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Comentários sobre a minha e a literatura
É difícil saber o que torna um texto literário mais importante ou mesmo mais estético que outro. Contar histórias não significa muito – e, pelo filtro da estilística, pode não significar nada. Escrever segundo a norma culta e atendendo às estruturas formais de determinado gênero nunca garantiu o valor de um trabalho literário – autores e autoras notáveis, como James Joyce, Virginia Woolf, William Faulkner, Julio Cortázar e Guimarães Rosa subverteram estruturas, formatos e linguagem. O que sabemos é que isso tudo é intencional: tanto uma escrita simples e de fácil entendimento, como a do poeta Charles Bukowski, quanto aquela de tom erudito, usada por Jorge Luis Borges em seus contos, alcançam um mesmo nível, sob o ponto de vista literário, independentemente do tema tratado. O gosto do público é fator zero nessa conta: um autor medíocre pode tornar-se uma celebridade, e uma autora refinada, como Alice Munro (prêmio Nobel), pode ser deixada de lado pelos leitores. Em toda a história, nunca foram os leitores quem definiu o valor da literatura. Mas há uma percepção fina, entre os estudiosos e os leigos de capacidade crítica, que é a responsável pela preservação e pela replicação de textos literários de qualidade, o que nem sempre conseguimos definir sistematicamente.
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Quando escrevi A canção de pedra, meu primeiro livro de contos, entre os 21 e 24 anos, pensava que nada ali poderia ser melhor do que era. Mas algo me surpreendeu muito, em pouco tempo, e isso foi tão estranho que guardo ainda esta enigmática situação seguinte: em um período muito breve, de poucos meses, passei a sentir aversão pelo que havia escrito. Não aceitava a ingenuidade que atravessava aqueles textos, o que incluía até a busca por um improvável sentido da vida – que todos sabem que não existe ou, pelo menos, que ninguém jamais encontrou. Eu era, naquela época, muito influenciado por Hermann Hesse, Oscar Wilde e Hans Christian Andersen, talvez um ranço de infância mal dissipada que se fizesse representar por esses autores ainda, uma maturidade custosa e tardia e, mesmo assim, confusamente instalada em meu pensamento. Tentei recolher e destruir todos os exemplares desse livro, o que se mostrou impossível, mas pessoas próximas, como alguns amigos e meus irmãos (minha mãe não soube que lhe tomei de volta seu exemplar), concordaram em me devolvê-los. Não restou nada comigo. Trinta anos depois, encontrei, por acaso, um exemplar de A canção de pedra em um sebo, e o comprei por R$5,00. Saí de lá como um espião, carregando algo secreto. Folheei o livro, reli alguns trechos, sofri novamente (queria sofrer novamente) por estar mais uma vez diante daquele registro de minha ingenuidade perigosa e latente. Se tivesse esperado um pouco mais para publicá-lo, talvez tivesse destruído a tempo todos aqueles contos, como fiz com alguns outros da mesma fase. Mas não. Eu entendi que aquilo tinha o efeito de uma catarse, assim como o Lobo Mau soprava a casa de cada porquinho, e sua mensagem era: corra para a casa seguinte! Se não sair da infância, se não sair da adolescência, será devorado. Contei algo sobre esse livro no romance Marcas de gentis predadores, como uma maneira inadequada de me perdoar e me consolar. Ele era minha casinha frágil, que eu julgava sólida, antes que construísse uma casa melhor, de tijolos, a partir de Os últimos dias de agosto. Não queria mais escondê-lo de mim mesmo. Publiquei seus contos no blog, e isso, algo aparentemente tão rotineiro, exigiu muita coragem. Entendo que já é hora de me reconciliar com ele, perdoando o menino adulto que eu era – que sempre desejou escrever.
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No romance Os últimos dias de agosto, narrativa sobre uma crise pessoal que atravessa alguns meses e termina em agosto, o jovem personagem central, Júlio Dias, conversa com um interlocutor imaginário, a quem ele chama Augusto. “Dias”, porque ele é um homem comum, cotidiano. A sequência Júlio-Augusto sugere a sequência dos meses julho-agosto. Com a chegada de Estela e o início de setembro, a crise dá sinais de que vai perdendo a força.
