Office in a Small City por Edward Hopper

Coisas de curiosos

Vincent van Gogh talvez seja a ilustração exemplar do fracasso. Fracassou nos estudos, no trabalho, na convivência social, no amor e na arte. Não pôde sustentar a si mesmo, não foi bem-sucedido com mulheres, não se casou nem teve filhos, não conseguiu estabilidade financeira e não foi reconhecido como artista. Como, inicialmente, demonstrava forte vocação religiosa, inscreveu-se para um curso de Teologia, em uma universidade de Amsterdã, para o qual não foi aprovado. Aos 37 anos, com um tiro no peito, pôs fim à sua vida.

(Escolhi uma de suas obras [Quarto do artista em Arles, de 1888] como abertura deste tópico.)

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Os sumérios foram os criadores da escrita, e a tudo que sucedeu antes dessa novidade chamamos Pré-História. Eles dividiram o ano em doze meses. Inventaram a matemática, a roda e a cerveja.

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O mais antigo autor (escriba) conhecido foi Ahmose, que viveu provavelmente cerca de 1650 a.C. Era o escriba egípcio responsável pelo papiro intitulado Instruções para alcançar o conhecimento de todas as coisas obscuras (também conhecido como Papiro Matemático de Rhind), trabalho que versa sobre equações simples e que atesta a antiguidade da matemática egípcia. Esse papiro, no qual cada problema (equações, cálculos de área etc.) é visto como um caso especial, fornece descrições detalhadas de métodos para se operar valores numéricos. É o mais antigo livro de matemática do mundo, com 87 questões e suas respectivas soluções, sendo as primeiras cinquenta sobre cálculos de áreas, envolvendo triângulos (por exemplo, a questão número 56 trata de pirâmides). O fato de esses estudos provavelmente não serem mantidos em segredo pelos matemáticos egípcios (como mais tarde fizeram os seguidores de Pitágoras, revelando-os somente aos supostos iniciados) pode ter permitido grandes avanços na área da geometria e da arquitetura. Talvez Ahmose tenha sido apenas o copista do papiro em questão, não o matemático. Mas a importância documental desse texto é reconhecidamente valiosa para os historiadores.

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A palavra mês, do latim mensis, aparece pela primeira vez na língua portuguesa em um texto de 1255. A raiz dessa palavra refere-se à Lua (mond em alemão, maan em holandês, moon em inglês) e deu origem a outras palavras, como mênstruo e menstruação (lat. menstruum, pl. menstrua). A associação se deve aos ciclos menstruais e aos primeiros calendários lunares.

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As pessoas sempre deixaram restos espalhados. Vemos a prova disso por toda parte, nas ruas da cidade e nos depósitos de lixo. Nossos museus exibem objetos salvos dos restos de outras épocas: moedas romanas, cerâmica egípcia, porcelana Ming, tecidos incas. A lista é infindável, e cada peça conta a mesma história genérica: os humanos fazem objetos, usam-nos e depois se desfazem deles, jogando-os fora como lixo, ou ocasionalmente ofertando-os numa cerimônia, como o sepultamento de uma pessoa importante. Os restos do passado são a base da arqueologia.  

Richard Leakey, A evolução da humanidade, 1994.

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Filolau, filósofo de cultura grega, imaginou que nosso planeta não era o centro do universo e que, além disso, viajava através do espaço. Segundo ele, a Terra, assim como o Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno e as estrelas, circulavam em esferas isoladas em torno de um fogo central, do qual o Sol, sendo visível, seria apenas um reflexo. Isso perfazia um total de nove esferas girantes, às quais ele acrescentou uma décima, a que chamou Antiterra, um planeta sempre oculto para nós e situado do outro lado do Sol. Todo esse esquema foi idealizado simplesmente para associar-se aos poderes místicos do número 10, que era tido como mágico pelos pitagóricos apenas porque era a soma de 1 + 2 + 3 + 4. Essa foi a primeira especulação conhecida que se fez sobre a possibilidade de a Terra mover-se pelo espaço. Dois mil anos depois, a teoria heliocêntrica de Copérnico foi classificada pela Igreja como uma “heresia pitagórica”.

