Office in a Small City por Edward Hopper

Doutor Diego

Em minha missiva mais recente ao senhor D., um jovem cavalheiro que me parecia estar sofrendo ainda, como resultado das versões contraditórias sobre a perda de um seu ente mui querido, tentei persuadi-lo a encontrar-me, em função de que todo aquele imbróglio (talvez) mal-intencionado fosse esclarecido de vez.

Meu caro senhor […]

Caso te interesse saber, ao contrário das versões difusas que te chegaram por diversas e questionáveis fontes, umas mal informadas e fantasiosas, outras trazendo em seu bojo o intuito maligno de agravar a situação de tua perda […] que o teu honrado pai não faleceu em decorrência de causas naturais. Por isso, venho aqui, movido pela obrigação e pelo dever de consciência, como cidadão e como profissional, narrar-te, da maneira mais clara possível, tudo o que aconteceu e também tudo o que não aconteceu, pois o que não acontece é, em geral e com viés muita vez inoportuno, o que principalmente conduz o fio de toda história. […]

Respeitosamente,

Dr. Diego Drogo de Dutramonte

Tirei meu chapéu de copa alta, que normalmente ostentava quando ia a consultas domiciliares fora da cidade. Eu vinha do povoado, após um percurso relativamente cansativo, meu corpo e minhas pretensas tentativas de acomodação sujeitos às variações que me impunha a condição de uma charrete alugada. Minha esposa, Denise, veio receber-me: despiu-me o casaco, enquanto eu deixava minha valise bojuda no chão.

“Parece cansado. Foi longa a viagem?”

“Não muito.”

“Veio com uma vitória ou um landau?”

“Um tílburi mesmo. Mais rápido.”

“Um tílburi?! Fora da cidade, nessas ruas difíceis…?”

“Por que não? Mesmo assim, pedi ao cocheiro que seguisse sem pressa.”

“Então… por que escolheu o mais rápido?”

“Por isso mesmo: para escolher ser menos rápido.”

Ela sorriu de boca fechada, acariciou-me a barba, movimento de cabeça que significava: “Você e as suas!”.

Olhando à direita, quase distraído, vi minha cunhada, a irmã mais nova de Denise, sentada à mesa redonda, de ferro escuro ornamentado, na varanda interna. Vestido branco, de tecido leve. Parecia absorta.

“Não sabia que sua irmã estava aqui.”

Denise pendurou meu longo casaco no cabideiro da antessala, voltou para pegar a valise.

“Pois está.”

“Sei que sim. Mas… você a esperava?”

“Não”, ela sorriu. “Que importa isso? Se estamos ou não esperando alguém, as pessoas sempre nos acontecem. E então, como foram as consultas no povoado?”

Passei pela saleta de TV, um recorte da sala central, onde fica o aparelho de tela grande (uma tela ampla que ocupa quase toda a extensão horizontal da parede), caminhei até as portas de vidro, meio abertas, que separavam nossa espaçosa sala de estar da varanda interna, com visão a um pátio de relva e um caminho lateral de moitas floridas. Conforme eu me aproximava, agora com o ângulo de visão ampliado, fui percebendo dois rapazes, alinhados e bem vestidos, sentados à frente de minha jovem cunhada, nas cadeiras de ferro esmaltado que formavam conjunto com a mesa e alguns vasos próximos. Os dois olhavam para ela, que mantinha o silêncio e a cabeça baixa. Era como se tivessem acabado de conversar sobre alguma coisa e esperassem, daquele momento em diante, qualquer continuidade. Um deles, bastante inclinado para a frente, cotovelos apoiados nas coxas, mal percebeu minha presença; o outro, menos concentrado, foi o primeiro a voltar sua atenção para mim. Falei sério com eles.

“Olá, Denísia. Boa noite, cavalheiros.”

Eles não se levantaram, mas retornaram discretamente o cumprimento.

“Boa noite, senhor.”

“Boa noite, senhor. Como vão as coisas? É uma linda noite de lua, não?”

“Sim. Minha esposa não me comunicou que tínhamos visitas. Vão ficar para o jantar?”

“Não, senhor. Só estamos esperando que ela nos mostre pelo menos um seio…”

“… mas parece que nossa amiga está muito indecisa ainda.”

Denísia olhava para baixo, para seus seios, tocava singelamente o decote do vestido, ensaiando algum movimento contido. Mas nada dizia.

“Eu compreendo”, falei, agora mais tranquilo, conhecendo a boa educação dos rapazes. “Pois fiquem à vontade, se quiserem jantar conosco.”

“Obrigado, senhor.”

“Agradecemos muito, senhor. E… como vão as coisas? É uma linda noite de lua, não?”

Retirei-me, voltei à sala maior, olhei Denise de frente.

“Quem são esses cavalheiros?”

“Amigos dela. Ou colegas, acho.”

“De escola? Da faculdade?”

“Não sei. Isso importa? São homens.”

Subi para tomar um banho. Quando voltei à sala, vi, a certa distância, que Denísia contemplava quieta um de seus seios: fascinada, enternecida, enlevada, como se nunca o tivesse visto antes. Cheguei mais perto. Ela abriu mais o decote, fazendo descer o vestido pelos ombros e braços, deixando agora os dois seios à mostra, iluminados pelo luar, que se fazia intenso nessa noite.

“Onde estão eles, os seus amigos? Não quiseram ficar para o jantar?”

“Não. Foram embora”, disse ela tocando e apalpando de leve cada um dos seios, separadamente. “Não tiveram paciência de esperar. Mas não foram ofensivos.”

Denise aproximou-se, abraçou-me o ombro.

“Vamos descansar um pouco. Quer beber alguma coisa?”

Voltamos para outra parte da sala, onde ficavam minha poltrona e a estante de bebidas.

“Quero sim. Mas que pena os rapazes não terem ficado…”

“Uma pena, sim. Parece que eles só queriam mesmo era ver os peitinhos dela.”