No geral, a narrativa segue uma linearidade, uma cronologia, desde a chegada do protagonista à capital até seu envolvimento com Estela, na segunda metade do romance. Mas, sim, é pontuada por memórias e trechos de um diário, o que interrompe a sequência e força o leitor a sempre voltar atrás, voltar um pouco, e repensar o que está sendo exposto. Ilustrando: “Seus sentidos já pressentem o que há de vertigem sob esta superfície, e assim prossigo. Sei que contar não ajuda muito. Contar é já fazer esquecer.”.
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Desde a Antiguidade até o século 18, a literatura foi muito rarefeita: poucas obras, poucos autores. Nos últimos duzentos anos, a constante e crescente propagação da imprensa e as tecnologias aplicadas às artes gráficas (além da oportunidade de alfabetização e da popularização do ensino) geraram, para a literatura, uma expansão desproporcional a todos os períodos anteriores da história humana. Pensando só no Brasil, o século 17 é lembrado por dois literatos apenas: Gregório de Matos e Antônio Vieira – mais de um século, aliás, considerando-se a formação da escola árcade, que só se deu na segunda metade do século seguinte. Agora, mesmo com as obras de Basílio da Gama e Santa Rita Durão, registram-se ainda escassos autores, com destaque para Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, engajados na Inconfidência Mineira. Desfeita a conspiração, houve um hiato de quase cinquenta anos praticamente sem nenhuma obra literária, até que se instalasse, lentamente, o Romantismo. A quantidade de autores e obras escritas (e publicadas) no século 20 é espantosamente vasta, um salto absurdo em relação aos dois mil e oitocentos anos da literatura ocidental. Atualmente, com o acesso aos blogs, esse número intensifica-se diariamente e perde-se de vista.
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Em diversas mitologias e religiões, a ideia de paraíso sugere, previsivelmente, um ambiente ameno, sem extremos, tudo imaginado em cores neutras ou suaves. Por isso, quando deparamos com trechos literários em que o ideal parece predominar sobre a realidade dos fenômenos físicos, suspeitamos que há algo de incomum, de sutilmente estranho, na descrição apresentada.
“No centro da isbá, havia uma lareira com entalhes maravilhosos, de pura prata, e nela ardiam achas douradas, fornecendo um calor constante, que logo penetrava no corpo inteiro. O fogo dessa lareira maravilhosa não feria os olhos, não queimava, apenas aquecia. […] Makar teve vontade de ficar ali eternamente, aquecendo-se.”
Não é o fato de a lareira ser bem-decorada que causa estranhamento (o que pode inspirar a ideia de perfeição), mas o fato de o autor referir-se ao fogo com propriedades que naturalmente não lhe seriam intrínsecas. O trecho citado é parte do conto “O sonho de Makar”, de Vladímir Korolienko.
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É muito difícil (quase impossível) criar algo novo na literatura. Os poemas de Camões são muito parecidos com os de Petrarca, nos quais foram modificados um e outro elemento, em função de se passarem por uma composição nova. Os primeiros versos de Os lusíadas foram inspirados fortemente na estrofe inicial da Eneida, de Virgílio.
Virgílio:
“[…] de Marte ora as terríveis
Armas canto, e o varão, que, lá de Troia
[…] Em mar e terra
Muito o agitou violenta mão suprema […]”
Camões:
“As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
[…] Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana, […]”
Os dois autores pregam os valores de sua civilização sobre as demais, que consideram ímpias e ignorantes.
Virgílio:
“[…] E, em derredor vagando anos e anos,
De mar em mar a sorte os repulsava.
Tão grave era plantar de Roma a gente!”
