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Projeto esvanecendo-se. À sombra de guerras extintas
E observa esses sentimentos quietos dela.
Andamos juntos contornando a área central da praça. Diminuindo o passo quando próximos a um dos artefatos bélicos que servem como monumentos por ali: a peça de artilharia antiaérea dos tempos da desgraçada Segunda Guerra Mundial. Uma robusta metralhadora composta por dois longos cilindros apontados para cima, 45 graus, talvez mais, partindo de uma base circular aparentemente pesada, espaço lateral mínimo, assento giratório próprio a comportar um controlador-atirador – ou um controlava, outro atirava, não sei, o Guilherme Romano é que deve entender dessas coisas. Tudo naquele sóbrio tom verde-oliva característico das Forças Armadas. Você chegou faz tempo? Não. Fiquei preocupada porque o ônibus andava meio lento, pensei em você me esperando, mas então… tudo bem. Senti um pouco de pena da Josie, e me peguei egoísta. Tinha menosprezado esquecido negligenciado o fato de ela depender de ônibus para se deslocar. E seu apartamento, impressão imediata, logo que a ouvi sobre o andar do ônibus, pareceu-me um tanto mais distante. Menina de Minas, de uma cidade distante. De um reino distante. Eu e ela poderíamos contar em dias o tempo retroativo, devolvido ao calendário, desde antes e outros ontens. Desde até o dia em que éramos simplesmente distantes um do outro para sempre, no passado. Tinha vindo com o Jardim Juliana ou Jandira, não entendi bem. Da linha amarela, eu acho. Contou, sem eu perguntar, que o circular não viera lotado como de costume, quando ela o tomava às seis da manhã, rotineiramente. Na verdade, estava mesmo convenientemente vazio. O horário, meio da semana. Mesmo assim, mesmo mais leve, deslocara-se lento, provavelmente para cumprir o tempo médio ou proporcional de seus itinerários, pouco importa. A Josie disse que viajara sentada ao lado de uma mulher feia e triste, que lhe havia contado uma história absurda sobre a própria vida. Uma injustiça medonha. Vontade de chorar de raiva e de pena dessa mulher desconhecida, pelo que lhe tinha acontecido, mas que mundo, não é mesmo?
Agora passávamos perto da metralhadora altiva, que olhava para o céu. Por um motivo qualquer, a Josie parecia atraída por aquele engenho antigo, mas não obsoleto, firme sobre uma base de alvenaria, degraus largos e altos, pedestal como os das estátuas, mais rústicos menos polidos, nem seria necessário que o fossem, para sustentar armas de guerra – e pensando nas armas atuais, aquele maquinário silencioso, quase solene, fazia-se uma relíquia memorável, testemunha da loucura institucionalizada que são as guerras. Ou talvez a Josie apenas procurasse um mínimo sinal de apoio contra o espaço aberto. Como eu andava ao seu lado, compartilhava dessa impressão e me entendia movido por algo desse gênero, como se nossos corpos procurassem abrigo e anonimato, alguma insinuação de ordem psicológica por estarmos perto de uma parede um muro um poste uma ponte coberta, uma ação instintiva de autoproteção, como se nos movêssemos de maneira a nos esconder, mesmo cientes de que em mínima proporção, dos olhos alheios. A Josie alisou com um dedo a base de um dos longos canos da arma-monumento. Silenciosa, esperando eu falar. Como ela é delicada e bonita. Uma primeira impressão de vulgaridade involuntária logo desaparece quando a gente olha bem para ela. E observa esses sentimentos quietos dela. E considera esse estado de fragilidade dela por não saber lidar com certas coisas. Entre uma claridade e outra, passa uma brisa contando que ela pode se magoar a qualquer momento. Que legal esse canhão, não é? Olhou a peça toda, da base até a extremidade dos canos paralelos estreitos precisos, mais estreitos após um segundo segmento, como duas lunetas invertidas. Não é um canhão, é uma peça de artilharia antiaérea. Uma metralhadora. Da Segunda Guerra. Usada por nossos soldados, pelos pracinhas. Ahn… Ela assumiu aquele tom de que apreciava a informação e ao mesmo tempo devolvia alguma ironia velada imediata, uns olhinhos novos de