Sentei-me na poltrona ampla, consistente e confortável, suspirando de alívio e felicidade.

“Ah, eu preciso mesmo de um repouso. Amanhã é sábado, quero recuperar minhas energias, acordar sem horários.”

Denise passou-me às mãos uma taça de vinho, que logo eu levaria comigo para a mesa de jantar.

Durante o jantar, Denísia nos impactou com uma notícia inesperada: disse que o presidente da República estaria na cidade no dia seguinte.

“Como?”, estranhou Denise.

“Estou sabendo, de fonte segura. Amanhã, o presidente estará aqui, na cidade. Visitará a prefeitura e… não sei mais o quê. O que tem pra se visitar nesta porcaria de cidade?”

“A questão não é essa”, falei com voz firme, interrompendo um gesto, mão com o garfo suspensa no ar. “O que é surpreendente é que uma autoridade política dessa envergadura apareça por aqui sem aviso. E não fale assim de nossa cidade. É aqui que há pessoas doentes o bastante para preservar nossa confortável posição social.”

“Mas isso é porque o governo não oferece ao povo os cuidados sanitários básicos e os tratamentos adequados…”

“Denísia, por favor, vamos comer.”

Voltei-me para minha esposa. “Onde ela está aprendendo essas coisas? Na faculdade?”

Denísia revidou.

“Não seja covarde de não falar diretamente comigo. Estou aqui, bem à sua frente! Onde ela está aprendendo essas coisas?”, arremedou-me, fazendo oscilar a cabeça.

“Abram a porta. Abram esta porta. É Diamantino, o oficial de justiça. Eu sou a Lei!”

Abri a porta toda, sugerindo que entrasse. Ele deu um discreto passo à frente, posicionando-se na antessala. Estava encharcado. Seu chapéu-coco pingava água sem parar, como se a tivesse armazenada em algum ponto.

“O senhor está encharcado. O que aconteceu?”

“Ora! Estava chovendo.”

Não chovia, mas, mesmo assim, tolamente, olhei para fora. Fazia uma noite seca e abafada de outono, sem o menor sinal de umidade. Além disso, eu tinha acabado de vir dos povoados periféricos, tinha acabado de ver os seios de Denísia sob o azul forte da lua.

“Mas… não está chovendo.”

“Por isso eu usei o verbo no pretérito.”

Ele tinha razão. Podia ter chovido sim, horas ou dias atrás.

“O senhor entre, por favor.” Mostrei-lhe o primeiro sofá. “Queira sentar-se.”

Ele se sentou, deixando até aí, atrás de si, um rastro bastante molhado, quase formando altura para transbordar por trechos mais extensos de nossos tapetes. Estou acostumado a receber oficiais de justiça jovens, dinâmicos, que circulam pela cidade, levando, inclusive, recados e fofocas para todos os que se interessarem – e, nesta cidade, até onde sei, todos se interessam muito por tudo. Mas esse Diamantino, alguém que eu nunca vira antes, era um homem envelhecido, agourento, em vias de aposentar-se.

“Vim apenas comunicar vocês que o presidente da República virá amanhã.” Ergueu-se do sofá, pingando água por toda a vestimenta, tornou a colocar o chapéu-coco, pesado de tanta água, ruidoso e produtivo como a calha de um moinho.

“O quê? Só isso?”

“Não posso perder tempo. Tenho que avisar os outros. Tenho este bairro inteiro sob minha responsabilidade. Agora vou à sua vizinha da esquerda. Com licença.”

Eu o segui por uns dois ou três passos, toquei seu ombro, fazendo que se detivesse e se voltasse.

“Então é verdade? O presidente…”

“Claro que é verdade! Acha que eu mentiria? Eu sou a Lei!”

“Espere, espere um pouco. Vamos nos sentar, conversar um pouco.” Eu, em seguida, baixando um pouco a voz: “O senhor está encharcado…”.

“Já expliquei isso.”

“Não quer jantar conosco? Minha esposa faz um escorpião como ninguém.”

“Obrigado. Mas tenho muito que fazer.”

Denísia aproximou-se, cumprimentou o oficial. Sorria, bonita, fingindo ser uma pessoa feliz. Naquele tom triunfante de: eu não falei?

De fato, eu não acreditara nela, quando, durante o jantar, entrara com essa história tresloucada da eventual visita do presidente. Mas eu não me importava mais com isso, e de jeito nenhum pediria desculpas a ela.

“Senhor Diamantino, com todo respeito, me diga: essas informações seriam sigilosas, não? Só o senhor, que é a Lei, poderia saber. Estou certo?”

“Está bem, vamos nos sentar mais um pouco”, disse ele tirando o chapéu novamente e empapuçando mais ainda todo o carpete ao redor de nossa passagem.

“Se são sigilosas, não posso dizer. É segredo.”

“Oh…”, fiz eu, meio envergonhado. “Claro. Mas é claro. Eu compreendo.”

“Sabe, doutor? Eu também tenho origem humilde. Nasci no povoado, à esquerda do rio. Perto dos moinhos antigos.”

“Ah, sim. Eu gosto muito de visitar os povoados. A cidade me estressa um pouco – essa correria, esse trânsito todo…”

“O senhor é jovem, doutor, e já muito conhecido. Principalmente nos povoados.”

“Tenho feito muitas consultas domiciliares. Conheci muita gente. Fico além do horário, até me esqueço de voltar. Por vezes, passo da meia-noite, entre uma coisa e outra. E quem resiste a um amanhecer tão bonito como no campo, não é?”

“De fato, é muito bonito. Logo depois da meia-noite, como o senhor sabe, começa a amanhecer, renascem os ruídos verdejantes e a cantoria dos pássaros…”

“Sim, isso me aconteceu muitas vezes. Chego aqui uma, uma e meia da manhã, já com o sol alto. Minha esposa fica de mau humor quando isso acontece.”

