Office in a Small City por Edward Hopper

Tudo à flor da pele

O que me obrigava a trabalhar por alguma coisa ou ser alguém, como todos?
Que compromisso eu tinha com o resto dos homens?

Podia pensar outra vez, o que era pior. Raciocínios banais ocorriam-me como revelações, tudo parecia do avesso. O que há sobre o mundo são os cérebros de hoje, que imaginam o passado. Livros guardam, em código, o que já não existe em parte alguma. E só o que não existe pode ser registrado. A morte, um momento como este agora. O futuro também não existe. O tempo nos enganou. E o tempo talvez seja Deus. Vida e morte, duas fases do mesmo fenômeno. E não se situam na sequência que nos parece óbvia. Confundem-se. Talvez o que me ocorresse então: eu pressentia as duas simultaneamente, cada momento um qualquer, o de hoje e o de amanhã, tudo sendo um só e mesmo vazio. Em meu desespero, cerrei o punho, como se o mostrasse ao mundo, mas de cabeça baixa, quase sem me dar conta disso. Não podia resistir ao que me dominava, à sensação de indiferença e insignificância, repetia-me: não se pode ser tão pouco! Qualquer coisa que eu fizesse, se nunca mais voltasse ao trabalho, se continuasse trabalhando no mesmo lugar até me aposentar, até morrer, se bem vivesse minha juventude ou não, era tudo pouco, pouco… E não se pode ser tão pouco! Não se pode…

Enquanto caminhava para lugar nenhum, estranhava-me, como se não importasse mesmo ser de raça humana. Claro que não. O que me obrigava a trabalhar por alguma coisa ou ser alguém, como todos? Que compromisso eu tinha com o resto dos homens? Poderia simplesmente livrar-me deste mundo de uma vez, já que isso iria acontecer um dia. Mas, nessa tarde, a morte não me tentava, nem chegava a ser um consolo. A vida me confundia e me arrastava, mostrando-se mais forte do que qualquer outra intenção, mesmo imaginada.

Um homem passando por mim, o gesto ritual de persignar-se. Que tem ele? O que isso tem a ver com qualquer coisa? O carrilhão da matriz, as seis horas. Por isso ele se benze, está claro. Faz sentido, pois qualquer coisa assim estranha faz sentido em minha confusão de valores, e parece tão normal como ridícula. Seis horas. Então é isso. Isso resolve tudo, não é? A tarde, as horas. Nem vi como passaram. E passaram.

Para onde vou? A galeria, o atalho. Para onde? O sangue outra vez, novas sensações febris. O elevador abre-se no térreo. Gente que entra e sai, a confusão das seis. Ouço desculpas, alguém me esbarra, logo atrás, essa que me olha de repente e se detém como por encanto, algo nos envolve e nos atrai olhos nos olhos. Talvez estranhe algum brilho inesperado nos meus. A boca pequena, uma expressão suave de espanto, como se me reconhecesse. Não, não me conhece e já compreende o engano, eu não sou quem ela… Talvez nem fosse isso. Mas esse encontro de, no máximo… três (quatro? cinco?) segundos, agitou-me a ponto de alterar-me. Eu, à flor da pele. Tudo à flor da pele. E mesmo que pareça absurdo, só o que eu ouvia era o som de seus sapatos, dos sapatos dela, seus passos no piso da galeria. Até que se misturasse aos outros, perdendo-se de mim. Sem saber, ela também me trazia alguém, uma namorada, anos atrás (quatro? cinco?): Silene, a que havia se suicidado. Por que nunca pressinto sua volta? Por que hoje, em minha quarta-feira, em minha tarde de nada? Por que, após a febre estranha, que também não era nada, que passou, que se perdeu, que se curou? Ao contrário do que seria de se esperar nesse dia de loucuras, suas feições firmavam-se em minha memória, como se pudesse vê-la outra vez, nitidamente. Lembro-me dela e de mim mesmo, de meus sentimentos com relação à vida e ao amor. Naquele tempo, eu mal havia rompido com certas convicções, menos ainda com todos os valores do mundo. Assim como a garota do elevador, que desde então tornara-se nítida e inesquecível para mim. Enquanto viver, recordarei seu rosto encantado em meio à confusão de meu mundo, em meio à tarde frenética de meu dia, o rosto de Silene e de outros mortos, sim, tudo à flor da pele. Esse súbito fascínio invadiu-me com a velocidade de um raio, e chegou a despertar-me um lapso de esperança. No quê? Um minuto atrás, eu pouco me importava se o mundo explodisse no dia seguinte, e agora… Agora o quê? Nem entendo ao certo o que me volta ou o que me resta. Não passo de uma máquina orgânica que se alimenta e respira, fadada à decomposição, apesar de suas complexas necessidades. Ora, onde cabem as paixões? De onde vem esse fascínio por certos momentos? E o que fica do próprio passado, as sensações que retornam… Como posso ser absorvido pela magia dos detalhes, em casos de atração assim?

