Office in a Small City por Edward Hopper

Lauro e o monstro

Tenho visto tantos desgraçados, tenho ouvido as mais terríveis histórias, conhecido os piores castigos.
Rogaram-me mil pragas, amaldiçoaram-me muitas vezes com palavras e pedras, e fui ficando assim, obscuro.

Luís Ricardo Falero. Departamento das bruxas ou Visão de Fausto. 1878Tão logo Lauro se entregara ao transe, soube que teria de enfrentar o Inferno. O pressentimento de quem caía nos penhascos profundos da não consciência, porém pelo lado errado.

Aos poucos, identificou o que seriam as primeiras imagens de sítios obscuros e inabitáveis. Sob o céu espesso, de nuvens sombrias, uma paisagem de rochas irregulares abria-se ao seu redor, enquanto um vento seco e sinistro soprava uma fina poeira de ossos. Nada senão umas poucas árvores sem folhas que desenhavam seu contorno por entre os caminhos de pedra.

Lauro seguiu um desses caminhos, pois sabia de seu destino: sabia que, de uma maneira ou de outra, seria guiado por sua intuição até os seres contra os quais lhe era designado lutar, por isso seguia. Novas imagens surgiam espontaneamente. Além de uma curva escarpada, no pico árido que se erguia a sua frente, havia um abutre inofensivo, de olhar desconfiado e triste.

“Procuro a entrada do Inferno”, disse o visitante.

O pássaro eriçou algumas penas negras das asas atrofiadas, lançou-lhe um olhar de piedade antes de falar com voz rouca:

“Pobre rapaz. Que triste destino o trouxe até aqui? Que atrocidades terá cometido contra a vida para que, tão jovem, caminhe por estas trilhas acidentadas em direção ao Fogo Eterno?”

“Nada tenho feito contra a vida”, disse Lauro. “Não vim senão para cumprir uma estranha tarefa, que me foi incumbida por não sei que misteriosa mão.”

O bicharoco arregalou os olhos.

“Pelas chuvas de cinzas! Quer dizer que não foi condenado?”

Lauro assentiu.

“Ora, o que tenho diante de mim? Trata-se de um legítimo herdeiro.”

“Um o quê?”

“É mal dos herdeiros não saberem que são herdeiros. De tempos em tempos, alguém como você atravessa esta amaldiçoada região em busca do Inferno. Tenho conversado com alguns de seus iguais. Vocês, herdeiros, são separados pelo tempo, formam uma legião anônima e não se conhecem entre si.”

“Mas que maldita herança é essa?”

O abutre curvou-se como se quisesse confiar-lhe um segredo.

“A herança dos espelhos. É preciso que encontre o espelho que leva seu nome e, com ele, mostre a verdade à horrenda criatura que lhe couber encontrar. Mas cuidado! Não ultrapasse os portões do Inferno, pois de lá ninguém jamais volta. A criatura surgirá talvez em alguma curva medonha e inevitável. Quando chegar o momento, você saberá o que fazer.”

“E onde encontrarei esse espelho?”

“Ali”, apontou o abutre. “Atrás daquele monte, no rumo das árvores gêmeas, há uma caverna que guarda os espelhos. À entrada, você talvez ouça gemidos assustadores. E não verá nada além de trevas espessas. Mas entre sem receio, pois os legítimos herdeiros enxergam no escuro.”

Lauro ouviu com atenção as palavras do pássaro, antes de partir.

“Adeus, amigo. Muito me foram úteis suas informações, obrigado. Jamais me esquecerei deste nosso encontro cinzento.”

O abutre sorriu com humildade.

“Perdoe se não consigo brilhar num sorriso. Tenho visto tantos desgraçados, tenho ouvido as mais terríveis histórias, conhecido os piores castigos. Rogaram-me mil pragas, amaldiçoaram-me muitas vezes, com palavras e pedras, e eu fui ficando assim, obscuro. Espero que seja feliz em sua tarefa. Adeus.”

Ilustração da edição original

Mais adiante, Lauro encontrou a abertura da caverna. Conforme penetrava em seu interior sinistro, ia distinguindo as rochas laterais nas trevas que se dissipavam aos poucos. Um som fantasmagórico, como o de muitos lamentos, fluía das paredes acidentadas, embora parecesse distante. Ao fim de um labirinto de canais de pedra, Lauro percebeu uma luz mais forte vinda de um túnel à esquerda. O túnel dava em um amplo recinto de teto alto, uma espécie de bolha talhada rusticamente no ventre rochoso. Primeiro, um brilho intenso feriu seus olhos, forçando-o a protegê-los com as mãos. Voltou-se devagar para o ponto mais fulgurante e viu, contra a parede oposta, uma mesa de pedra sobre a qual brilhava um espelho na vertical. Aproximou-se do estranho monumento e contemplou o objeto sem ousar tocá-lo. A face cristalina era emoldurada em ouro ornamentado, e na margem inferior lia-se seu nome em maiúsculas. Notou que o espelho não refletia sua imagem e já estendia a mão para pegá-lo quando emergiu subitamente de trás da mesa o rosto de um monstrengo de sorriso sarcástico. Lauro recuou com um salto enquanto, também num salto, o estranho ser deslocou-se a uma lateral e grudou-se às rochas. Tinha o corpo semelhante ao de um macaco magro e sem pelos. Asas de morcego, olhos brancos, sem pupilas, dois grandes globos salientes.