menina arteira. (Havia mesmo um canhão por ali, eu me lembrava. Não estava mais lá. De início, pensei que fosse um canhão ferroviário, depois vi que se tratava de um portátil. Deve ter ido parar em algum museu da guerra.) Pracinhas, não é engraçado? E tudo virou uma praça. Praça dos pracinhas. Ahahah… Eu quis continuar sério. Mostrei a ela a inclinação dos canos, muito acentuada. Observe, está apontando para o céu. Os canhões buscavam distâncias em terra, não eram planejados para atirar assim, para tão alto. Bom, até porque nem existiam aviões há pouco mais de um século, e já se construíam canhões há mais tempo. As pessoas, no passado, nunca erguiam a cabeça para o céu à procura de um avião, um helicóptero, já pensou nisso? Ela fingiu estar gostando da conversa. Um-hum… É mesmo. Mas agora tá apontando pra aqueles prédios ali, olha. Tá vendo? Sorriso pequeno, boca fechada, as covinhas se expõem assim mesmo, talvez justamente por isso. Seus lábios se dilatam na horizontal, como uma linha desenhada, e ela parece estar avaliando meu constrangimento, minha coleção de justificativas civilizadas, meu ser civilizado – mas sem crítica sem maldade sem sarcasmo, como se quisesse apenas me entender. Ou me salvar. Eu não podia olhar para ela sem me lembrar de seu corpo, que se dera inteiro da última vez. Talvez a última vez mesmo. Tá vendo? Olhei também. De fato, os edifícios construídos do outro lado da rua, ao redor da praça, ostentando certo padrão de qualidade, um deles com vidros escuros escondendo o interior e também ornamentando a proteção baixa das sacadas, estavam na linha de tiro. Morar em um daqueles apartamentos, abrir a janela pela manhã e dar com aquela geringonça sisuda apontando seus canos duplos para a janela grande da sala, mesmo sabendo que se encontra desativada e sem munição, não deixa de ser inquietante, eu acho. Pode ter um efeito esquizofrênico. Mesmo ao nível do solo, engendra uma impressão estranha. De um lado, o portentoso armamento mudo; de outro, a indiferente fachada cega. Ameaça de nada. Como um vulcão extinto, hoje uma montanha sóbria, fotografada por turistas despretensiosos, essa metralhadora aposentada não pode fazer mais nada contra ninguém.
Enquanto eu divagava tolamente, distraído por um instante e por causa do que ela observara, a Josie se sentou ao lado do canhão, no pedestal-suporte de alvenaria, deixando um pé no degrau mais baixo. Olhou para os lados. Olhou para mim. Quer sentar? Não. Noutro lugar, naquele banco ali? Um vento leve agitou uns fios soltos de seus cabelos sobre o rosto. Não. Ficamos sem assunto. Era eu quem deveria começar. Era eu quem havia proposto estarmos ali. Era eu quem… Mas falam que essa praça é a praça do canhão, não é? Falam: ninguém sabe direito. Chamam qualquer coisa de qualquer coisa. Ai, mas que humor, não precisa ficar assim, eu não sei direito essas coisas. Desculpe, eu não… Desculpe mesmo. Eu não estou muito bem. Pouca gente na praça. Carros passando rápido nas ruas que a delimitam. Não sei por que tanta pressa a essa hora. Devem gostar de parecer sempre ocupados, devem se sentir importantes com coisas assim. Devem pensar que não tem graça não ter pressa. Eu olhava esse fluxo inútil, apertando os olhos contra o sol que não se mostrava, contra a menos vaidosa das claridades. Olhei para baixo, olhei seus pés, mocassins sem meias, uma estreita faixa de pele, seu tornozelo, e vi sua pele toda como não queria ver, num instante a borboletinha tatuada em sua virilha e a parte de trás de suas pernas, não sei por quê – a parte de trás de suas pernas, digo. Memória de algo, visão rápida de sua nudez completa. Uma nudez forte imperiosa ativa. Que começava quando alguma bermuda clara descia junto com alguma calcinha escura… Desfaça essa imagem. Controle isso. Instintos repetitivos, sua imaginação inquieta… Precisamos ser decididos, ou a felicidade e a beleza nos arrastam para longe.
34. Quase uma trégua – sequência
32. Mas foi também em um desses e-mails… – anterior
Imagem: Raphaële Colombi. Folhas 5 (detalhe superior).
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