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Há pouco mais de 5 mil anos, os fenícios viviam em cidades-estados independentes: Ugarit, Biblos, Sidon, Tiro e Beritus (atual Beirute). Fenícia tem origem em Phoinnik ou Phoînix, palavra grega para púrpura, cor de um pó corante vendido pelos fenícios e não encontrado em nenhum outro lugar. (O nome Espanha vem de uma palavra fenícia, I-Shafan, que significa costa de coelho.) Os fenícios eram grandes navegadores, mas não deixaram literatura ou registros escritos, além de algumas curtas inscrições em pedra. O alfabeto fenício, criado em 1050 a.C., era inovador: os sinais representavam sons e não pictogramas. É o sistema ancestral dos alfabetos grego, latino, árabe e hebraico.

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Somos arquivos ambulantes de uma sabedoria ancestral. Nossos corpos e mentes são como monumentos vivos dos raros sucessos de nossos antepassados.

Helena Cronin, A formiga e o pavão, 1996.


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A palavra ciúme tem a mesma origem da palavra zeloo: o latim zelúmen, cujo significado original (excesso de cuidados) foi alterado para algo mais especificamente associado ao relacionamento amoroso e ao instinto de posse. Essa palavra é mais usada no plural.

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A evolução não cria mecanismos especiais para nenhuma espécie. Se nosso lado sinistro denuncia nosso passado animal, o mais nobre também o revela. Quando um chimpanzé traz comida para o companheiro doente, uma gorila enfrenta o macho enorme para defender um filhote que não é dela, a orangotango coça as costas do filho ou um bonobo cola os lábios nos da fêmea e introduz a língua em sua boca, por que não dizer que tais atitudes representam altruísmo, solidariedade com o mais fraco, carinho materno e beijo na boca? O que nos diferencia dos outros primatas não são as atitudes nobres nem as bestiais, mas o fato de termos um sistema nervoso central mais elaborado e versátil que o deles.

Drauzio Varella, Borboletas da alma, 2006.

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Talvez o mais antigo texto literário do mundo seja a Epopeia de Gilgamesh, escrita pelos sumérios cerca de 5 mil anos atrás. A versão que chegou até nós foi organizada sob o governo do rei assírio Assurbanipal, há 2700 anos. Não se conhecem os autores.

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O mais antigo pensador conhecido (e o primeiro evento histórico datado)

Tales de Mileto, descendente de fenícios, é o mais antigo filósofo ocidental conhecido, considerado o fundador da ciência e da filosofia gregas. Foi o primeiro a supor que a vida teria evoluído a partir da água por processos naturais, mais de dois milênios antes de Darwin. Previu o eclipse do Sol em 585 a.C. (Medições astronômicas atuais datam o eclipse, previsto por Tales, em 28 de maio de 585 a.C.) Os medos e os lídios, que estavam prestes a entrar em guerra, temendo o fenômeno, optaram por um acordo de paz e desistiram do conflito armado. Essa batalha, que não se realizou, tornou-se o primeiro acontecimento histórico datado com absoluta precisão. Antes dele, as explicações para o universo eram míticas. Seu enfoque no conhecimento por meio da razão, da observação da natureza, e não nas crenças religiosas, foi o nascimento do pensamento científico. Os escritos de Tales não sobreviveram. O que sabemos sobre ele encontra-se nas obras de Diógenes Laércio, Simplício e principalmente na Metafísica de Aristóteles.

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Através dos livros, ouvimos a voz de outra pessoa, talvez de uma época e de um lugar distante, talvez morta há milhares de anos, que fala, clara e silenciosamente, dentro de nossa cabeça, direto para nós. A escrita é talvez a maior das invenções humanas.

Carl Sagan, Cosmos, 1980.

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A palavra estrofe tem origem no grego boustrophedon, significando “como o boi ara”, referindo-se aos sulcos na terra, que são também a ideia básica para a denominação verso, pensando-se no ato de escrever até o fim da linha e voltar (como na prosa), continuando na linha seguinte, algo semelhante ao aspecto simétrico das terras cultivadas.

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“Navegar é preciso, viver não é preciso.”, disse o general romano Pompeu, em 70 a.C., aos marinheiros temerosos de viajar em plena guerra. Ao citar essa frase em seus textos, Fernando Pessoa reafirmou seu significado original, embora alguns consigam, por causa do duplo sentido do vocábulo “preciso”, em português, dar-lhe oura interpretação: navegar seria um ato de precisão, auxiliado por instrumentos e técnicas específicas; viver seria algo sem precisão, imperfeito e imprevisível. (Pompeu foi o mesmo que disse: “Não me venham falar em leis. Nós temos armas.”)

