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Projeto esvanecendo-se. O sumiço de Coco Chanel
Coco Chanel nos deixou numa noite de lua. Era outro daqueles dias esquisitos entre o verão e o outono, não lembro ao certo.
Meu segredo ansioso atravessava os dias. E as noites. Eu agia normalmente, sempre. Sentia algum remorso, preocupação. Mas também, por força do hábito e de uma fina crença natural na invulnerabilidade (portanto, na impunidade), eu não mais considerava um problema visitar a Josie à tarde e dormir com a Marjorie à noite, desde que cada lua girasse separadamente, rolando sobre as esferas de vidro que protegem os planetas de nosso sistema solar geoconcêntrico, de tal maneira que elas nunca se encontrassem. Mas nessa noite, uma noite de verão em declínio, caso não tenha dito antes, a Marjorie me chamou com voz meio tensa, quase rouca. Vinha do jardim, entre as sombras e os focos de luz tão familiares, em parte escapando pelas janelas da casa, em parte produzidos pelos quatro postinhos ornamentais entre as aleias estreitas, de onde ela voltava em direção à porta lateral da sala. Me chamou? Que foi? Chamei. Não sei onde ela está. Não encontro ela. Já olhei tudo. A Marjorie estava mesmo preocupada, como há muito eu não a via. Passou por mim, andando sem parar, sua voz me chegava agora por trás. Já procurei em todo lugar… Voltou-se, abraçou-me. A ponto de chorar. Me ajuda, P.
Coco Chanel nos deixou numa noite de lua. Era outro daqueles dias esquisitos entre o verão e o outono, não lembro ao certo. As chuvas haviam desistido de nós. As noites eram limpas claras frescas. Não compreendíamos o motivo de ela ter ido embora. Estávamos agora à frente da garagem, olhando a rua. A essas horas, não muito tarde ainda, os vizinhos já se fecharam em seus domínios, a rua fica deserta. A Marjorie, atenta e ansiosa, queria que eu fosse atrás dela no meio da noite, um Geppetto com sua lanterna de querosene. Marje, gatos são assim mesmo. Ela vai voltar. Mas ela nunca saiu assim, desse jeito. Ela pode ter ido atrás de algum gato, quem sabe. Não pode ser. Ela é castrada. Ela não faria isso comigo. Aconteceu alguma coisa, amor. Aconteceu alguma coisa. Tudo bem, eu vou andar aqui por perto, ver se acho ela. Voltei para pegar um casaco, fiz um carinho no ombro da Marjorie e saí. Não é que eu não quisesse resgatar Coco Chanel, apenas imaginei que ela estivesse por perto e que voltaria logo, que não compensaria ficar andando por toda parte, bastaria dar um tempo para que tudo voltasse ao normal. Mas não voltou.
Quando se sai à noite por aqui, talvez por causa de uma sucessão de irregularidades topográficas próximas, o vento chega a ser opressivo. Parece que alguma coisa se concentra ao redor de onde estamos, diferentemente do resto da cidade. É outro mundo. Andei pela vizinhança, tudo muito solitário, chamando por ela. Dei voltas em alguns mesmos quarteirões, apostei em outros menos simétricos, mais distantes de casa, aqui há ruas em curva, bifurcações por nenhum motivo, o bairro foi formado aos pedaços, entre velhos galpões de fábrica e imponentes residências abandonadas por milionários, escurecidas de poeira por dentro, esquecidas por décadas, patrimônio de ninguém. O vento diminuiu. Nem sinal dela. Avistei um ou outro gato atravessando a rua apressado, bem longe de onde eu estava, mesmo assim podia ver que nenhum deles era ela. Não era Coco Chanel. Era outro como ela, não ela. Outro como eu. Ela, com sua pelagem espessa, sua cauda engrossada na ponta, entre branca e cinzenta clara calma esbelta, de um cinza-branco suave agradável aos olhos, lembrando neve suja, e a cauda, como dizia, desenhada por estrias mais escuras, em intervalos regulares, delimitados por finas regiões de manchas cor de areia, era rara e única. Para nós, naturalmente.