“Com mil demônios, quem é você?”, perguntou Lauro refazendo-se do susto.

O bicho gargalhou, e sua voz aguda, sua risada estridente ecoaram entre as rochas irregulares.

“Que lhe importa isso?”, respondeu com atrevimento.

Lauro enfureceu-se, mas não se moveu. O monstrengo zombava ainda de seu susto e de sua expressão confusa de cólera.

“Que está fazendo aqui afinal?”

“Eu?”, o bicho riu. “Eu moro aqui.” E saltou à parede oposta, agarrando-se a uma estalactite.

“Você é um irritante obstáculo. Creio que devesse destruí-lo.”

“Não pode”, riu ele outra vez. “Não consegue alcançar-me. Vocês, herdeiros, pensam estar realizando algo muito importante levando um espelho a algum habitante das trevas. Mas eles são muitos, e vocês, poucos. Nunca chegarão a nada.”

“Vou levar esse espelho de qualquer maneira!”

“Claro que sim. Eu não posso impedi-lo, nem quero. Não pretendo interferir. Eu apenas vivo, entende? Vivo aqui.”

“Para que serve então, sua hiena de asas?”

“Para lembrá-lo.”

“Lembrar-me do quê, besta ridícula?”

“De sua insignificância. Essa sua missão e essa viagem, tudo o que faz é mínimo ante a dimensão do Inferno. Como eu disse, há muitos seres obscuros. Se algum de vocês consegue mostrar-lhes o espelho da luz, ainda assim surgem outros”, disse o habitante das rochas com outra gargalhada irritante. E lançou-se ao ar.

No mesmo instante, Lauro saltou sobre ele e o derrubou ao chão. O monstrengo guinchou de pavor, esperneou e debateu-se em movimentos confusos de asas e pernas. Lauro agarrou-o pelo pescoço.

“Bicho inútil! Eu deveria quebrar seu sorriso estúpido de encontro a uma pedra!”

O pobre diabo arregalou os olhos vazios numa desesperada expressão de medo.

“Misericórdia, eu lhe imploro! Juro que não iria fazer mal algum!”

“Criaturas como você conseguem nos irritar e obstruir nossos objetivos. Desanimo em pensar que haja outros de sua espécie, como se não bastasse tanta treva a ser dissipada.”

“Piedade! Não me machuque. Pegue seu espelho e vá embora. Sou inofensivo, juro.”

Lauro descerrou os dentes e suspirou.

“É inútil tentar ensinar-lhe alguma coisa. Mesmo assim, você esqueceria tudo facilmente e tornaria a gargalhar e escarnecer de algo que não compreende.”

Vendo-se livre, o monstrengo lançou-se imediatamente à parede do fundo, ainda assustado, enquanto Lauro tomava o espelho e partia.

Escolheu uma trilha à esquerda e seguiu por ela, percorrendo sempre o mesmo terreno árido e rochoso. O ar denso e nublado de poeira não deixava ver muito além, mas no horizonte à sua frente o céu avermelhava-se como se a cortina de névoa escondesse uma grande fogueira. Custou-lhe atravessar a faixa envolta em neblina vermelha. Caminhou por trilhas acidentadas até distinguir os primeiros contornos do reino maldito, seus portais. Aproximou-se mais e deu com um ser monstruoso que guardava a entrada.

“Alto!”

Pelo menos três línguas pontiagudas bailaram na boca do monstro. Os olhos fogosos tornaram-se ainda mais irritados e insuportáveis. De forma quase humana, postava-se ereto, apoiado em dois pés peludos. A face grotesca e deformada expressava ódio e horror. Era medonho em cada escama, horrível em sua figura enorme e maciça. Lauro entendeu estar diante de seu objetivo. Parte de sua missão já se cumpria ao encontrá-lo.

“Quem é você, maldito infeliz?”, grunhiu a aberração mostrando os caninos salientes.

“Sou Lauro”, disse o jovem com naturalidade.

O monstro avermelhou-se de cólera ao notar que não havia causado nenhuma impressão ao intruso. Era a primeira vez que isso acontecia.

“Como ousa querer entrar, se não foi chamado?”

Lauro parecia ignorar o risco de ser devorado inteiro, ou aos pedaços, e insistiu no diálogo.

“Pensei que pudesse entrar”, disse fingindo ingenuidade.

“Pensou?!”, o monstro babava de ódio. “Estes são os portais do Jardim das Trevas! Ninguém pode entrar aqui quando quer. Vou lhe dar a felicidade de ir embora. Fora!”