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A agricultura e o sedentarismo surgiram na Idade da Pedra, entre 12 e 10 mil anos atrás, no Neolítico. Os primeiros assentamentos agrários conhecidos localizam-se em Iraq ed-Dubb (Jordânia) e Tell Aswad (Síria), seguidos de perto por Jericó (Israel), na região conhecida como Crescente Fértil – desertos irrigados pelos rios Tigre, Eufrates e Nilo. A expressão crescente fértil foi criada pelo arqueólogo James Breasted, da Universidade de Chicago, em 1916: uma alusão à lua crescente, forma sugerida pelo arco formado pelas regiões estudadas.


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Pouco se conhece sobre a vida de Pitágoras, considerado o primeiro matemático – ele próprio teria usado pela primeira vez essa palavra: mathematikós, relativo à instrução. Também foi o primeiro a usar a palavra filósofo. O maior êxito científico atribuído a Pitágoras foi a descoberta de que as cordas dos instrumentos musicais produziam um som tanto mais alto quanto mais curtas fossem. (A Acústica é o único ramo da Física que permanece inalterado desde os tempos dos antigos gregos até os dias de hoje.) O chamado pitagorismo sobreviveu por cerca de cem anos após sua morte. Por volta de 350 a.C., encontrava-se praticamente extinto.

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O vocábulo escrita tem origem no latim scriptum. E a palavra serifa (a linha que arremata algumas letras, usada para fechar os números romanos nas partes superior e inferior, por exemplo) chegou até nós pelo inglês serif, que por sua vez provém do holandês schreef, significando “linha escrita”, e originada na palavra schrijven, outra vez “escrita”. O vocábulo schreef associa a ideia de linha e também de escrita. Portanto, de alguma forma, escrita e linha têm uma relação direta em suas origens.

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Em 1915, o alemão Alfred Wegener publicou seu trabalho sobre a origem dos continentes, sugerindo que as placas tectônicas, moldando a superfície da Terra, são as desenhistas do mapa que conhecemos hoje – tanto como serão suas silenciosas destruidoras em eras futuras. Mas sua teoria não teve boa aceitação, e os cientistas da época a rejeitaram. A posição de Wegener como cientista e como pessoa era bastante modesta, tendo em vista suas conquistas pioneiras. Em sua terceira viagem à Groenlândia, participou de uma expedição de resgate que levava mantimentos a alguns colegas, em um local remoto. Na volta, foi vitimado pela hipotermia, apenas dois dias após ter completado cinquenta anos. Wegener morreu de frio.

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Em agosto do ano 79, as cidades de Pompeia e Herculano foram destruídas pelo Vesúvio. Plínio, o Velho, naturalista romano (caso raro em que um mesmo homem conciliou uma importante carreira militar com a erudição), estava com sua frota em uma base naval, a alguns quilômetros dali, quando foram surpreendidos pela erupção. Ele ordenou que lhe preparassem um barco e uma pequena tripulação, rumou em direção a Pompeia, mas, antes disso, teve que aportar em Stabia, em razão das altas temperaturas e das nuvens de gases vulcânicos desviadas pelo vento. De lá, seguiu por terra enquanto os moradores do local tentavam fugir, em sentido contrário. Pouco depois, seu corpo foi encontrado por seus companheiros: ele fora asfixiado pelos gases tóxicos do vulcão, do qual tentou se aproximar, movido por sua irrefreável curiosidade científica. (Na língua inglesa, a Vulcanologia usa o adjetivo plinian, referindo-se a erupções em série, como as que destruíram Krakatoa no século 19.)

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Em 1865 foi publicado Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll. Ele era principalmente um matemático, apaixonado por charadas e ideias absurdas (nonsense). Tinha o estranho e discreto “hobby” de fotografar meninas nuas ou seminuas, com autorização de suas mães. Deixou instruções para que, após a sua morte, essas imagens fossem destruídas, temendo comprometer as meninas, que um dia seriam adultas, poderiam se constranger com isso e, quem sabe, ter problemas com seus futuros namorados ou maridos – lembrem-se de que estamos falando do século 19, Inglaterra vitoriana. Mesmo assim, cinco dessas fotografias sobreviveram. Inicialmente, seu clássico iria se chamar Alice debaixo da terra.