Camões:
“E entre a gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
[…] Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;”
Mas não há nenhuma surpresa nisso. Esses longos poemas épicos, desde a Ilíada e a Odisseia, eram uma espécie de propaganda do Estado: enalteciam um herói local, que contava com a proteção de certos deuses e deusas, contra outros que representassem povos estrangeiros, a barbárie ou algo parecido. Camões deixa claro que pretende superar seus predecessores, as obras que lhe serviram de referência.
“Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
[…] Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.”
Virgílio buscava, também, superar Homero: a primeira parte de Eneida tenta sobrepor-se à Odisseia; a segunda, à Ilíada. Todas essas obras são chamadas epopeias de imitação.
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Uma obra literária de excelente qualidade é muito rara. A maior parte dos escritores, poetas e dramaturgos escreve sequencialmente, quase uma rotina, um ofício. Na produção de um mesmo autor, ela pode acontecer uma só vez, quando muito. Pode não acontecer nunca, ainda que sua obra seja valorizada em seu conjunto, entre peças diluídas, mas nenhuma que chame a atenção particularmente. Essa obra rara pode registrar-se por meio de um poema ou de um conto primorosos, sem que seu próprio criador consiga repetir a proeza – porque também ele não saberá recompor os fatores que contribuíram para formar sua joia, e isso inclui sua idade, seu nível de interesse pelo tema, sua disposição em produzir algo, o fato de estar munido de conhecimento técnico suficiente no período de sua vida em que lhe ocorreu criá-la, e outros que não alcançará identificar, talvez originados por motivações inconscientes.
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Um sincero sentimento de gratidão pelo músico que me levou, à agência bancária onde eu trabalhava, em São Paulo, alguns dados sobre Tomaso Albinoni. Era um cliente do banco, já tinha sido algumas vezes atendido por mim, e um dia eu lhe contei, durante uma de nossas conversas, que estava escrevendo um livro e queria algo mais sobre o músico barroco, que eu mencionava em um trecho de Os últimos dias de agosto, àquela altura em fase final, após oito anos de elaboração. (Eu o havia começado aos 19 anos e agora tinha 27. Certos trechos dependiam de confirmação, para acertar detalhes, de pesquisa e informações que só se conseguiam, digamos, manualmente.)
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O poema de Manuel Bandeira, citado na página Artistas da palavra, quando mostrado em salas de aula, costumava despertar alguma saudável polêmica.
Ao verem amostras de poemas como esse, alguns alunos diziam, com bom humor: “Ah, mas isso eu também faço!”. Sim, por que não? Acho que também fazem sim. Mas o problema é que não fazem: não se interessam o bastante a ponto de… fazer algo assim. Não pensam em escrever como poetas, querem apenas postar textos avulsos na rede social, em troca de reações imediatas. Resumindo: não o fazem.
À parte isso, não é tão fácil fazer o que todos dizem que todos podem fazer. Quando eu riscava, na lousa, um traço da esquerda para a direita e de cima para baixo, acompanhando a forma do poema, os elementos ali pontuados conduziam a uma espécie de gráfico descendente, como a lateral de um triângulo, encerrando-se na última palavra – pois a narrativa, de fato, configura uma situação descendente, decadente, fechando com a morte do personagem.
Poetas como Bandeira (e como Drummond, em suas próprias palavras) normalmente levam certo tempo para compor um trabalho assim. No texto em questão, observam-se criatividade e precisão técnica em um poema que resulta tão rico em sua composição quanto em seus componentes. Eu sugeria aos alunos que se perguntassem, o tempo todo, enquanto analisavam o texto, por que isto, por que não aquilo, e qualquer tipo de questionamento: se estivessem dispostas na horizontal, algumas palavras não ficariam melhor, em um único verso? Pedia que observassem que, se o autor tivesse optado, por exemplo, pelo nome “bar Dois Irmãos”, em vez de “bar Vinte de Novembro”, isso prejudicaria todo o conjunto, pois a palavra irmão nos inspira fraternidade, companheirismo, e a narrativa não conduz a isso, não pode ter sua ideia central distorcida por outras ideias que não essas que o compõem como um único objeto, configurando uma imagem em nossa mente, cumprindo suas funções, como planejado.