“Mulheres…”, disse ele, fazendo escorrer muita água por todo o corpo.

Denísia ficou ali por perto, ouvindo toda essa conversa de rotina. Fingia que se deslocava com algum propósito, mas não ia a parte alguma. Depois, ficava parada, trocando a perna de apoio, fazendo oscilar o corpo, sutilmente. Estava muito contente de eu estar errado.

“Bem, agradeço a hospitalidade, mas agora tenho que ir mesmo. Muita gente tem TV, mas não tem rádio, não fica sabendo. E eu tenho que comunicar a todos sobre a vinda do presidente. É minha obrigação.”

“Muito bem, não quero atrapalhar seu trabalho. O senhor vai à casa da vizinha da esquerda agora, não é isso?”

“Sim. Depois à casa seguinte. Depois, à seguinte, imediatamente após essa primeira. Depois, à seguinte à seguinte, imediatamente pegada a essa seguinte citada não por último, mas por penúltimo. Me parece o mais lógico.”

“Certamente. Concordo. Até o amanhecer, portanto, o senhor já terá visitado uns dez endereços, creio.”

“Vou me esforçar. Espero que sim. A propósito, doutor… O senhor conhece bem a sua vizinha do lado?”

“Conheço o bastante.  Temos boas relações. Já faz bem uns anos que moramos aqui.”

“Pois saiba que (eu não deveria lhe contar isso, mas…) ela fala com o cachorro.”

“O quê?!”, exclamei, estupefato.

Ele acenou positivamente com a cabeça, sério e quase em tom de lástima.

“Isso mesmo que o senhor ouviu. Precisamente isso. Ela fala com o cachorro. Pois juro que sim. Já a flagrei nessa peculiar situação mais de uma vez.”

“E o cachorro responde?”

“Não sei. Acho que não.”

“Que coisa está se tornando este mundo, senhor oficial! Um declínio assustador. Loucuras da modernidade. Ameaças de devastações climáticas e invernos nucleares. Assassinos impiedosos. Gente conversando com cães e gatos. O que mais nos falta?”

“Eu disse cachorro. Não gato.”

“Sim, sim. Ouvi perfeitamente. Mas não é esse o caso. Mesmo que fosse com uma tartaruga ou com um pernilongo…”

Ele se deteve novamente, fazendo espirrar água a cada movimento brusco, em consequência da inércia, como nos ensina a Física. Inclinou a cabeça, procurando aproximar-se de mim para talvez confiar-me um segredo.

“Pois eu lhe confesso, senhor doutor, e espero que não me julgue mal, que já conversei com um pernilongo.”

Fiquei sem fala. Pisquei lentamente.

“Eu compreendo. Não o julgo, de forma alguma. Não vejo nada de mais nisso. Quer me contar um pouco mais sobre essa conversa?”

O oficial Diamantino levou a mão ao queixo, como se tentasse se lembrar das coisas da maneira mais acertada possível.

“Bem… Eu disse a ele, tão logo o espantava com um tapa no ar: ‘Suma daqui, peste!’ Fui a um armário da despensa, peguei um inseticida, persegui o miserável por uns minutos, encurralei-o e o executei, asfixiado com o borrifar do veneno. Nisso, eu disse a ele: ‘Morra, desgraçado! Morra!’ O senhor compreende, não é?”

Curvei ligeiramente a cabeça para a frente, reverente.

“Claro que sim. Sei também que o senhor poderia, por uma questão de privacidade, nem ter me contado isso. Agradeço muito a confiança.”

“Eu falei com ele, porque não me contive. O senhor compreende, não é?”

“Sim, já disse que sim. Perfeitamente compreensível. E o senhor fez isso por uma boa causa.”

“Certo. Já me sinto melhor. Então… Adeus.”

O homem foi seguindo para a saída, molhando ainda mais o carpete da sala, que brilhava de maneira notável, como se um rio em miniatura, de vibrações cintilantes, saído de uma ilustração de contos de fadas, corresse por ali. Seria o oficial  algum tipo de ser encantado? Estaria morto, seria um fantasma benfazejo? Apaguei logo essas ideias malucas de minha cabeça. Afinal, não havia nada de errado com ele. Estava ali: trabalhando, atuando, cumprindo seu dever.

“Mas isso de falar com o cachorro…”, fez ele um tanto abatido com tal constatação, enquanto saía triste, sob o luar silencioso, à noite de grilos lá fora.

Voltando-me para dentro e cruzando de novo com Denise, aproveitei para perguntar-lhe quando é que a sua irmã iria embora.

“Quando é que a sua irmã vai embora?”

“Ai, amor! Que indelicadeza. Você é um médico. Um gentleman. Um…”

“Quando é que a sua irmã vai embora?”

Denise se aproximou e me abraçou. Um pouco mais baixa que eu, colou facilmente a lateral de seu rosto em meu peito, o alto de sua cabeça tocando-me a parte inferior do queixo.

“A Guerra Civil está para começar. Temos que ajudar, ficar com ela mais um tempo.”

“Começar? Quem disse? Era para ser um segredo de Estado. Só o ministro da Defesa deveria estar na posse dessa informação. Como ficou sabendo disso?”

“O Canal 3 disse que deve estourar nos próximos dias; o Canal 45 disse que será em pouco mais de um mês; e o Canal 152 disse que não passará dos próximos cinco anos.  Tenho certeza disso. Anotei os números.”

“Ahn… Muito bem então”, disse eu, calculando meus préstimos aos desvalidos e prevendo meus lucros.

“Podemos ficar mais tempo com ela aqui?”

“Tudo bem, que seja. Que venha logo essa guerra.”

“Obrigada, meu lindo”, ergueu a cabeça, olhando-me nos olhos. “E quando a guerra estourar, nós vamos ganhar muito dinheiro, não vamos?”

“Nós, não. O médico aqui sou eu. Eu é que vou ter que tolerar o cheiro ruim dos estropiados, os gritos, os gemidos, os guinchos de ratos…”

“Tá certo, amor. Tá certo.”