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Dos franceses herdamos palavras como gárgula (gargouille, do antigo gargoule, do radical garg, garganta, acrescentado do francês goule, goela). Tanto quanto em garganta, a origem é onomatopaica, imitando o som produzido ao expectorar ou escarrar. Gula, gargalo, gargalhada, gargarejo e engolir têm uma mesma origem, um radical comum. As gárgulas eram a saída de água das calhas, nas construções góticas, e geralmente apresentavam formas grotescas de monstros ou demônios.

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A Terra abrigou, no decorrer de sua história, cerca de cem vezes mais espécies do que as existentes hoje. A enorme acumulação de fósseis de espécies desaparecidas nas camadas geológicas é conhecida desde a época de Leonardo da Vinci (que contribuiu para a sua descoberta) e deixava os teólogos bastante constrangidos, a partir do momento em que ficou claro que o homem era apenas um dos últimos a terem nascido sobre a Terra, da qual muitas espécies já haviam desaparecido sem esperar por sua chegada.

Rémy Lestienne, O acaso criador.

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O homem que dividiu o mundo

No mapa de Hecateu de Mileto, a superfície terrestre era dividida em uma metade norte (Europa) e uma metade sul (Ásia), tomando como estrutura divisória a linha leste-oeste do Mar Mediterrâneo e as montanhas do Cáucaso. Os dois continentes foram desenhados em forma de semicírculo e rodeados pelo oceano infinito (Oceanus, o oceano-rio). Os gregos não eram grandes viajantes, a exemplo dos fenícios, que eram menos letrados e menos específicos, por isso não se dedicaram tanto à cartografia. A Líbia (não o mesmo país que conhecemos hoje) tem esse nome desde os mapas de Hecateu de Mileto.

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Marcel Proust reescrevia muitas vezes um mesmo parágrafo, colando o novo texto por cima do anterior. Os originais manuscritos ficaram como cartões toscos, com muitos papeizinhos sobrepostos, mais tarde destacados por especialistas, usando solventes especiais, que não danificavam a tinta, permitindo assim que se conhecesse todo o processo criativo da obra, desde a primeira versão até a final, dada como definitiva pelo autor, assim uma espécie de joia lapidada. Lendo seus textos, parece mesmo difícil mudar uma palavra de lugar sem causar alguma perturbação em todo o arranjo. A série “Em busca do tempo perdido”, com cerca de 3 mil páginas, é vista como um monumento da literatura ocidental.

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Guimarães Rosa inscreveu Sagarana (que inicialmente se chamava apenas Contos) em um concurso literário e perdeu o primeiro lugar em razão do voto de desempate, que foi de Graciliano Ramos, presidente do júri. Esses dois prosadores geniais são chamados os dois “G.R.” da literatura brasileira. Mais tarde, quando encontrou Graciliano em um evento, Guimarães lhe agradeceu pelas duras críticas e reescreveu o livro, na versão que conhecemos. (O vencedor do concurso foi Luís Jardim, com o livro Maria Perigosa.)

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Metamorfoses é de autoria de Ovídio; A metamorfose, de Franz Kafka.

Bernardo Guimarães foi o primeiro escritor regionalista brasileiro, com o romance O ermitão de Muquém, publicado em 1869.

O mais antigo texto conhecido dos primórdios de nossa língua é a “Cantiga da Ribeirinha”, escrita por Paio Soares de Taveirós. As datas são incertas, mas sempre se apontam duas: 1189 ou 1198. (Coincidência? Ou a dezena final foi trocada por erro?) Trata-se de um poema centrado no voyeurismo, em que o eu lírico se apaixona e se incomoda depois de ver, secretamente, a jovem Maria Ribeira na intimidade, se trocando. Nossa literatura começou com essa discreta sacanagem.

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Sorvete tem a mesma origem de xarope, que significava suco ou poção, um preparado de frutas com sabor adocicado (do árabe xarāb, pelo francês sorbet). Mais tarde, o equivalente ao xarope passou a ser ministrado com funções terapêuticas, enquanto o equivalente ao sorvete continuou sendo visto como sobremesa – depois consolidando-se na tradição de uma iguaria que se serve gelada. No inglês, xarope se diz syrup, sendo a matriz do árabe filtrada pelo latim medieval syrupus.

