relações espúrias entre o primeiro-ministro e grupos organizados, que teriam arquitetado esquemas complexos de corrupção ao longo dos últimos anos. […]

A revista virtual Facto, com um modesto número de seguidores e quase desconhecida, ganhou as manchetes no dia de hoje ao publicar detalhes do quebra-cabeça da corrupção sistêmica orquestrada a partir dos mais altos escalões do governo federal, estendendo-se até […]

Toda a nação amanheceu estarrecida por causa de uma facultativa que o jornal sensacionalista Facto trouxe a lume […]

[…] conhecido por difamar autoridades e celebridades, o periódico […]

A Facta Brasiliense, em matéria publicada hoje […]

Verdades, subverdades e mentiras cruzavam-se como fogos de artifício sem rumo, no universo plástico das intervenções midiáticas, disputado por metralhadoras antiquadas e mísseis de última geração.

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