Ela me beijou com força, projetando seu peso sobre mim, como costuma fazer, forçando-me a flexionar a parte superior de meu corpo para trás. Dada sua altura, que ela alterava ao erguer-se na ponta dos pés, sua inclinação para a frente e a posição recuada que me impunha com a força de seus desejos imediatos, ficava fácil apertar ficava fácil apertar suas nádegas, que sempre me encantaram tanto, mesmo sendo eu médico.

No dia seguinte, lembrei-me de falar com ela sobre a agourenta possível visita do presidente à cidade.

“Não quero que esse canalha passe nem perto da nossa casa, ouviu?” Voltei-me para Denise, que estava na saleta contígua, um recorte arquitetônico de nossa sala maior, vendo TV. “Não quero que esse canalha entre em nossa casa. Ouviu, Denise?”

“Sim, ouvi, meu bem”. E rebentou numa gargalhada absurda. Alguma coisa que estava vendo na TV.

“Se ele aparecer, solte os cachorros em cima dele! Sem dó!”

“Nós não temos cachorros, amor.”

“A vizinha tem um. Ela até conversa com ele.”

Ela riu de novo, histérica e escandalosa. Devia ser alguma cena muito engraçada. Saí de perto, enquanto ela ria como uma arma automática, de maneira rápida, entrecortada e quase perdendo o fôlego.

No fim das contas, o presidente não apareceu.

Na cama, com Denise ao meu lado, lendo um dos calhamaços clássicos do século 20, que trata tão cruel e pateticamente da realidade, eu tentava não me incomodar com minha esposa, que vasculhava sem parar as redes sociais em seu smartphone. Ela resmungava ao ver algo que a indignasse; sorria com coisas fofinhas; ria loucamente de qualquer meme escatológico. Depois, parecia engolir a risada, quedava quieta outra vez. De repente, após um silêncio sem manifestações, na mesma posição, recostada ao seu grande travesseiro, olhos atentos à telinha que mudava de cor, ela disse:

“Estava pensando no Dionísio e na Dulce. Pensando no amanhã.”

“Faz um bom tempo que não os vemos, não é? Esses bons amigos… Tenho saudades dela.”

“E eu, dele. Mas estava pensando, aqui, no amanhã…”

“Não me diga. Era uma surpresa? Eles virão nos visitar amanhã?”

“Quando digo que pensava no amanhã, estou me referindo ao futuro.”

“Amanhã-amanhã, sábado, também é o futuro. Enfim, você os está esperando ou não?”

“Claro que não, meu bem. Eles morreram.”

“O quê?!”

“Há mais de um ano. Eu lhe disse.”

“Disse?!”

“Disse. Disse, com certeza. Você deve ter se esquecido. Anda trabalhando muito.”

“Mas que coisa! Estou chocado. Não é possível que eles tenham morrido. E como foi?”

“Claro que é possível. Um acidente de carro. O veículo em que estavam viajando tombou numa curva, um dos cavalos havia escorregado.”

“Mas… só isso?”

“Ele já estava com cirrose hepática há algum tempo, e, com a pancada na cabeça, morreu; ela havia sido diagnosticada com um câncer no ovário, com forte tendência à metástase, e, com a pancada na cabeça, morreu.”

“Puxa, que terrível!”

“Essas doenças horríveis não escolhem hora, não é mesmo?”

“Ah”, a um tempo lamurioso e surpreso. “Como pessoa, lamento muito. Como médico, tenho que admitir que essa sua narrativa é bastante verossímil.”

“Pois só poderia ser, já que foi o que aconteceu de verdade.”

Denise voltou à sua posição anterior (ela havia se erguido um pouco enquanto me contava essas bizarrices todas), acomodou o grande travesseiro atrás de si e seguiu procurando mil coisas na tela de seu smartphone.

(No dia seguinte, entra em nossa casa esse casal, sorrindo. Olhei ressentido para Denise. “Você não disse que eles haviam morrido? Eu não ouvi bem dessa vez?” Ela sorria. Ria. Gargalhava. “Eu menti.” No fim das contas, nossos amigos ficaram para o almoço, e servimos camarão de erva-doce para celebrar nosso reencontro.)

Passado esse relato breve e sinistro, que mais tarde me fez torcer as mãos de ódio por minha esposa e encará-la com um sorriso mórbido, nervoso e mau, tornei a me concentrar no tema que mais me incomodava no momento: a presença de Denísia em nossa casa.

“Onde ela vai dormir?”

“Não sei. Esqueci de pensar nisso.”

Saí da cama, desci as escadas, vi que Denísia caminhava devagar, com alguma coisa minúscula na palma da mão, que, de longe, parecia ser um grão de ervilha. Aproximei-me. De perto, também parecia um grão de ervilha.

“O que é isso, Denísia?”

“Um grão de ervilha.”

Ela usava ainda o mesmo vestido branco e leve, e andava descalça.

“E eu posso saber aonde você vai com isso?”

“Para o quarto. Vou dormir. Colocar sob o colchão. Pra ver se sinto alguma coisa.”

Continuou andando devagar, subiu as escadas com cuidado, sem tirar os olhos do que preciosamente carregava.

Voltei para a cama.

“Encontrei Denísia lá embaixo. Ela subiu com uma ervilha. Parecia hipnotizada. Ou alienada. Ou possuída por algum espírito manso.”

Denise suspirou de alívio, sem tirar os olhos da telinha, sem parar de digitar alguma coisa.

“Que ótimo. Fico tranquila, quando sei que ela está bem.”

Apaguei a  luz, deixei o livro sobre a mesinha de canto.

No meio da noite, que nos povoados já devia ser um dia ensolarado e lindo, ouvi um barulho na copa. Desci para ver. Denísia procurava uma faca.

“Não achou ainda?”, perguntei.

