Office in a Small City por Edward Hopper

Sonhos alados

“Olhe”, disse a pomba, apontando a cascata. “As pedras cercam as águas que caem e modelam seu curso. Mas a espuma, sua parte mais pura, esta flutua acima das pedras, e desenha, com suas nuvens de gotículas, os mais belos arco-íris.

O canário observou a queda d’água e, num instante de claridade, concordou com o arco-íris.

Um pobre canário, desfolhando tristes melodias entre grades, assistia ao nascimento e à morte dos dias sem a mínima migalha de esperança.

As grades, barrando-lhe horizontes, eram tudo o que o separava de viver. Como poderia viver realmente, engaiolado por um mero capricho? Como sorrir pela manhã, tendo à frente o dia inalcançável? Como dormir, abraçado a tanta amargura?

Na casa onde se dependurava sua cela portátil, vivia uma família feliz que diariamente enchia seu bebedouro e lhe proporcionava uma ração medida de alpiste, para que sempre cantasse e alegrasse ainda mais o lar povoado de felicidade. Certamente era bem tratado, e tinha a seu dispor três poleiros alternados, onde poderia escolher ficar. A mãe da família feliz preocupava-se com sua saúde, e às vezes acrescentava vitaminas à sua porção de alpiste, para que se fortificasse e ganhasse novos tons de amarelo vivo, que tanto apreciavam os vizinhos. Já chegaram a oferecer algum dinheiro por ele, mas o pai da família feliz recusava sempre, reafirmando que o passarinho não tinha preço, que sua voz e sua beleza eram inestimáveis. Acrescentava que o canário era parte da família, de estimação das crianças.

As crianças não se importavam com suas canções, mas tinham também seus meios de brincar com o prisioneiro. Cercavam a gaiola, batiam as mãozinhas por todos os lados e riam-se com o aflito canarinho desnorteado. Às vezes levavam o gato e o seguravam entre as grades, deixando o pássaro cheio de horror, a esvoaçar desesperadamente, face à proximidade do monstro. Por sorte, a família feliz não gostava dessas brincadeiras, pois o alpiste que caía sujava o chão, sempre tão limpo, a mãe então ordenava que fossem brincar com algo mais proveitoso.

Aquele havia sido um dia cansativo para o pequeno engaiolado e, ao fim da tarde, além da costumeira melancolia, baixou também um pesado cansaço sobre seu corpinho frágil. Entoou ainda uma canção antes que o recolhessem. Então, passou a lamentar-se:

“Que fiz eu para merecer tão triste destino? Serei culpado de cantar? Fui condenado por ter uma bela plumagem, que delicia os olhos dos homens? Tudo o que os homens adoram é escravizado e aniquilado, pagando com a própria vida o preço de seus caprichos. Assim acontece com outros como eu. Pois não arrancam as flores de suas hastes e não as deixam a morrer nos vasos frios, por nada? Como posso esperar que alguma coisa se transforme? Ai dos seres que o homem consagrou, pois estão sujeitos à dor, à destruição e ao aprisionamento. Ai dos que têm o pêlo sedoso que forra os casacos e dos que produzem perfume em suas vísceras. Como devem ser felizes os animais que, aos olhos do homem, não têm valor algum. Os gambás e os ouriços vivem tranqüilos nas florestas, mas quem poderá salvar-me, que sou belo e não posso evitar acordes que derivam a lindas melodias?”

E chorou amargamente suas lagrimazinhas solitárias.

O cansaço e a noite o venceram. Afundou a cabecinha na plumagem, deixou-se tragar pelas inebriantes primeiras visões que precedem os sonhos. Logo viu-se transportado a outras paragens que não a casa da família feliz. Colinas verdes onde tudo florescia harmoniosamente, um regato de águas claras que caía em delicada cascata sobre as rochas logo abaixo, deixando levantar uma nuvem de gotículas e espuma que se esvanecia no espaço aberto. Era a primeira vez que sonhava com esse lugar. E como tudo parecia verdadeiro! Sentiu como se estivesse realmente livre, deslocando-se levemente pelo ar, respirando o aroma fresco do orvalho nas folhas. Tanto o pequeno pássaro se deliciou em voar por sobre aqueles jardins intermináveis, tantas vezes pousou nos ramos floridos e cantou, celebrando o milagre da vida, julgando que o inebriante sonho jamais alcançasse seu desfecho, que mal percebeu uma outra ave, pouco acima e atrás dele, quando uma voz branda alcançou seus ouvidos.

“Não se assuste”, a voz era a de uma pomba de plumagem claríssima, que o olhava ternamente.

Os olhos do canário encheram-se de lágrimas emocionadas, pois há muito não ouvia a voz de algum semelhante.

“Quem…?”, balbuciou confuso, e não soube terminar.

“Sou apenas sua irmã mais velha”, explicou a pomba com carinho. “Sei de seu sofrimento e de seu injusto destino. Quero lhe dizer que já é bem próxima sua liberdade.”

Dizendo isso, abriu graciosamente as asas brancas e alçou voo em direção ao horizonte.

“Espere!”, chamou o canário, tentando em vão alcançá-la. “Volte, por favor!”

Logo ela desapareceu, e ele viu-se outra vez perdido e atordoado. Sentiu que tudo girava desordenadamente, e despertou assustado, os primeiros raios da manhã ferindo sua vista, as grades desenhando paralelas no chão ressecado da gaiola.

Compreendeu, decepcionado e lúcido, que tudo não passara de um mero sonho. Aqueles lugares todos não eram para ele, que estava confinado e sem possibilidades de fuga. Mas fora o sonho tão lindo que apenas a lembrança dos jardins, com o frescor da realidade, tão intensa em certos sonhos, era o bastante para afagar-lhe o coraçãozinho solitário.