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Neste poema, publicado em 1958, E. E. Cummings conseguiu uma proeza: inserir uma ideia dentro de outra, simulando simultaneidade, assim subvertendo a sequência de tempo, algo quase impossível na literatura.
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A verticalidade do texto dispensa justificativas, já que as coisas caem de cima para baixo. Solidão, uma folha cai – mas não nessa ordem.
Meu amigo Glauco Pinheiro, creio que um pouco enciumado da originalidade desses poetas modernistas, trouxe-me esta pérola.
Estrela que, linda, cintila…
Sem tê-la, ainda posso senti-la…
Os termos do primeiro verso rimam, ponto a ponto, com os termos do segundo verso. Ele me explicou que isso são rimas interparalelas, algo de que eu nunca ouvira falar. Aceitei a definição, que não me pareceu satisfatória, mas desconfio que isso seja mais uma de suas invencionices, produto de sua criatividade entusiasmada, e não deve mesmo constar de manuais de estudo sobre formatos poéticos. (As reticências, ao final dos versos, são inexplicáveis.)
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Muitas artes e mídias multiplicam os formatos da expressão humana. O teatro e o cinema também podem contar histórias. As notícias do mundo podem ser mais impressionantes do que qualquer ficção planejada. Por isso, a escrita deve ser algo mais do que apenas contar. Ela precisa ter algo de singular em si mesma. Algo de especial, que a justifique.
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Este comentário nem tanto envolve a literatura, mas a ideia partiu das páginas de um contista francês. Procurar a felicidade pode ser uma limitação. Isadora Duncan dizia que não estava em busca de ser feliz, que o mais importante era encontrar seu próprio destino – seja o que for que isso signifique para cada um. Marcel Proust escreveu que não se importava em ser feliz, que isso era uma preocupação dos outros: o que ele pretendia era experimentar todas as vivências: além da felicidade e de outras constatações sensíveis, todas as variações da melancolia, desde percepções avulsas, quase inofensivas, até a gravidade de pensamentos não intencionais. Nosso psiquismo é complexo, anseia por novidades, e cultivar uma busca permanente pela felicidade pode nos empobrecer. Para quem aprecia pensar, a felicidade é apenas uma parte de um todo. E ela também pode ser encontrada, com leves pulsações interiores, em meio a eventos tradicionalmente tristes. Eu observo como nós, humanos, criamos rituais fúnebres, solenidades e orações, tendo como centro um semelhante morto; túmulos e marcos funerários na riqueza e na variedade de diversas culturas; poemas poderosos e sublimes, além de réquiens magníficos, tratando desse momento singular. Quando meu pai foi sepultado, fomos sob uma chuva fina que parecia montar um cenário cinzento ou azulado. Só eu, por acaso, repassava de memória trechos de uma sonata que tinha ouvido no dia anterior, e isso me fez sentir particularmente privilegiado. Eu pensava em quantas coisas lindas nós sempre fizemos em torno da morte. Isso, hoje, me faz lembrar uns versos de Jorge de Lima:
Calabar, tu não sentiste
essa alegria gostosa de ser triste!
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O romance A seta de Verena pretendia ser meu último livro. Eu tinha 31 anos, sentia-me desgastado e desmotivado em relação a qualquer leitura, como se houvesse esgotado meu entusiasmo por conhecer qualquer novo texto literário. Não era um projeto. Era um conjunto de textos fragmentados que foi ganhando formas e contornos. Verena seria a musa decadente, a última possível. Durante o processo, ela se tornou uma figura mítica motivadora, aquela que destrói sem medo o que não serve mais e aponta um feixe de possibilidades inexploradas – um processo agora orientado por subversões e ousadias. Talvez a ideia de projetos, planos e objetivos definidos seja o que, estranhamente, contamine e prejudique um processo criativo.