Logo me sentia tolo novamente, sorria com o canto dos lábios, zombando de mim mesmo. Você é como os outros, levado por sentimentos apaixonados e idiotas, não passa de um ridículo homem comum, não consegue libertar-se. Nisso, não pude evitar um novo calafrio de febre.

A partir de então, constatei que ela, a febre, vinha voltando sorrateiramente. Antes disso, já me confundiam estranhos lampejos de não sei que verdades, como se me defrontasse com inesperadas revelações. Ou talvez tudo não passasse de novas aparências da mesma mentira. De qualquer forma, via-me diante de algum traiçoeiro entendimento e prestes a realizar alguma coisa extraordinária. Naturalmente, não sabia o que era.

Também algo acontecido há pouco, já acontecido, inevitavelmente: eu me comovi com ter visto aquela garota por um rápido instante. O fato de também ter sido notado fazia dela alguém na multidão, outro gato (ou gata?) como aquele do cartaz gigantesco na joalheria. Na verdade, eu me comovi além do que seria meu normal, e meus olhos umedeceram-se, como se eu próprio os visse brilhar, mas por quê? Por quê? O que me faltava que eu mesmo não desejasse?

O crepúsculo outra vez, como no dia anterior e apesar da quarta-feira nublada. Algo de castanho e cinzento, as pessoas nas avenidas, outros cabelos em púrpura de garotas que me apareciam no mesmo delírio, tudo incendiado, o mesmo ocaso, a mesma alquimia de cores efêmeras. Que pessoas são essas? Que cores são essas? Com a febre, novas e estranhas sensações também chegavam. Eu me sentia quase feliz por participar de tudo aquilo, eu que era avesso a participar do que fosse, embora ninguém o soubesse. Ironicamente, a febre nervosa franqueava-me aos olhos emocionados outras revelações e, em contrapartida ao pesadelo, um grau de nitidez ainda maior. Como se me fosse dado entrever, no espaço entre duas noites de acessos e convulsões, o que não se pode observar à luz dos dias comuns, os dias úteis em que se acredita necessário trabalhar e viver, talvez o pior do vazio que nos espreita, só vislumbrado em crises de exagerada lucidez. A dissolução completa dos valores possíveis e a minha ânsia desesperada de continuar vivendo forçavam ao equilíbrio, aniquilando-se por nada, fazendo de mim alguma coisa diferente de um simples cidadão, embora já me sentisse outra vez alguém em meio ao congestionamento humano. Mas nem voltar a ser isso significava alguma coisa. Não era uma resposta. Nem um consolo. Não era um motivo. Não era nada. Só uma sensação. Que mais é a vida? Tudo tão irreal no passado. E como todos me pareciam belos! Aquelas cores, o princípio do inverno e seu vento…