Dia seguinte, bem cedo. Andar por toda parte, ela não pode estar longe. Um bom teste para a esperança. E como imagino uma diversidade de coisas trágicas enquanto sigo por essas ruas. Todo dia morre muita gente no mundo. Muita gente mesmo. E eu aqui, a cada passo. Mas isso não é trágico, afinal. É o esperado, o que só pode ser. É estranho que tantos morram enquanto eu vivo. Imagino sem querer. Mirando tudo o que posso, atento a qualquer coisa parecida com um gato. Mas foi a imaginação que nos trouxe até aqui, temos de ser gratos a ela, mesmo que nos incomode só por ser como é, imaginária imaginativa inventiva. Dela dependem todas as religiões do mundo, já que não existe nada mágico nada místico nada assim fora de nós. Agora, após três milhões de anos dos hominídeos das savanas, após todas as guerras e desgraças que nós mesmos conseguimos causar para obscurecer a memória das gerações futuras (a minha, por exemplo), a incontáveis milhões de quilômetros de qualquer estrela próxima ou distante, agora a coisa mais importante nesta parte do universo é encontrar Coco Chanel.
Vantagens a favor da esperança: bem, Coco Chanel é chorona, choraminga pedindo tudo, isso é uma vantagem, alguém sempre vê, alguém sente pena, alguém quer cuidar. Outra: ela é bonita, e as pessoas, curiosamente, gostam mais de quem é bonito. Desvantagens: ela nunca saiu assim, não saberá voltar sozinha. Talvez se perca cada vez mais, dependendo da direção que tomou. Hoje mesmo, assim que voltar, campanha nas redes sociais. Fotos dela, pequeno texto básico, para não cansar o leitor. Focado, conciso. Pense, vá pensando. Subindo e descendo, ziguezagueando no coração da parte baixa do bairro. Entro na Vicente Oranges, cães de grande porte latem por trás de uns portões a alguma distância, no meio do quarteirão. Um bom sinal, pode ser que alguns gatos estejam reinando por ali, nos muros, na grama dos passeios, nas moitas. Mas na Armando Tarozzo, umas pombas passeavam tranquilas na rua e na calçada. Ausência de predadores. Mau sinal. Fui até a Egydio Trez, voltei pela Quarto Bertoldi. Nada interessante. Muito cedo, talvez. Mas o dia todo é assim por aqui. Perto da esquina com a Wlamir Pupo, um sujeito de bicicleta surgiu em minha direção, parecia mal-humorado, talvez imaginando atropelar-me, não sei por quê, e deve ter se frustrado de eu ter subido disfarçadamente atrás de um poste, na calçada, enquanto continuava andando. Nossa imaginação. A dele e a minha. Podemos nos matar, podemos nos salvar com ela. Vamos sair daqui.
Um terreno plano, manchado por entulho esparso, entre moitas baixas, cacos de lâmpadas fluorescentes, isso tudo bem perto de uma placa, fincada num pau cheio de ferpas: Proibido jogar lixo neste local. Que imundície, que povo porco, nem diga. A coitada da Coco Chanel, andando por aqui com aquelas patinhas sedosas. Vi a Marjorie caminhando descalça por aquela imundície cortante. Minhas digressões queridas. A Marjorie tem uns pés bonitos, branquinhos. Os dedos são bem proporcionados, bem alinhados na frente, em suave escala decrescente. Ela me inspirava quando usava sandálias de passeio, baixas ou altas. Isso me lembra que faz muito tempo que ela não se arruma assim, apesar de saber que me inspira, não só com isso, naturalmente. Estou pensando em você de novo, afetado pelo sentimento confuso que me provoca o sumiço de Coco Chanel. Marje, eu juro: se Coco Chanel não voltar, vou me dedicar mais a você. Vou ficar mais à sua disposição. Vou massagear seus pés.