“Mas vim até aqui… “

O sangue viscoso do monstro subiu-lhe às pontas dos chifres, e sua fúria atingiu o ápice ao ouvir palavras tão simples, ditas como foram, de maneira tão ingênua.

“Olhe bem para mim”, grunhiu a besta. E fixou os olhos em brasa nos de Lauro. “Dei-lhe a chance de partir, você não quis. Agora vou devorá-lo!” Ergueu as garras, pronto a despedaçar o forasteiro.

Lauro manteve a mesma serenidade, o que pôs o monstro perplexo.

“Quem é você afinal?”, rosnou a fera. “Aviso que vou comê-lo, e você apenas coça uma orelha. Não tem medo de mim?”

“Medo? De você? Por que deveria?”

“Porque… Porque… Ora, porque sou um monstro. Posso esmagar você. Todos os que me veem ficam horrorizados e desejam nunca ter nascido.”

“Por que acha que eles têm medo de você?”

“Porque sou grande, forte e poderoso, superior a todos vocês.”

“Superior em quê?”

“Em tudo. Sou insuperável!”

Lauro levou a mão ao queixo, considerando o monstro de alto a baixo.

“Eu acho que não é nada disso.”

“O quê?!”, estrilou a besta tremendo de fúria e curvando-se sobre Lauro.

“Eu acho que eles têm medo da sua feiura. Sabia que é muito feio?”

O monstro gargalhou estrondosamente.

“Você é pequeno e tolo. Não sabe o que é o poder, a força que domina e aterroriza os seres viventes. Acha que sou apenas feio? No Inferno tudo é horrível.”

Curvou-se novamente sobre Lauro, desta vez arreganhando os dentes no que seria seu melhor sorriso.

“E todos gostam de ser horríveis!”, acrescentou. “Quanto mais feio e maldoso, melhor.”

Lauro começou a abrir a camisa ante os olhos confusos do monstro. No centro de seu peito, onde deveria estar seu coração, brilhava o espelho.

“Veja você mesmo”, disse à fera. “Este é você.”

O outro mirou-se no ponto mais brilhante, viu a própria imagem, o que era verdadeiramente refletido, e soltou um grunhido de surpresa e espanto.

“Este… sou eu?”, balbuciou escondendo os olhos com a outra pata.

“Como é de verdade.”

O monstro criou coragem, descobriu os olhos lentamente e tentou encarar seu rosto medonho. Então calou-se, entristeceu e, como se murchasse, perdeu-se a chorar.

“Calma”, disse Lauro. “O que foi?”

“Você ainda pergunta?”, soluçou o monstro. “Eu sabia que era feio. Mas nunca pensei que ser feio pudesse ser tão horrível.” Curvou-se com o rosto entre as mãos. “Eu não sabia…“, lamentou-se a besta. “Eu não sabia…“

Lauro tentou ajudá-lo, sem mesmo ter alguma ideia do que fazer a seguir.

“Calma. Você não é tão feio assim.”

“Sou sim. Sou pavoroso”, disse o outro enxugando as lágrimas negras.

“Você disse que gostava de ser horrível.”

“Mas não sabia que ser horrível era assim tão horrível.”

Chorou com mais desgosto ainda, um pranto que estivesse guardado por milênios. Lauro pousou a mão em seu ombro peludo.

“Quem sabe você vai mudando aos poucos. Com o tempo…“

“Você… Você acha?”

“Por que não? Tudo é possível. Mas terá de se esforçar, claro.”

As lágrimas negras tornaram-se verdes. O monstro levantou a cabeça e olhou para Lauro, o único que não tinha medo dele ou de sua feiura, esperando o que ele diria em seguida.

“Você é horrível porque sempre quis ser assim, sempre gostou de assustar seres menores com sua feiura. Com o passar dos séculos, foi piorando. Mas nunca tinha visto como era de verdade.”

“Será… que foi isso?”, suspirou o monstro.

“Claro. Agora chegou a vez de reverter o processo e desejar ser bonito com toda vontade. É a sua grande chance. O espelho o salvou.”

“Você acha?”

“Tenho certeza. Mas tudo vai depender de você. Olhe, até parece que você já está um pouquinho mais bonito.”

“Mentira! Você diz isso para me agradar! Sei que sou medonho.”

“Não, é verdade. Não acho você tão feio assim.”

O monstro acalmou-se, sua voz voltou ao normal.

“Eu ia devorá-lo. Agora você quer me ajudar. Por quê?”

Lauro não demorou a responder.

“Quero ser seu amigo.”

O horrendo, que nunca tivera amigos e jamais precisara de alguém que consolasse seu pranto, sentindo a mão pousada em seu ombro, verteu lágrimas azuis. Estava emocionado.

Este é o segundo conto da coletânea A canção de pedra, publicada em 1985.

1a versão, 1981. 2a versão, revisada, 1989.

Leia mais de A canção de pedra: A grande árvore da vida

Imagem: Luís Ricardo Falero. Departamento das bruxas ou Visão de Fausto. (detalhe superior). 1878.

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