De repente, por uma necessidade irresistível de reagir a mim mesmo, disparei a correr pela longa avenida, desvairadamente, como alguém que estivesse atrasado ou a perder a hora de qualquer coisa. Mas não havia nada, nada a perder. Logo que tomei velocidade, voou-me do bolso uma esferográfica e um pedaço de papel dobrado do qual não me ocorria a finalidade, ignorando mesmo do que se tratava – um recado? um bilhete? uma ideia? Eu nem sabia que tinha uma caneta no bolso. E ficaram para trás, perdidos no caos que eu mesmo assumia, atravessando tudo em alta velocidade, a velocidade de minhas sensações febris, como se isso me livrasse de explodir, outra vez de morrer, um desejo incontrolável de viver, incontrolável! Que noite será esta? E depois? Quinta-feira, se não me engano. Mais um dia útil. Talvez amanhã eu derrube mais coisas e tropece em mim mesmo outra vez. Não importa. É preciso derrubar mais, é preciso derrubar tudo. Talvez eu durma ou morra de febre, talvez possa renascer para novos delírios, enquanto todos vivem menos do que esperam viver, se é que alguma coisa faz sentido neste mundo e ainda que se descubra algo de verdadeiro por trás das coisas. Que diferença faz? Então, por que nos sacrificamos assim e por que insistimos em rastejar sobre a Terra? Por que absorver conhecimentos ou fazer qualquer coisa? Por que construir pirâmides, edifícios? E por que deixamos filhos para rastejar por nós? (E corria, corria…)

Com tais sintomas de grosseira esperança, reconhecia-me ridículo correndo daquele jeito, como uma besta sem freios. Mas já não tinha tempo para zombar de mim mesmo. Recordava a garota do elevador, minha antiga namorada morta, a gata negra do cartaz, fragmentos de minha tarde alucinada, a identidade perdida, a manhã com seu castelo de nuvens e a pequena Camila com sua ousadia, sua bola arremessada infinitamente para cima, para bem alto e fora do alcance de qualquer lei que lograsse reger sua trajetória implacável. Corria, continuava correndo com inexplicável energia. Fugindo? Antes buscando encontrar o que não me era dado encontrar, o que não nos é dado encontrar, se nunca tentarmos romper o círculo. O quê? Para onde? Qualquer lugar, eu disse ao motorista, e o táxi aderiu ao movimento das ruas. O museu! Para o museu, a exposição! Podia raciocinar, recordava eventos banais, parecia um cidadão como antes, embora suando de febre e cansaço. A qualquer parte, sem saber por quê. O museu. Não, não! Vamos embora. Não há nada que eu queira ver. Meu quarto! Por ali, à esquerda. Minha cama, estou doente. Rápido! O senhor não vê que eu estou doente e preciso de minha cama? O motorista. Que estará pensando? Olha-me pelo retrovisor. Como suporta viver cada dia, qual será um sonho seu? Rasteja também, como todos. Calafrios revezavam-se em minha nuca e faziam-me ranger os dentes. O que vou dizer amanhã no escritório? Que me perdi? Essa é boa. Sem perceber, mordia minha mão fechada, o homem estranhava-me pelo espelho, tive vergonha. Já rodamos muito e não parece que estamos perto de casa. Nem parece que estamos perto de alguma coisa. Isto não me interessa absolutamente. Não, não me interessa. Meu quarto, a cama… Escrever, contar tudo. Ainda hoje. Que tenho a perder? Com febre ou sem ela, vou até o fim. Mais depressa, mais depressa! O resto que se arrebente. Isso resolveria tudo, não é? Que importa? O tique do taxímetro, minha carteira ainda está aqui. Quatro, cinco… Era a última das desgraças: eu não tinha dinheiro para pagar a corrida.

 Quarta-feira (A conspiração dos felizes)

Que momento é este? – anterior

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Imagem: Krystyna Urbanellis. Rush urbano 4.

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