Logo à frente do terreno, emenda-se uma praça deserta com um parquinho abandonado. Placa: Proibida a entrada de animais. O portãozinho eternamente aberto, pendendo para um lado. Duas clareiras na tela de arame fino, até eu passaria agachado por ali. Esperam que os animais leiam a placa, pelo jeito – e obedeçam. Que abandono, que coisa um pouco triste e fantasmagórica, à luz do dia. Ninguém ali. Nenhuma criança brincando. Como quando vemos pessoas nas ruas e não imaginamos sua solidão. Como parecem bem. E talvez não tenham ninguém com quem brincar. Ali perto, no mesmo quarteirão verde esmaecido, acidentalmente cresciam flores. Pensei em colher algumas para a Marjorie, ela iria gostar, ou estranhar que eu pensasse nisso quando era a Coco Chanel quem dominava todo o potencial de nossa preocupação. Eram uns liriozinhos do mato que murcharam logo, pouco depois de terem sido arrancados. Em minha impressão, quase instantaneamente. Que estranho. Que forte característica adaptativa. Você não vai me levar. Desista, deixe que eu continue minha vida, aprenda que não adianta insistir nisso. Eu não o acompanho não me rendo prefiro murchar prefiro morrer. Assim, quando me encontrar de novo, terei maiores garantias de preservação. Eu frustrado constrangido e respeitoso: ela tem razão. Toda flor deveria ser assim. Todos nós deveríamos aprender sempre. Mas aprender mesmo. Esses lírios minúsculos frágeis indefesos recordaram-me os terrenos baldios de minha infância, no inverno, só no inverno, quando surgiam umas florzinhas roxas de bordas azuis, eu passava por elas quando ia à escola, era muito cedo, era muito frio. Não sabia seus nomes. Elas só se mostravam no inverno, outra maravilhosa adaptação.
Nesse condomínio costumam passear uns gatos de rua, entram e saem pela grade, disfarçados sob plantas, e eu já tinha ouvido conversas de que alguns moradores os alimentam de vez em quando, o que os atrai, é claro, como ocorre com todo ser vivo dotado de bom senso. Talvez Coco Chanel tenha seguido um deles, talvez também quisesse, como nós, envolver-se com mais gente. Minha visão se aproxima do condomínio, o campo vai se fechando conforme caminho, uma tela irregular que foca agora a guarita na entrada, dois portões, muretas decorativas. Vi uma mulher chegando também, em direção à entrada de moradores. Eu a olhei, ela me olhou. Observadores recíprocos. Nenhum de nós se deteve em seus movimentos. Passei bem perto dela para chegar à guarita. Olhos próximos, cabelos soltos castanhos, caindo aos ombros, pele muito clara, dentes um pouco amarelados e irregulares quando sorriu. Muito, muito atraente. Bom dia. Bom dia. Pode ter me confundido com algum morador. Outra pessoa, outro gato, outro cão. Não era ele, era outro. Não era ela. Mesmo assim, eu a olhei com convicção e simpatia. Eu a olhei decidido, pronto e disposto a qualquer sinal de resposta, um adolescente estúpido desavergonhado corajoso por pouco, audacioso por um instante invisível, uma mulher discreta, não insinuante, e eu excitado por uns trocados, mas sem me sentir ridículo em seguida, como de outras vezes acontecera, e ainda bem. Não, eu não era assim, e acho que já disse isso. Essa minha atitude de momento, esses surtos avulsos de autoconfiança cresceram depois de meu envolvimento com a Joss Stone – que é quem me inspira coisas boas e coisas arriscadas. Perguntei ao rapaz da portaria se tinha visto um gato uma gata assim assim, ele indicou-me um homem sentado sob um guarda-sol a alguns metros dali, próximo a um estacionamento aberto. Ele parecia totalmente à toa. Grisalho, olheiras, bigode cheio. Falei com ele sobre gatos. Ele estava mesmo totalmente à toa. Fumando. Aqui num tem gato nenhum. Mas… eu já vi alguns. Num tem: a gente num permite. Pensei que a minha pet pudesse estar por aqui, entre eles, e se o senhor pudesse me mostrar alguma parte do condomínio… Aqui a gente acaba com eles, entendeu? A gente mata os gato. Os morador recrama, nós mata pra num deixá procriá. Fiquei mudo, e desejando que Coco Chanel tivesse passado longe dali. Pedi outra vez, diplomacia renovada, que pelo menos me deixasse ver onde os gatos se escondiam ou por onde passavam. Como é detestável ter de lidar com um tipo desses. Apagou o cigarro, ergueu-se, ajeitou as calças. Vô te mostrá, mas é por minha conta. Eles num gosta que fica entrano gente aqui. Eu o segui por uma das alamedas estreitas que avançavam por toda a extensão dos prédios. Perto da última parede, sob umas árvores finas, de pouca sombra, ele me mostrou uma boca de lobo. Eles entra aqui, tá veno? Se esconde aí. Depois sai de noite, fica por aí. Tem uma moça aqui que dá ração pra eles, mas o síndico ficou sabendo, já falou com ela, já cortou isso daí. Ele fez uma pausa e então, cinematograficamente, num timing absolutamente perfeito a ilustrar o fim de sua fala informativa, começaram a sair gatos de dentro do bueiro seco: um gato ruivo rajado robusto, outro esguio preto, dois outros quase idênticos malhados com manchas cinzentas e brancas, não pareciam gatos de rua, deslocavam-se tranquilos por ali, entre trechos de relva e cimentados, sob a sombra rala das arvorezinhas. Continuei mudo. Num vai contá que eu te mostrei, eles fica por aqui, esconde ali. Quano chove forte e no frio some tudo. E tamém com que que eu vou matá tanto gato assim? Vê se o seu é um desses e já some com ele daqui. Da mesma abertura, saíram dois filhotes, rápidos e oscilantes, seguiram os adultos. Será que tem mais gatos lá dentro? Tem como a gente ver? Não, aí já tá pedino muito, tem que pegá lanterna, aí num dá. Entendi que ele estava blefando, que afinal tolerava os gatos, não tentou assustá-los nem agredi-los. Eu tinha de ganhar tempo e continuar a conversa. Coco Chanel poderia aparecer também, vinda do vão escuro que interrompia o meio-fio. Mas isso não aconteceu.