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O verdadeiro nome de George Orwell era Eric Arthur Blair. Ele adotou o pseudônimo para não comprometer a família, de origem tradicional. Nasceu na Índia, foi policial na Birmânia (hoje Myanmar) e jornalista na França. Lutou na Guerra Civil Espanhola, quando foi ferido no pescoço, o que tornou sua voz ligeiramente afeminada. Andava pelas favelas de Londres para conhecer o que seriam alguns cenários de seus romances, como para as expedições de Winston pelo bairro dos proles e para o esconderijo onde se encontrava com Julia, no clássico 1984, romance publicado em 1949 mas terminado em 1948 – Orwell aproveitou o ano como título e inverteu a última dezena, assim chamando-o 1984 e localizando-o no futuro. No túmulo de Eric Blair, não há nenhuma referência ao pseudônimo que o consagrou.

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Palavras como boicote, guilhotina e silhueta são derivadas de antropônimos. Respectivamente, de Charles Cunningham Boycott (1832-1897), militar britânico (inicialmente significava isolar uma pessoa, intencionalmente, ignorando-a e vetando-lhe acesso à participação na comunidade), Joseph-Ignace Guillotin (1838-1814), médico francês que defendia uma maneira indolor de executar os condenados, e Étienne de Sillhouette (1709-1767), ministro da economia da França, que impôs severas medidas durante a crise de 1759, tornando-se seu sobrenome sinônimo de algo barato e feito com material acessível – antes da invenção da fotografia, as silhuetas eram uma maneira simples de se preservar as feições de uma pessoa, caracterizada por seu perfil delineado, como nas efígies de moedas.

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Aos 27 anos, Yuri Gagárin foi escolhido para tripular a nave Vostok, que permaneceu em órbita por 90 minutos, perfazendo uma volta completa ao redor da Terra. Dentre as transmissões radiofônicas desse voo pioneiro, registram-se trechos como: “Eu vejo a Terra. A visibilidade é boa. Ouço vocês perfeitamente.”. Só isso já seria emocionante, considerando-se que era aquela a primeira vez que nosso planeta era visto por alguém. Mas as palavras que se tornaram históricas, embora até hoje sua veracidade seja discutível, foram: “A Terra é azul. Como é maravilhosa. Ela é incrível!” Durante a Guerra Fria, muitas informações eram classificadas como segredo de Estado, e era comum, tanto aos EUA quanto à União Soviética, manipular frases de efeito incorporadas à sua propaganda oficial.

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Manuel Antônio de Almeida, autor de Memórias de um sargento de milícias, foi quem deu ao jovem de 17 anos, Joaquim Machado de Assis, um emprego como aprendiz de tipógrafo. Joaquim aprendeu o serviço, passou a publicar artigos no jornal e depois livros que mudaram o curso da literatura de sua época. Ser mulato e pobre durante o regime escravagista não permitia melhores oportunidades de trabalho, por isso essa ajuda de Almeida pode ter sido decisiva na carreira de seu colega escritor. Almeida morreu aos 30 anos, uma das vítimas do naufrágio do vapor Hermes, nas costas do Rio de Janeiro.

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Nós conhecemos fadas, bruxas, duendes e outras entidades míticas porque a Igreja não conseguiu eliminá-las. Os homens do clero não tinham poder de fiscalização nos campos, em locais remotos, como nas proximidades das cordilheiras dos Alpes, e os povos periféricos conseguiram preservar sua cultura. O processo de ascensão do cristianismo promovia a intolerância e a destruição de mitos e templos pagãos da Antiguidade, como poucas vezes foi igualado na história humana. Mas, apesar de toda essa perseguição, pequenos grupos mantiveram, mesmo de forma clandestina, suas mitologias. De Carlo Ginzburg: “Por muito tempo – séculos, até milênios – matronas, fadas e outras divindades benéficas e mortuárias, habitaram, invisíveis, a Europa de influência céltica.”.

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O pedido de socorro, em inglês, nos casos de emergência envolvendo navegação aérea ou marítima é mayday, que parece significar “dia de maio”. Mas é uma forma corrompida do francês m’aider ou m’aidez, que significa “me ajude”. Nos tempos do telégrafo, era usado o S.O.S., uma sigla cujas letras em código Morse correspondiam a três pontos, três traços e três pontos. Além de ser fácil de se memorizar e de se transmitir, era um arranjo muito incomum na língua inglesa (o aparecimento dessas três letras, nessa sequência), o que, por si só, fazia ver que alguma coisa poderia estar errada. Mais tarde, atribuíram significados ao velho S.O.S, como “Save our souls” (salvem nossas almas) ou “Save our seamen” (salvem nossos marinheiros). Essas versões são adaptações posteriores, configurando uma daquelas ciladas etimológicas que não correspondem à verdadeira origem do termo em questão.