Ela já havia olhado em todas as gavetas. Parou de procurar, ficou imóvel. Ao lado da bancada central. Cara de sono e olhos mais fechados que abertos.

“Não sabia que era sonâmbula.”

Não sou, palhaço!”

Agora ela usava uma camisola azul-clara, curta e muito decotada, suas pernas e pés, sempre bem cuidados, mostrando-se o tempo todo. Isso era meio misterioso, porque ela andava descalça a maior parte do tempo, e seus pés deveriam estar imundos. E não estavam. Bem, são coisas inexplicáveis mesmo – e também sem importância real.

“Dormiu bem?”

Percebi que ela estava triste e frustrada. Quase começou a chorar, mas conteve-se.

“Sim… Pensei que fosse sentir alguma coisa, com a tal ervilha. Mas adormeci tão logo que me deitei. Não senti nada…”

“Que pena”, eu fiquei triste por ela.

Estava comprovado, portanto, que ela não tinha sangue real, que não era uma princesa. Nem descendente de princesas. Nem relacionada à realeza, nem à aristocracia, nem a altas classes sociais dinásticas, nem a nenhuma dessas porcarias que nunca serviram para nada no mundo.

Abri um armário, umas gavetas, peguei uma frigideira.

“Vou fazer uns ovos de crocodilo com torrada, você quer?”

“Não, ’brigada. Ovos me dão enxaqueca. De qualquer ave. Além disso, estou empanturrada.”

“Empanturrada? Como assim?”

“Eu… eu…”

Voltei-me, prestando atenção ao que minha cunhada tentava dizer. Ela tremia, de maneira crescente.

“Eu… eu…”

“Por que está tremendo assim? Não faz frio.”

“Eu… eu… Não seja insensível. Seu médico! Tremer assim faz parte da situação, faz parte da vida. Da cena toda.”

Fiquei quieto. Ela continuou.

“Eu… eu… comi a ervilha.”

Soltei a frigideira, tamanho o choque.

“Você… comeu a ervilha?!”

“Comi a ervilha…”, repetiu angustiada, e cobriu o rosto com as mãos, afetada pela vergonha. Encostou-se a uma parede e foi descendo devagar até sentar-se no chão, cabeça ainda protegida pelas mãos, agora apoiada nos joelhos. A barra da camisola desceu-lhe até as ancas. Suas pernas consistentes e bem proporcionadas configuravam um espetáculo à parte.

“Lamento que tenha comido a… a… Bem… Enfim…”, não soube muito que dizer, mas tentei mostrar-me solidário, o que não pareceu causar um grande efeito.

“Comi a ervilha”, agora entre soluços mais fortes.

Deixei a frigideira, que por sorte ainda estava seca e limpa, sobre a bancada da pia. Fiquei de pé perto dela, a uns dois passos de distância.

“Não precisa ficar assim. Muitos de nós consomem ervilhas. Somos humanos, isso acontece.”

“Eu comi a ervilha… Não tenho sangue nobre….”, continuou, em meio a um pranto desolador e quase irritante. “Não sou ninguém. Sou um monstro.”

“Bom, pelo menos você está bem. Não se percebe nenhuma alteração no volume de seu abdome.” Na verdade, eu disse isso apenas para tranquilizá-la: na posição em que se encontrava, era impossível ver seu abdome. O que ocupava o plano geral eram suas pernas e pés encantadores. “Mesmo assim, um dia eu acho que… vou ter que examinar você com mais atenção.”

Durante o café da manhã, contei a Denise esse episódio todo da busca por facas e da dolorosa deglutição da ervilha. Denísia não havia acordado ainda.

“Ah, mas como é exagerada essa minha irmã! Claro que ela não é nenhum monstro. Apenas se comporta psiquicamente como um.”

Nessa mesma conversa matinal, aproveitei para contar-lhe que, uns poucos dias atrás, eu havia reencontrado um velho conhecido nosso, tempos de escola, por quem Denise sustentava especial afeto.

“Lembra do doutor Demétrio? Que eu conheci num congresso?”

“Hum…”, ela mordia uma torrada na qual havia passado pasta de grão-de-bico apimentado. “Acho que você já me falou dele. Não sei.”

“Pois eu o encontrei por acaso anteontem, perto do bebedouro municipal dos cavalos.”

“E então?”, ela acabava de tomar um gole de seu suco de oxicoco amargo, produzindo uns ruídos mínimos, similares aos de um gargarejo.

“Ele estava acompanhado de outro homem, muito parecido com ele. Muito parecido mesmo. Num instante, arrisquei dizer que eram irmãos. Aliás, isso era a primeira coisa que saltava aos olhos: essa semelhança.”

“E eram mesmo?”

“Sim. Mas veja que interessante; o doutor Demétrio deixou de ser médico.”

“Como assim? Ninguém jamais, neste mundo, deixa de ser médico!”

“Pois me pareceu ser verdade. Perguntei-lhe o que andava fazendo, no que trabalhava agora, e ele me disse que gerenciava uma pequena fábrica de calçados. Que era dele. Que era dele mesmo. Eu lhe disse: ‘Parece maravilhoso.’, por educação. Ele pensou um pouco antes de dizer algo, e disse: ‘Por aqui, tudo é meio maravilhoso. Ou parece ser.’ Diante dessa resposta hesitante, mas muito a propósito, agora era eu quem passava a refletir: como dizer que por aqui tudo é meio maravilhoso, quando todos nós sabemos que tudo, absolutamente tudo, por aqui, é, de fato, maravilhoso?”

“Realmente, uma resposta esquisita.”

“‘Muito bem. E a sua fábrica fica aqui mesmo, aqui em nossa mesma cidade?’, perguntei, sinceramente interessada. ‘Sim.’, ele respondeu. ‘Estranho eu não saber disso até hoje, não saber dessa sua fábrica.’, comentei. ‘Acontece.’, ele sorriu. ‘Sim, acontece.’, atalhei, em franca concordância com essa sua observação, de profundo cunho filosófico.”