No verão, anoitece mais tarde. E eu andei até anoitecer. Não conseguia mais evitar minha tristeza ao pensar em Coco Chanel. Por aqui, tudo é tão fácil de percorrer de ver de observar, como foi que não percebi nada, não achei nenhum sinal dela? Como foi que não priorizei certos caminhos, em vez de ter passado por todos, de qualquer maneira, algo que outra vez, mais ou menos melancolicamente, me fez retomar e lamentar minha tendência espontânea à digressão. Esta é sua única vida, Coco Chanel, um pouco comigo. Esta é minha única vida, um pouco com você. Enquanto o tempo nos tolera. O que terá acontecido? Me conte. Raptada, algum automóvel de outra parte da cidade? Atropelada, alguém enfiou você num saco plástico e a misturou ao lixo? Morta, alguma faixa de terreno baldio que não considerei? Só conseguia coisas ruins. Ela não pode ficar assim, desaparecida. Precisamos saber se está viva ou morta. Com um corpo, tudo se define. Um tipo de sofrimento, diferente do outro. Por isso é tão importante identificar restos mortais, saber de meu filho minha irmã meu marido e tantos que foram assassinados durante o regime militar, além de outros homicídios isolados. Sofrimentos diferentes.
Fiquei lembrando de quando viemos para esta casa maior, emprestada de meu sogro, de quando chegou Coco Chanel, nomeada assim pela Marjorie, podia caber sentada na palma da mão, com seu rabicho pendente. Era tão pequena que, quando agitava a cabecinha para espantar gotas de água ou de leite, todo o seu corpinho se agitava também, a ponto de ela quase perder o equilíbrio. Bem cuidada, em pouco tempo havia se tornado a miniatura de um puma, apenas mais peluda, uma fera de brinquedo, a expressão contida de potencial caçadora, adocicada pela falta de motivação, ração de qualidade e ausência de presas interessantes. A Marjorie brincando com ela, descalça camiseta bermuda, no degrau da varanda que abre o jardim lateral, sorrindo, quase rindo, inclinada, mãos apoiadas nos joelhos. Coco Chanel esgueira-se rapidamente, enfia-se sob uma moita de bela-emília. Cadê a minha amiga linda? Cadê minha filhota? Coco Chanel desaparece completamente, não se vê a ponta do rabo. Marje, de cabelos soltos, inclinada para a frente, quase em posição de correr, sorri feliz brincando com ela. Cadê a minha arteira linda? E então Coco Chanel desaparece. Você mexe na moita e não a encontra. Logo em seguida, ela surge do outro lado, ninguém sabe como. Os gatos têm esse poder de aparecer e desaparecer, como sabemos. Como nos contava Lewis Carroll. Mas não, eu sei que ele não devia estar pensando nisso quando escreveu sobre seu gato mágico. Eu é que me perco. Esses autores são brilhantes. Sou sempre eu quem se perde. Essa cena linda, reciclada em minha memória, desperta meu carinho especial pela Marjorie, como não sinto por ninguém mais. Eu amo assistir a um momento de felicidade e espontaneidade dela, principalmente porque me lembram ser tão raros. Em uns poucos minutos, toda a cena terá desaparecido. Em algumas horas, ela será outra, com outras roupas, fazendo outras coisas, e Coco Chanel estará no telhado em algum outro lugar que não fará diferença saber. Em pouco tempo, essas coisas todas desaparecem, eu sei disso. No dia seguinte. Dois meses à frente. Três anos. Quatro décadas. Todas as pessoas vivas, agitando-se ou repousando em seu tempo, em meu tempo, serão outra coisa um dia. Sei que quase ninguém dá atenção a isso, e por que daria? No verão, anoitece mais tarde. E eu andei até anoitecer. Sou sempre eu quem se perde.