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No final de uma palestra sobre diversidade cultural, focada principalmente em autores e livros, que apresentei na Faculdade São Luís (Jaboticabal-SP), uma aluna do curso de Letras perguntou por que havia tantos casos de suicídio na literatura. Essa pergunta me surpreendeu – porque não havia muitos casos. Foi o que lhe respondi. São bem poucos, considerando a quantidade de autores que se destacaram nos últimos duzentos anos. No Brasil, eu só me lembrava de Raul Pompéia, Pedro Nava e Ana Cristina Cesar. Mais tarde, em casa, lembrei-me também de Francisca Júlia, uma importante poeta parnasiana: seu marido havia falecido em consequência de uma tuberculose; algumas horas após o sepultamento, ela escolheu morrer, ingerindo uma overdose de narcóticos. Seria a atitude de Francisca um ato de amor? Ou de extrema desolação pela morte do ser amado? Será mesmo que o suicídio tem alguma relação expressiva com a literatura?
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Alguns autores são passionais e desprezam as possibilidades da técnica; outros são muito técnicos, quase assexuados, e não têm vida; outros ainda, muito intelectualizados – e a arte não aceita bem a intelectualidade. Lev Tolstói vivia este dilema: entre escrever textos de utilidade pública, que bem servissem à sociedade, e textos literários (ele chegou a renegar dois de seus ídolos, Shakespeare e Beethoven, por considerar sua arte ociosa e sem serventia). Tentava afastar-se dos textos literários, criticando sua falta de finalidade prática, algo que o incomodava, mas, de alguma maneira, sofria recaídas e produzia, eventualmente, outras pequenas obras-primas, no gênero da narrativa curta. Não há como transferir a outros esses dilemas; também não há como ensinar alguém a escrever textos literários por excelência.
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A conspiração dos felizes originou-se a partir da sensação de um sonho. Eu tinha 27 anos, morava em São Paulo. Em uma noite qualquer, sonhei com algo indefinido, que incluía uma pessoa (uma mulher jovem) acabando de se esgueirar e se esconder em um pequeno espaço entre as fachadas dos calçadões do centro da cidade. Quando despertei, tinha pronta uma sequência de ideias fortemente influenciadas por essa imagem aparentemente desconectada da narrativa. Depois, entendi que não era como se alguém, furtivamente, tentasse se esconder de mim: era como se o passado tentasse me escapar, mas ainda deixando uma intensa marca de si mesmo, para que eu pudesse revivê-lo, se quisesse.
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Nos bons tempos das fábulas e dos contos de fadas, era muito fácil enganar os outros. Um leão jogava às costas uma pele de cordeiro e se fazia passar por um. Um lobo imitava horrivelmente a voz da mamãe cabra e tentava entrar na casa dos cabritinhos. Outro lobo arrumava uma touca na cabeça, por vezes uns óculos do tipo pince-nez por cima do focinho comprido, e tudo funcionava: “Não me reconhece, querida? Sou a sua vovozinha.”. O mais surpreendente era que a personagem-vítima franzia a testa e levava a mão ao queixo, muito desconfiada, como se pensasse: “Hum… Parece que há algo estranho por aqui.”.
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Dentre os paradoxos e dicotomias observados em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (considerado um romance neobarroco), está o desfecho que faz do jagunço Riobaldo um vencedor, pondo fim às guerras envolvendo jagunços – um jagunço acabou com a jagunçagem. No caso do célebre romance de Cervantes, o determinado Dom Quixote, mais de cem anos à frente do final da Idade Média, coloca-se na pele (melhor dizendo, na couraça) de um mítico cavaleiro medieval, sem saber que é único e último, com isso transcendendo, sob o aspecto metalinguístico, sua pretensa grande aventura, que encerrou o ciclo das novelas de cavalaria, tornadas obsoletas e até mesmo patéticas, sob o prisma da modernidade – um cavaleiro heroico e idealista pôs fim à figura dos cavaleiros heroicos e idealistas.