“Que estranho esse sujeito, não é?”

“Estranho é pouco. Escute o resto. Já passava do tempo recomendado pelos bons modos para que ele me apresentasse esse seu acompanhante, que eu quase podia jurar fosse seu irmão de sangue.”

“Era o que estava me incomodando: essa demora. E eram mesmo irmãos?”

“Sim. Só que o outro era um fantasma. O fantasma do irmão dele.”

“Sério? Faz tempo que não escuto histórias assim.”

“Pois bem. Ele mo apresentou como ‘o fantasma do meu irmão’. Assim mesmo. Claramente. Sem reservas. Mantive, como pude, minha tranquilidade e justifiquei-me, dirigindo-me ao seu parente morto. ‘Ah sim. Desculpe-me, não sabia que o senhor havia falecido.’”

“E esse irmão pelo menos lhe respondeu?”

“Sim. Ele fui muito amável. Disse: ‘Não tem problema, fique tranquilo. Faz uns quatro anos, já, que eu morri.’ Portanto, pelo visto, ele se havia acostumado a alguma reação equivocada de eventuais interlocutores. ‘O senhor está muito bem, vê-se. Não aparenta a morte.’, elogiei, com certo otimismo e entusiasmo. ‘Também acho.’, ele assentiu. ‘Eu, modéstia à parte e com seu perdão a algum meu arroubo de autoestima, sempre fui um homem mais ou menos bonitão. Agora, minha imagem se fixou. Não envelheço mais. Serei assim sempre.’ ‘Muito bem’, disse eu, colaborando para mantê-lo motivado. ‘Admirável mesmo. E sempre é uma boa palavra.’”

“Que sujeito esquisito”, repetiu Denise. “Ficar andando por aí com o irmão morto…”

“Temos que respeitar as decisões e o gosto alheios, certo?”

“Claro. Que mais ele disse? (Com todo direito.)”

“Ele disse o seguinte: ‘Éramos sócios’, e um gesto dirigido ao irmão, ao seu lado. ‘Mas ele… ele…’ Olhei para o Demétrio e para o seu irmão morto, com respeito e empatia. ‘Eu compreendo.’, falei, solidário. ‘Sabe, doutor? Eu agora estou pensando em mudar de ramo. Parar de fazer sapatos e passar a fazer água.’”

“Como é? O que ele disse?”

“Isso mesmo. Argumentou que, assim como os barcos fazem água enquanto afundam, ele iria passar a fazer água para não afundar.”

“Ah, sim”, refletiu Denise, em vias de sorrir. “Bem pensado. Muito bem.”

“Depois, no decorrer do diálogo, o irmão de Demétrio ironizou: ‘Veja o senhor: um irmão médico e eu aqui, morto.’ Todos nós rimos. O irmão dele riu especialmente de seu próprio chiste, de uma maneira como nunca eu havia visto e ouvido antes, e isso, confesso, me provocou arrepios – alguma coisa na voz dele, entende? Mas, no fim das contas, foi um encontro, em grande medida, bastante agradável.”

O final de semana acabou. Um novo dia de trabalho. Cheguei à noite, vindo dos povoados, minha rotina. Denise veio recolher meu casaco, meu chapéu de copa alta e carregar minha valise escura. Subi suspirando de alívio e cansaço, aquela sensação absurda e exagerada de missão cumprida. Fui tomar um banho, troquei de roupa, voltei à sala.

“Você se esqueceu de me cheirar hoje”, eu lhe disse.

“É mesmo! Esqueci…”

Ela geralmente me cheira quando chego da rua, assim que adentro a antessala. Funga com força perto das minhas orelhas, ao redor do pescoço, fareja, fuça (quase morde), tentando identificar sinais de alguma outra mulher: cremes, loções, desodorantes, o que seja. Confere meu pescoço e partes superiores da camisa e do casaco com especial atenção, para ver se não encontra marcas de batom. Ela se estica, se inclina em minha direção, para cheirar-me.

“Agora não adianta mais. Já tomei banho.”

Ela riu rapidamente, surpresa com sua própria estupidez.

“Ah! Ahahah… É mesmo. Agora não adianta mais, claro. Me diga. Você esteve com alguma mulher hoje?”

“Sim. Tive que tratar de uma senhora, uma idosa malcheirosa, com tuberculose. O marido dela também era malcheiroso, com mau hálito. Dois velhos nojentos.”

“Ai, que bom, amor, que foi só isso.”

Beijou-me, feliz.

Manhã seguinte, bem cedo, um dia claro de sol e transparência climática. Desci à sala e lá estava Denísia, já acordada, com seus trajes desmazelados, diante do vitrozinho de um recorte lateral, que dava para o amplo jardim do pátio. Aproximei-me por trás dela, um passo de distância, com paciência, com empatia, solidariedade e compreensão, falando com voz discreta e carinhosamente.

“Que porra é essa agora, Denísia?”

“Não está vendo? Uma mosca desesperada.”

Ela estava inerte, concentrada naquilo, paralisada como se fosse parte do Ministério da Educação.

“Imagine como é horrível você ter certeza de um amplo espaço aberto à frente e ficar batendo a cabeça no invisível, dolorosamente.”

Desci a alavanca basculante e libertei o pobre inseto, que, diante dessa chance mágica e inexplicável, desapareceu no ar imediatamente, num voo veloz e prodigioso.

“Chega disso. Vamos tomar o café da manhã, venha.”

Mal nos encaminhávamos para a copa, ouvi que Denise atendia à porta.

“Amor, a Dolores está aqui!”

Voltei-me para cumprimentar nossa conhecida recém-chegada.

“Ah, Dolores. Como vai a senhora? Seja bem-vinda.”

Ela estava com as mãos amarradas, como sempre.

“Doutor Diego, sempre um gentleman. Como vai? Mas não me chame de senhora.”

“Não?”