Passaram-se dois dias. Duas noites. Perguntávamos no escuro da cama onde ela poderia estar àquela mesma hora. Por sorte não choveu por esses dias. Mas talvez fosse tarde demais para nos preocuparmos com isso também.
Coco Chanel era esguia e elegante. Flexível como todos os de sua estirpe, e podia parecer arrogante interesseira esnobe, mas é claro que nada disso existia para ela. Tudo o que pensamos sobre os animais, sobre a elegância de um cavalo ou sobre a nocividade de uma serpente, é sempre uma visão humana nossa tendenciosa, e os gatos não sabem disso. Um animal não sabe quem é. Não se importa de ser peludo ou não, de ter esta ou aquela cor, de ser considerado útil ao predador homem ou de assustar suas crianças por ser feio, nunca em sua própria visão, que tudo que se pensa deles é produto de nossos critérios, tudo tudo tudo. Coco Chanel era uma companheirinha geniosa e carente. Agora eu, sentado no chão da cozinha, dividindo com ela miolos de pão passados em requeijão. Ela se interessa pela maçã que estou mordendo ruidosamente, aproxima o focinho rosado, não é nada, eu disse que você não ria gostar. Passada a curiosidade, descarta o interesse por mim também. Eu gostava de estar assim, próximo ao chão, de onde não poderia cair. Ou até poderia, mas bem pouco. Por vezes, encostava-me à parede. Desde pequeno, sou assim. Garantindo-me para não cair. Isso a despeito de outras secretas ousadias. Pulava cada vez mais alto, tentando vencer, pela insistência diária, a força da gravidade. Pensava em correr mais do que um tigre. Planejava mergulhar, assim que surgisse uma oportunidade, até a parte mais funda do oceano. Um simples gato era mais realista e esperto do que eu. Meu passado era povoado de idiotices. Não me importam mais nenhuma dessas vergonhosas ideias velhas. Eu não tive sequer capacidade para encontrar nossa mascote, num bairro tão calmo.
Estava começando uma noite escura e triste. Cheguei em casa de cabeça baixa, derrotado. E lá estava a Marjorie com a Coco Chanel: acariciando-a, dirigindo-a até suas tigelinhas de ração e água, verificando se tinha sido ferida em alguma parte do corpo, conversando com ela, carinhosa contida emocionada. Coco Chanel simplesmente havia voltado. Sozinha. Por sua conta. Todo o meu esforço digressivo não poderia ter servido mesmo para nada. Perdi chances de pontuar alguma redenção com a Marje. Coco Chanel, eu também sorri e me senti feliz ao vê-la. Eu estava sendo egoísta, querendo resgatá-la para posar de herói. Não quero mais oportunidades. Recordo com extrema nitidez as palavras da Marjorie. Você sabe que não pode mais viver aqui. Mesmo antes de eu quase ceder à minha vontade de lhe dizer, mas não disse, o que seria um arremate fatal, ainda que, em meio ao tom possível de nossa conversa, pudesse não passar de um blefe, que era eu o amante secreto da Maga. Não, mas não fiz isso. Ela não saberia mais discernir de mim o que era mentira e o que era verdade.
34. Quase uma trégua – anterior
36. Quase todo um reino adormecido – próximo
Imagem: Rua Antônio Fernandes Figuerôa. 2018.
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Comentários
2 respostas para “Projeto esvanecendo-se. O sumiço de Coco Chanel”
Adorei este capítulo! Muitas vezes me senti os personagens procurando pela Coco Chanel, por entre as casas do bairro, por entre os condomínios… O reencontro nos surpreende, pois já a dava como perdida! Este jogo, este clímax nos faz vivos diante de uma narrativa que nos cativa e nos prende! Parabéns!
É curioso notar como Coco Chanel, personagem aparentemente tão secundária, pode nos provocar tanto por sua possível perda. Obrigado por suas palavras, por sua percepção desse trecho.
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