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Francisco de Assis se chamava João: seu nome era Giovanni di Pietro di Bernardone, e Giovanni deriva de Johannes, antiga forma latina que deu origem a Johann, João, Jean, John, Juan, Gian e outras formas adaptadas. Voltando ao assu… Voltando ao santo: Francisco (Francesco, no italiano) foi rebatizado por seu pai, Pietro de Bernardoni, que tinha importantes relações comerciais com a França. Outra versão sugere que Francesco foi um apelido dado por Pietro, que o considerava “afrancesado”, talvez em razão do gosto de Giovanni pela literatura de língua francesa ou porque teria voltado de uma viagem à França encantado com os costumes locais.

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Fernando Pessoa, a quem associamos a imagem de um boêmio de vida instável, era bilíngue, foi educado na África do Sul, e desde menino um excelente aluno, destacando-se por seu desempenho brilhante. No Liceu de Durban, era um dos mais destacados e costumava ser aprovado com distinção nos exames. Seus primeiros poemas e seus primeiros contos (inacabados) eram escritos em inglês. Aos quinze anos, foi admitido na Universidade do Cabo com a melhor nota entre centenas de candidatos, razão pela qual recebeu o prêmio Rainha Victoria. Na juventude, leu quase todos os clássicos latinos e ingleses. Aos onze anos, com o pseudônimo de Alexander Search, enviava cartas para si mesmo. Sua obra poética principal, pela qual se tornou célebre, não foi publicada em vida.

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Jogos de tabuleiro

Damas, palavra que faz você pensar em mulheres nobres ou figuras do baralho, alguma coisa de europeia ou medieval, deve sua origem ao árabe ax-xitranj, depois tornado attaman. Em sua versão final, damas. De certa forma, tem a mesma origem da palavra xadrez, nesse caso uma ideia associada ao número quatro, quadros do tabuleiro, quadriculados.

Xadrez e quatro têm a mesma origem. O nome do jogo, do sânscrito shaturanga, significa quatro membros ou quatro partes: no jogo original, o chaturanga, eram os elefantes, a cavalaria, as carruagens (ou barcos) e a infantaria. O jogo era praticado na Índia do século VI, quando ainda se usavam elefantes como veículos de guerra. Conforme se difundia pela Europa, os elefantes foram substituídos por torres. A palavra passou pela seguinte evolução (respire fundo): chatur anga, chaturanga (sânscrito), schatrayan, schatrayn, shadrayn e shadran ou shatranj (persa), al-xedrech ou as-xatranj, alxedrez (árabe), aljedrez (espanhol) e… xadrez.Ufa! Na China, tornou-se xiangqi (de xiangi, xongi) e no Japão, shogi.

O nome do número 4 (em espanhol, cuatro) vem do latim vulgar quattor, depois quattuor. Bem antes disso, a palavra era kwetwores, a mesma que originou chatur no sânscrito.

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En-Heduana (Acádia, atual Iraque, 2285 a.C.-2250 a.C.) é a mais antiga autora da literatura conhecida pelo nome, mencionada em um disco de alabastro atualmente conservado no Museu da Universidade da Pensilvânia, EUA. Como sacerdotisa, ela tinha o poder de administrar as artes, a agricultura e o comércio, além de ensinar ciências, particularmente Matemática e Astronomia. Foi a primeira pessoa, até onde se sabe, que tentou compreender o movimento dos planetas rochosos. Referências a En-Heduana mostram-na como possuidora de grande erudição e conhecimento. Em um de seus poemas, ela descreve seu pai e as grandes cidades governadas por ele, conquistadas da civilização suméria, a mais antiga do mundo. En-Heduana é citada como a primeira pessoa de cujos trabalhos se conhecem a autoria – melhor dizendo, a primeira autora conhecida de toda a história humana.

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No mesmo ano em que Gagárin orbitou a Terra pela primeira vez, os soviéticos bateram o recorde de permanência no espaço, com a Vostok II, tripulada por Gherman Titov, até hoje o mais jovem cosmonauta da história. Ele pegou no sono, já que os controles eram automáticos, tornando-se assim o primeiro ser humano a dormir no espaço. Foi também o primeiro a sentir enjoo em órbita.