“Tenho 35 e estou em ótima forma.”

“Sim. Concordo.”

“Concorda com o quê?”

“Com o que disse, é claro.”

Seus pulsos continuavam atados por uma corda fina e resistente, com muitas voltas e muitos nós, e eu nunca tinha conseguido um mínimo avanço no afã de tentar libertá-la.

“Quer tentar mais uma vez?”, ela perguntou, erguendo os braços à altura de meu tórax.

“Sim, posso tentar. Faz três anos que o seu marido a amarrou assim, não é isso?”

“Dois anos e sete meses. Mas eu consigo fazer praticamente tudo.” Agitou todos os dedos para demonstrar o que dizia. As mãos, mesmo, podiam se movimentar em diversas direções, embora seus pulsos estivessem firmemente presos um ao outro.

“Não estou conseguindo…”, murmurei entre dentes cerrados, enquanto me esforçava por encontrar alguma ponta solta de um dos muitos nós. Por alguns instantes, a visão parecia se confundir, e então era como se não houvesse nós, apenas voltas daquela corda hostil, áspera e enganosa. Depois, eles pareciam ressurgir à minha frente, desafiadores, complexos, intrincados. Desisti.

“Desculpe. Não consigo.”

“Não tem importância”, ela sorriu, meiga.

“Espere, espere um pouco. Vou tentar de outra maneira.”

Inclinei-me a certa altura adequada e entrei a morder e roer qualquer parte da corda, usando meus dentes incisivos, normalmente bem afiados. Eram investidas determinadas e quase selvagens. Com isso, ela fechou suavemente os olhos e passou a emitir uns mínimos sons macios e intermitentes. Mesmo assim, não consegui arranhar um milímetro sequer daquela cordinha ultrarresistente. Voltei à minha posição ereta e percebi que Denise observava tudo atentamente, sem sorrir, imagem típica de uma de suas discretas demonstrações de ciúme, que eu tão bem conhecia – ela havia notado que nossa vizinha estava a caminho de anunciar um orgasmo, ali mesmo. Entrou na conversa.

“Você não tem uma faca na sua casa, Dolores? Uma tesoura? Uma lâmina qualquer?”

“Claro que tenho. Mas isso, pelo menos, eu não consigo fazer sozinha.”

“Entendo.”

“Semana passada, uma amiga foi me visitar, e eu lhe pedi que cortasse esta corda com um canivete.”

“É mesmo? E então?”

“Ela não tinha nenhum canivete com ela.”

“Sim, mas… E a faca, a tesoura…?”

“Enquanto ela esteve lá, no tempo em que ela esteve lá, não consegui encontrar nenhuma faca e nenhuma tesoura. Procurei muito, em agonia. Como num sonho ruim. Essas coisas simplesmente desaparecem quando eu mais necessito delas.”

“Entendo.”

“Mas veja só: alguns minutos depois de ela ter ido embora, logo depois mesmo de ela ter saído, esses objetos misteriosamente ressurgiram: estavam no lugar de sempre.” Ela sorriu, tranquila e resignada. “Eu quase gritei por ela pela porta que abri num repente, segurando a tesoura entre os dedos. Mas achei que isso não seria de bom-tom. Imagine o que os vizinhos pensariam de mim, me vendo daquele jeito, gritando por alguém pela porta, não é mesmo?”

“Entendo. Acho que você agiu certo”, observou Denise.

“Que se há de fazer? Paciência, não é? Cada um com seu destino, como dizem. Fica para uma próxima.”

“Sim, temos que ter paciência”, eu disse. “A paciência é uma virtude.”

Denise a puxou pelas mãos, quase pelo tufo de cordas. “Venha cá, venha. Vou fazer um chá de maspênia, vamos tomar um chá lá fora, no terraço.”

“Com licença, doutor.”

“Toda.”

Elas sumiram de minha vista.

Tive que tomar o café da manhã com Denísia, só eu e ela. Tento falar o mínimo, fico de olhos baixos. Gostaria que ela nem estivesse ali. Lembro que, outro dia, essa minha imprevisível cunhada se esforçava por passar pela parede, porque havia lido, em um livro de Física, que o espaço entre os átomos era de um vazio gigantesco. Por isso, tanto os átomos que a formavam quanto os que formavam a parede deviam ter a mesma propriedade. Cuidei de vários ferimentos dela. Uma vez, quase perdeu um olho. Inicialmente, não queria nos dizer o que havia acontecido, mas por fim confessou. Andava interessada em ciência, por aqueles dias.

Nessa manhã, ela estava preocupantemente quieta.

“Que foi, Denísia?”, perguntei enquanto erguia a faca, antes de alcançar a geleia. Toda vez eu eu pego uma faca (para fazer qualquer coisa, menos para matar alguém), ela pensa que eu vou matar alguém.

Sem se mover um milímetro, sem iniciar um único gesto, ela declarou:

“Não me chamo mais Denísia. Não me chame assim. Agora sou Celeste.”

“O quê? Mudou de nome? E que nome é esse? Todas as pessoas que existem têm nomes começados por D, você sabe muito bem, não é mais criança. E de onde, afinal, tirou isso?”

“Não  importa. Não vou contar.”

Passei a geleia em minha torrada. Uma geleia de mirra, do Oriente Médio, que Denise havia comprado recentemente para que a conhecêssemos (indicação de uma amiga dela, cosmopolita e espalhafatosa), cujo sabor nos faz contrair os dendritos dos neurônios.

“Mudou de nome então? Essa é boa! Voltou atrás?”

“Sim. Voltei atrás uma letra.”

“Como assim?”

“Na inicial: de D para C.” Tive que conter minha irritação. Tomei mais um gole de café branco. Aquilo parecia absurdo. No mundo, tudo é tão lógico, racional, coerente, tudo é tão compreensível, tão justo e equilibrado, e essa garota querendo subverter, a troco de nada, as coisas como elas são.