O dia outra vez terminou, e a noite caiu com o peso do tempo perdido, o tempo que voava, parecendo rastejar.

O canário adormeceu profundamente e, tão logo firmaram-se as imagens, reconheceu os mesmos jardins que o haviam deliciado no dia da noite anterior. Alegrou-se por estar de volta, voava levemente pelo espaço aberto. Viu, na distância, um ponto branco que se deslocava, mas com movimentos leves e extremamente graciosos, contra a leveza do céu. O canário seguiu em sua direção, sabendo, desde o princípio, tratar-se da enigmática pomba que lhe havia escapado da outra vez. Ela, como esperando por ele, descrevia com as levíssimas asas sua dança de nuvens.

O canário voou ao seu lado, tentando imitar seus movimentos, e recebeu, como primeiro sinal, um olhar sereno de quem espera e encontra, na linguagem que só os pássaros sabem decifrar. Seguiu-a por entre as formações diáfanas e flutuou ao seu lado durante muito tempo, antes de ousar perguntar:

“Onde está a liberdade?”

A ave sorriu e procurou o fundo de seus olhos.

“Não é preciso que lhe diga.”

E novamente se afastou, ante os esforços desesperados do canário que, após um labirinto de nuvens, perdeu sua companheira de voo e viu-se desperto, às portas de outro longo dia, na casa da família feliz.

Tivera um dia movimentado. Mudaram-no de lugar várias vezes, porque era dia de limpeza. Depois, o gato, sorrateiramente, quase o alcançou, quando esqueceram por mais tempo a gaiola no chão. Finalmente, a mãe da família feliz o salvou de um garotinho que visitava a casa e pretendia brincar de veterinário com ele, tentando injetar água no dorsinho emplumado, para, em seguida, proceder a uma delicada cirurgia no estômago.

À noite, tornou a encontrar a misteriosa pomba, dessa vez pousada no ramo de um cipreste. O canário acercou-se dela, pousou ao seu lado, dirigindo-lhe um olhar de quem implora uma palavra.

“Onde está a liberdade?”, perguntou com tristeza.

“A liberdade”, disse calmamente a pomba, “está em toda parte.”

Como o canário não compreendesse, temeu que ela partisse novamente, sem dizer mais nada. Mas dessa vez ouviu:

“A liberdade, meu pequeno amigo, não pode ser tomada nem concedida pelos homens. O tempo aprisionado é insignificante quando comparado aos voos intermináveis. Podem confinar seu corpo e impedir suas asas, mas sua liberdade continua intacta num estágio ainda precário, até ser conquistada definitivamente.”

Eram bonitas palavras, mas o canário já conhecia a natureza dos sonhos, mesmo os mais nítidos, e sabia que logo estaria de volta à gaiola diária, apenas com mais essa lembrança da noite anterior.

“Olhe”, disse a pomba, apontando a cascata. “As pedras cercam as águas que caem e modelam seu curso. Mas a espuma, sua parte mais pura, esta flutua acima das pedras, e desenha, com suas nuvens de gotículas, os mais belos arco-íris.”

O canário observou a queda d’água e, num instante de claridade, concordou com o arco-íris. A pomba ergueu-se magistralmente, num voo amplo, e o canário a seguiu por entre as nuvens, sem perdê-la dessa vez.

“Alegre-se”, sorriu a princesa do ar. “Logo você estará voando comigo, cantando sobre esses jardins…”

O canário alegrou-se com a doce ilusão que lhe proporcionava o sonho e sorriu, muito comovido. A companheira, sua irmã mais velha, guia e mãe, tornou a falar, agora pela última vez:

“Volte e, ainda uma vez, cante. Assim, eu lhe asseguro, sua liberdade já está conquistada.”

Dizendo isso, desapareceu entre as formações mais claras, da cor de sua encantadora plumagem.

Durante todo o dia que se seguiu ao sonho, o canário cantou e deu aos ouvidos humanos canções magnificamente belas. Todos reconheceram o valor do passarinho. Na casa da família feliz, os adultos elogiaram sua voz e suas canções. As crianças admiraram-se de que pudesse compor daquela maneira, e os vizinhos roeram-se de inveja. Mas o que ninguém sabia era que ele cantava pela última vez.

À noite, exausto e já sem voz, aninhou a cabecinha em si mesmo e adormeceu profundamente.

A luz da manhã encontrou, no chão da gaiola, um corpinho de penas, gelado e sem vida, trespassado pelas sombras paralelas das grades inexpugnáveis. A família feliz acercou-se da gaiola com tristeza, lamentando a preciosa perda.

“Quantos anos tinha?”, perguntou o avô da família feliz.

“Não faz mal, a gente compra outro”, disse o pai da família feliz.

Alguém mencionou o gato, mas outro retrucou que era comum morrerem devido a algum problema do coração.

Para os membros da família feliz, para os vizinhos e outras pessoas vulgares, era apenas um passarinho morto. Mas os pássaros e aqueles cujos corações têm asas, estes sabem que o canário está verdadeiramente livre e flutua, com sua companheira, pelos caminhos alados de seu sonho, sobre as árvores e entre as nuvens, respirando o frescor das colinas, a paz do regato.

Este é o sétimo conto da coletânea A canção de pedra, publicada em 1985.

1a versão, 1983. 2a versão, revisada, 1989.

Leia mais de A canção de pedra: Viagens

Imagem: Ilustração da edição original.

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