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Projeto esvanecendo-se é um romance que reúne todas as técnicas e recursos narrativos que aprendi ao longo de minha trajetória como autor. Diálogos inseridos na prosa do narrador, ausência de pontuação quando se trata de sequências vocabulares previsíveis, fluxo de consciência, neologismos, inserções envolvendo citações adaptadas e outros elementos que antes não estavam sob meu domínio de maneira satisfatória. O romance trata de um processo em curso, propenso à descontinuidade. Com o casamento e a vida profissional desmoronando, um homem passa a reavaliar as chances de retomar sua condição anterior e de reintegrar-se ao ambiente social que conhece por meio de Marjorie, sua esposa, enquanto, secretamente, pensa em uma maneira de nunca mais voltar. Surpreendido, revendo seus valores e atento para não se perder de vez do que ainda o inspira a consolidar significados (motivo maior de alguém continuar vivendo), envolve-se com uma jovem desempregada, após um encontro casual, em um dia “orientado por nuvens”.
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Um menino rico e mimado, que não era escritor, produziu o maior ciclo romanesco da literatura ocidental, referência inegável na cultura do século 20, a que ele chamou Em busca do tempo perdido. Conheceu pessoalmente importantes autores de sua época, que o desaconselharam a escrever, apontando-lhe polidamente sua falta de talento e sua dificuldade em desenvolver uma trama, personagens e outros elementos necessários à realização de romances e contos. (Os trechos de sua narrativa em que ele recorda tais episódios chegam a ser comoventes.) Quando compreendeu que jamais seria um escritor, lançou-se a registrar suas impressões pessoais sobre a realidade, a memória e o tempo, que, inicialmente, ninguém quis publicar. Sua obra é singular, abrangente, e desafia classificações.
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Quando penso no que escrevi, recordo com certa estranheza que estive o tempo todo no limite da exaustão quanto às técnicas narrativas e aos gêneros. Isso permitiu (ou forçou), em boa parte das novelas (como A conspiração dos felizes) e dos romances, o recurso da metalinguagem, quase necessário, tão explorado até certo ponto, mas que eu havia prometido não usar em Projeto esvanecendo-se. Um limite sorrateiro mas presente, entre as possibilidades nem sempre muito claras da criação literária, a ponto de me fazer parar, interromper-me em que estivesse, rever tudo o que tinha até um minuto atrás e por períodos indeterminados, sem qualquer previsão de uma retomada satisfatória. Muitos pensam em contar histórias, tratar de um tema, entre escolhas mais palpáveis. Mas se eu não tinha algo criativo, eu não tinha nada.
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Aconteceu com muitos autores, hoje célebres por seus clássicos, ter sua obra adulta (digamos, sua obra pretensamente mais séria) esquecida. James Barrie ficou conhecido por Peter Pan, personagem de sua peça infantil Peter e Wendy, enquanto suas outras peças teatrais perderam o interesse. Carlo Collodi escreveu A história de um boneco, primeiro livro de uma série de aventuras na qual aparece o personagem Pinóquio – mas seu Romance num navio e suas outras obras… Mark Twain, lembrado também por suas máximas irônicas, consagrou-se com infantojuvenis protagonizados por Tom Sawyer e Huckleberry Finn. Isso aconteceu, de certa forma, com Monteiro Lobato. De certa forma, porque, no caso dele, havia mesmo um projeto com relação à literatura infantil, que o consagraria nesse segmento, ligando seu nome, de maneira permanente, ao mundo das crianças. Foi também o caso do fabulista La Fontaine, cuja obra adulta não sobreviveu – entre aspas, porque as fábulas são, essencialmente, histórias para adultos.
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Projeto esvanecendo-se é o meu quarto romance, o primeiro em que o protagonista é um homem casado. Também o primeiro que não trabalha com metalinguagem. Eu queria que Marjorie e Josie tivessem nomes com finais parecidos, indicando algum paralelo ou vaga similaridade. Coco Chanel é a terceira personagem da narrativa, por sua presença e proximidade, à frente de outras.
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Uma observação sobre o manejo das palavras. A prostituta Rachel, em vez de dizer algo como: “Se alguém precisar de mim…”, diz à sua caftina: “Então, amanhã à noite, se precisar de mim para alguém, mande me buscar.”. Essa escolha da sintaxe faz toda diferença, revela uma terceirização de procedimentos, uma relação indireta, e deixa clara a disponibilidade da personagem para seus clientes.