“Celeste. Agora me chamo Celeste. E pronto.”

Ela sempre foi meio esquisita mesmo. Uma vez, eu a flagrei fazendo montinhos de terra no fundo do pátio gramado. Outro dia, vi que ela estava andando sobre o telhado, procurando um brinco.

“Mas se você perdeu o brinco aqui embaixo”, ponderei, “por que acha que ele pode estar aí em cima?”

“Porque já procurei em toda parte da casa. Só falta aqui.”

Ela nunca mais viu esse tal brinco. Sua tese era a de que ele houvesse escorregado pelo telhado inclinado, seguido por uma das calhas e caído em um dos condutores de água, que, no extremo dos extremos, haveria de direcionar tudo o que engolia para o fundo do mar.

Nossa rotina seguia mais ou menos estável. Outro dia, uma mulher estranha bateu à porta (ela vendia doces de héspera e bolinhos de jequirina), mas Denise, observando-a pela câmera, assustou-se. “Que mulher esquisita… Pálida. Esquelética. Será que é a Morte?” “Claro que não”, eu disse. “A Morte não existe.” Três dias depois, um homem que não conhecíamos veio até nossa casa só para contar uma história. Percebi que era inofensivo, apenas mais uma vítima da literatura.

Depois do almoço, Denise contou-me que havia encontrado, no centro da cidade, o pastor Deoclidiano.

“Perto da barbearia. Perto também da farmácia homeopática da esquina em frente. Tive uma conversa muito interessante com ele.”

“Perto da barbearia ou da farmácia? Defina.”

“Perto das duas. Não importa.”

“Importa sim, e muito. É preciso saber se estava mais próxima da barbearia ou da farmácia homeopática. Esses elementos e a imprecisão das descrições fazem diferença na narrativa.”

“Acho que… mais perto da farmácia. Talvez a uns dois passos da farmácia e a uns cinco da barbearia, pelo que me recordo.”

“Certo. Então nem precisava ter mencionado a barbearia, compreende?”

“Sim, meu amor. Compreendo.”

“Quem foi que você encontrou mesmo?”

“O pastor Deoclidiano, já disse.”

“Ahn! Sei.” Afastei-me um pouco dela, girei o corpo, como se fosse buscar algo no horizonte através da janela. “Essa gente de igreja me dá arrepios, você sabe. Como foi essa conversa?”

“Eu disse a ele que tinha visto um comunicado de sua igreja anunciando que estavam fazendo casamentos de bebês.”

“Como é?”

“Escute o resto. Perguntei se isso era verdade. Ele me disse que sim, que isso era um ponto de virada na evolução de seu sistema de crenças.”

“Ele usou essa expressão?”

“Não. Eu é que estou contando assim. Eles pensam que tudo em que creem é verdade, não que seja parte de um sistema de crenças.”

“Foi o que pensei. E que história é essa de casar bebês?”

“Ele me explicou facilmente. Disse que os desígnios de Deus são muito anteriores à existência do homem. E que essas crianças já estavam, desde sempre, predestinadas umas às outras. Perguntei a ele como sabia disso. Uma pergunta quase inevitável, não acha? E ele, com sua voz discreta, sua cordialidade, sua autoconfiança acima de qualquer prova, respondeu: ‘Temos o privilégio de sermos abençoados com o dom divino de sabermos quem vai ficar com quem pelo resto da vida e até mesmo por toda a vida eterna.”

“Que loucura! Isso é um crime! Ele não foi denunciado ainda?”

“Não sei. Parece que não.”

“E quantos casamentos de recém-nascidos eles já proclamaram?”

“Não são recém-nascidos. Precisam ter pelo menos seis meses, ou Deus não consentiria. Há algo de sensato nisso, concorda? Um bom senso. Infelizmente, segundo ele, isso ainda não aconteceu de fato.”

“Não? Nenhum casamento?”

“Não. Nunca aconteceu. Por enquanto.”

“E por que não?”

“Porque os pais não os autorizaram. Segundo o pastor, muitos pais não acreditam nos desígnios do Eterno, não têm fé suficiente, por isso acham que não é uma coisa muito certa casar os filhos tão cedo. Mas ele tem fé que isso deve mudar em breve.”

Essa foi a conversa de Denise com o pastor Deoclidiano, mal e mal narrada por ela.

Enfim, na noite de ontem, recebemos novamente a visita daqueles dois rapazes bem-educados que vinham ver Denísia mais uma vez.

“Quem será a uma hora dessas?”, disse Denise enquanto se encaminhava para a pesada e ornamentada porta da frente. “A gente sempre diz: ‘quem será a uma hora dessas?’, não é?”, acrescentou em voz mais baixa.

“De onde eu estava, vi que eram eles, aqueles dois jovens que estiveram aqui uns dias atrás e acabaram não ficando para o jantar. Seguravam os chapéus nas mãos, respeitosamente.

“Boa noite, senhora. Boa noite, doutor. Viemos ver Denísia.”

“Ou parte dela.”

“Oh sim, vamos entrar, por favor”, eu lhes disse, estendendo um gesto com o braço direito. “Fiquem à vontade.”

“Viemos ver Denísia”, repetiu um deles enquanto caminhava pela sala principal.

“Foi o que entendi”, declarei.

“Ou parte dela. Sim, sabemos que o senhor entendeu.”

“Mas, agora, com renovadas esperanças.”

Imagem: Ilya Repin. Homem do chapéu. 1875.

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Comentários

2 respostas para “Doutor Diego”

  1. Avatar de HUMBERTO JOSÉ BIS
    HUMBERTO JOSÉ BIS

    Gostei muito deste conto pela estranheza que me causou!

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Caro Humberto, bom te ouvir. Esses são os primeiros trechos de uma novela, um texto mais longo, que deverá seguir nessa linha de estranhamento, com o tempo cronológico avariado (com insinuações críticas, de alguma forma). Ainda estou trabalhando em sua continuação.

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