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Johannes Brahms, um dos maiores nomes do Romantismo, conheceu o casal Schumann (os compositores Robert e Clara), o que influenciou decisivamente sua vida e sua carreira: aos 20 anos, foi recebido por eles como um artista genial, e Robert o chamava de jovem águia. Nos últimos anos de Robert Schumann, que faleceu precocemente, correram boatos do envolvimento entre Brahms e Clara, com quem manteve uma amizade especial e afetuosa até a morte – para muitos, uma forte paixão não correspondida. A morte de Clara o abalou profundamente. Nas palavras de Catherine Lépront, “ele acabara de perder aquela que deslumbrara sua vida de compositor e desnorteara sua vida de homem, excluindo, por sua simples presença, todos os outros amores.” No ano seguinte à morte de Clara, Brahms ficou doente pela primeira vez na vida. Faleceu aos 64 anos, em Viena.

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As ruínas do esplendor dos sumérios não deixam dúvidas: a primeira civilização da história humana comportava casas simples e menos simples, mansões e palácios. A civilização e a divisão do trabalho trouxeram pela primeira vez ao mundo o conceito de ricos e pobres.

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Um poema genial de Cassiano Ricardo.

Serenata sintética

Lua
morta.

Rua
torta.

Tua
porta.

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Nas narrativas sobre Sidharta Gautama (o Buda), há um episódio em que ele sofre três tentações: da luxúria, do medo e da submissão à opinião alheia – este último item é algo a que nenhuma outra religião se refere. Ele superou a primeira tentação, porque já se havia desfeito dos desejos carnais. Então o Senhor da Luxúria se transformou no Senhor da Morte e lançou contra ele todas as armas de um exército de monstros, para testar seu medo. Mas Sidharta já havia encontrado em si mesmo o ponto da eternidade, e não se importava de morrer. As armas, então, se transformaram em flores de reverência. O Senhor da Luxúria e da Morte transformou-se então no temível Senhor dos Deveres Sociais, e perguntou o que ele havia feito de útil em sua vida. Sidharta tocou o chão com os dedos da mão direita e não se incomodou com a pressão do Senhor dos Deveres Sociais, com isso vencendo a terceira tentação. Nisso, a voz da deusa-mãe do universo ecoou por toda a floresta: “Este é o meu filho amado, que já se doou de tal forma ao mundo que não há mais ninguém que possa dar-lhe ordens. Desista dessa insensatez.”. O elefante, no qual estava montado o Senhor dos Deveres Sociais, curvou-se em reverência ao Buda, e todo o exército de monstros dissolveu-se, como num sonho. Nessa noite, ele atingiu a iluminação. Permaneceu no mundo por mais cinquenta anos, ensinando o caminho para livrar-se do egoísmo.

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A palavra tique é uma onomatopeia (derivada de som), mas há versões diferentes para sua origem. Uma delas é a de que seja derivada do alemão ticken, que significa tocar de leve; outra sugere um termo da medicina veterinária, com registro no século 17, que associava ticq ticquet a uma súbita suspensão da respiração dos cavalos, seguida por um ruído, uma espécie de soluço que produzia comportamentos estranhos – pode ser que daí tenha se originado o uso atual desse termo, quando nos referimos a tique nervoso.

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Um advogado aposentado e sem pretensões literárias ficou conhecido como “O pai da literatura infantil”, porque pela primeira vez revestiu de formato literário as narrativas dirigidas às crianças. Aos 62 anos, Charles Perrault resolveu recontar aos netos as histórias do folclore europeu que ouvia de sua mãe, na infância. Aos 70 anos, publicou a coletânea “Contos da Mamãe Gansa”, que incluía “O gato de botas”, “O Pequeno Polegar” e a mais antiga versão de “Chapeuzinho Vermelho”, dois séculos antes da versão dos Grimm. Entre elas, a versão mais conhecida de “Cendrillon ou la petite pantoufle de verre” (Cinzazinha ou o sapatinho de vidro), que conhecemos como “Cinderela” – um clássico não intencional. Cendrillon, o nome da personagem, tem origem em cinza: ela fica ao lado do borralho, junto aos gatos (daí, a gata borralheira), remexendo as cinzas com uma haste de lareira. É o único lugar da casa em que ela consegue se aquecer (literalmente e metaforicamente), o que significa que não conseguiu se libertar da morte da mãe e do tempo em que não era tratada como serva.