(A personagem e a fala citadas integram o romance O caminho de Guermantes, de Marcel Proust.)
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Desde os contos de A canção de pedra, eu procurava um sentido para a vida, o que Sartre, também jovem, tentou com A náusea, transformando seus questionamentos em uma obra voltada para si mesma, propondo, com um final metalinguístico, uma espécie de compensação ou mesmo de salvação, contra o passar do tempo e a permanente sobreposição das coisas. Mas Sartre percebeu, mais tarde, que nada disso nos salvaria. Algo parecido foi dito por Freud, ao concluir que não pode haver salvação pela arte (muito menos pelo recurso ocioso da metalinguagem), como também não se encontra um sentido para a vida por se compreender o inconsciente. Seriam apenas atenuantes, que podem fazer alguém se sentir melhor. Na impossibilidade de alcançar algo além desses pensadores, compartilho da mesma conclusão (real, humana, sincera), e tenho para mim que a escrita serve como um sentido de defesa contra a dissolução da realidade.
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Sei que sou um privilegiado, nunca neguei isso. A motivação que sinto como leitor e como autor atravessa todas as fases da vida, indiferente a fatores externos, como um rio invisível, viciado em seu fluxo sempre o mesmo, seguindo por dias desconhecidos. Não cresce com elogios nem diminui com críticas desfavoráveis. É algo em si mesmo. Em mim mesmo.
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A literatura não é uma arte que se realiza em equipe. A escrita tem uma estética própria, uma característica personalizada, envolvendo sutilezas de pensamento e de expressão, desde a escolha por frases breves ou extensas, pela pontuação, por intervenções dialógicas, e isso depende de decisões pessoais, conscientes ou intuitivas, durante todo o processo. O escritor é um animal solitário. Educado e instruído por seus antecessores, de uma linhagem de animais também solitários que constituem uma dinastia mal percebida, com herdeiros não genéticos, invisível, germinando nas sombras, atravessando o tempo.
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Em um desses eventos culturais, fui apresentado a um homem pouco mais velho que eu. Nós nos cumprimentamos, e ele contou que tinha ouvido falar de mim: diziam que eu “escrevia bem”, mas que era “muito técnico”. Eu lhe sorri e disse: “Sim, sou sim. É isso mesmo.” (A meu ver, não faz muito sentido a adversativa “mas” nesse caso.) Ele pareceu estranhar que eu lhe confirmasse isso tão facilmente. Disse-me que gostava de ler poesia, algo que, segundo ele, “vinha da alma” e concluiu dizendo que não gostava muito do que parecesse técnico. Sentamos à mesma mesa, ficamos amigos e, ao longo da conversa, sabendo de seus poetas favoritos (entre eles, Fernando Pessoa), fui lhe mostrando como tudo aquilo era admiravelmente técnico – estendendo os exemplos a Manuel Bandeira, Drummond, João Cabral e até ao enigmático Paul Celan. Ele ficou entusiasmado em saber, confessou que nunca havia observado certos poemas (que ele já conhecia) sob aquele aspecto. Enfim, acrescentou que havia se enriquecido com a conversa e que, daquele momento em diante, sentia uma admiração maior ainda por aqueles a quem já enaltecia como “seus” grandes poetas. “Obrigado”, ele disse, “ganhei a noite.” Eu também, como não? Uma sincera amizade a partir daí.
Leia sobre curiosidades literárias: Coisas de curiosos
Imagem: Ilya Repin. Ponte em Abramtsevo. 1880.
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Comentários
2 respostas para “Comentários sobre a minha e a literatura”
Sua literatura não é apenas importante, com uma estética criativa e própria, dona de um refinamento ímpar, é muito mais, é muto mais. É um privilégio ser seu leitor, muito obrigado.
Muito obrigado, Ermelino, pelas palavras. Saiba que também me sinto muito gratificado em ter leitores como você.