Office in a Small City por Edward Hopper

Cores, sombras: aquarela de passagem (trecho)

Texto apresentado no sarau da Casa do Poeta, maio 2019.

Este conto é sobre um menino que pensa em desenhar e pintar para registrar seu universo, desde a infância, e que mais tarde se encontra com sua consciência a mostrar-lhe que o tempo, naturalmente, haverá de desmanchar tudo que um dia existiu.

……….

Calçamentos de pedra, ladeira acentuada, minha mãe levando-me pela mão. De novo a entrada estreita da loja de molduras, o cão da oficina, o papagaio da quitanda: é apenas o caminho de volta. Mas, aos seis anos, tudo é fascinante em qualquer caminho.

O papagaio habita o poleiro da casa junto à quitanda. Há uma argola de ferro para suas acrobacias e caixotes de maçã sobre os quais ele ama passear. Silencioso e pouco alegre, ele me atrai. Mamãe explica que é uma ave muito velha. Talvez viva assim infeliz por não poder morrer. Por não saber morrer quando deseja.

Em um dos filmes mágicos que me serviram à infância, havia um artista de rua que pintava paisagens improvisadas no chão de uma praça. Ele dispunha de velhos pincéis amarrados a varetas, tinta ordinária, panos imundos, estendia um boné aos que passavam, e assim ganhava a vida. Essa praça era também o caminho diário de uma jovem garçonete que ele cortejava e a quem dedicava algumas de suas precárias maravilhas, sabendo que ela lhe admirava o talento e mantinha com ele um discreto envolvimento, entre breves e simpáticos diálogos. Certa vez, enquanto ele lhe mostrava algumas de suas novas criações, começou a chover, e todos assistiram desconsolados à dissolução das vivas paisagens, tornadas borrões de tinta sem sentido. As pessoas rapidamente se dispersam, e a moça então lhe diz, solidária: “Oh, Pierre… A chuva desmanchou teus lindos desenhos.”. Ele move os ombros, não sem alguma tristeza. “Não tem importância. Faço outros.” Nossos nomes eram de alguma forma parecidos, o que despertava minha atenção e me fazia menos sozinho. O que mais eu queria, como ele, era desenhar.

A lembrança do papagaio triste, sentimento só comparável ao bem que se deseja a uma pessoa querida, é de uma rara e profunda sinceridade, desde os dias claros da infância, a ladeira com minha mãe, o primeiro caminho de casa. Não ter dado um nome ao pequeno papagaio, uma simples palavra, e não poder chamá-lo com doçura… Em meu íntimo, ele passeia ainda sobre os engradados de maçãs a sua humildade, o seu silêncio. Seu segredo.

Resta-me a certeza de que não quero pintar. Não há mérito artístico nas poucas telas e carvões que, por algum motivo, ainda guardo – e não espero mais do que ser esquecido por isso. Pareceu-me, nessa ocasião, rever a jovem do filme, desta vez dirigindo-se a mim: “Oh, Pierre… O tempo desmanchou teus lindos desenhos…”. E não a consolo. Nem lhe respondo.

Cores, sombras: aquarela de passagem

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