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Por volta de 2000 a.C., diversas civilizações viviam sua efervescência cultural, mesmo sem conhecerem umas às outras. Os arianos invadiram o norte da Índia. Os assírios haviam se estabelecido na região do alto Tigre, norte do atual Iraque, em meio a um grande movimento de indo-europeus vindos do Cáucaso. Os cretenses haviam sido dominados pelos aqueus, e isso deu início à formação da civilização grega, com a migração de povos nômades (além dos aqueus, jônios, eólios e dórios), que ocuparam a região dos Bálcãs. Também perto de 2000 a.C. surgiu o I Reino Dinástico Chinês. Os chineses inventaram o papel, a bússola, os sistemas monetário e de pesos e medidas.

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Machado de Assis nunca frequentou uma faculdade. José Saramago tinha o equivalente a um curso técnico (ele foi serralheiro e mecânico). Clarice Lispector mal conhecia teoria literária, e certa vez em que sua amiga Nélida Piñon a levou para assistir a uma palestra sobre o tema, saiu em poucos minutos, acendeu um cigarro lá fora e disse: “Vamos embora daqui. Se eu continuar vendo isso aí, não vou conseguir escrever mais nada.”.

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A última apresentação dos Beatles aconteceu na laje de cobertura da Apple Corps, em 1969. Conta-se que uma senhora do prédio vizinho chamou a polícia, reclamando do barulho. A confusão nas ruas próximas e as dificuldades com o tráfego contribuíram para que as autoridades entrassem no prédio e ordenassem o fim do espetáculo improvisado. Como (no Reino Unido) a lei é para todos, após cinco canções completas e cerca de 40 minutos de apresentação, os rapazes, como bons cidadãos britânicos, pegaram suas coisas e voltaram para dentro.

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Mascote e máscara têm origem na Europa medieval, de uma raiz comum. A primeira, do francês mascotte; a segunda, do italiano maschera, ambas do antigo provençal mascoto, que significava sortilégio, referindo-se a uma pessoa ou animal que pudesse trazer boa sorte. No latim medieval, masco era um termo associado à feitiçaria e significava bruxa ou fantasma, uma entidade indefinida, de onde vem a palavra máscara, inicialmente uma maneira de se esconder a identidade com algum véu ou tecido de cor negra.

Leia mais: Coisas de curiosos 2

Mais curiosidades sobre literatura e outras artes: Gotas, goteiras, chá com bolinhos

Imagem: Vincent van Gogh, Quarto do artista em Arles, 1888.

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8 respostas para “Coisas de curiosos”

  1. Avatar de Edison Cazallas
    Edison Cazallas

    Olá, Professor. Estou lendo o seu livro. Você tem uma letra gostosa de se ler. A minha secretária está incumbida de enviar o meu primeiro aos escritores. Espero receber dicas para a melhoria de minha escrita.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Olá, Edison. Que bom saber, sinto-me gratificado quando ouço isso de um outro autor, e também um leitor especial. Grande abraço.

      1. Avatar de Edison Cazallas
        Edison Cazallas

        Perce – Pág.186 GRATIDÃO – Preciso estudá-la mais… Já ouço o teu imperativo silêncio gritando: estuda-la, amigo! (Ou estuda-a?)
        O “graças a Deus” com suas comadres tua mãe prova (saboreia) a existência Dele. Uma folha cai. A respiração do cão não estingue o silêncio da floresta.

        O alicerce é granito.
        Se existe a inexistência,
        Vasto silêncio, um grito,
        É Fé ou Experiência.

        O sabor da Fé nunca o provei. Mas o verbo prova e comprova: a inexistência inexiste; só o que existe é a existência. Dessa nós sabemos saborear o sabor sabiamente. Baco ou Dionísio, tudo sabe a vinho. E viva Apolo! Deuses não nos faltam… palavras, às vezes.

        1. Avatar de Perce Polegatto

          Caro Edison, obrigado pelas palavras, em si mesmas questionadoras e buscando um diálogo com o pensamento. Grande abraço.

    2. Avatar de Edison Cazallas
      Edison Cazallas

      Alguém já te falou que o rosto “familial” no chão de tijolos vale um livro à parte? Título – Síntese de uma Vida em Família.

      1. Avatar de Perce Polegatto

        Interessante observação. Poderia ser o início de uma narrativa em flashback.

  2. Avatar de Fanny

    Curti muito e vou recomendar.

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Obrigado, Fanny. Vou, aos poucos, acrescentar mais curiosidades neste tópico.

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