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Projeto esvanecendo-se. Quase todo um reino adormecido
Apartamento da Josie, refúgio provisório. É o que pensa. Absurdo estar ali. Ela não sabe do que aconteceu com ele há poucos minutos, antes de ouvir sua voz pelo porteiro eletrônico, final de tarde, antes que ele aparecesse, sem aviso, à sua porta. Nem ficou sabendo que ele estava sem carro. Surpresa, mas bem. Sorrindo. Ela o esperava espreitando as escadas. Ele imaginou que aquela camiseta dela era bem fácil de tirar. Josie, oi. Determinado, menos dócil. Carregado de emoções graves intermitentes. Triste e forte. Mal escutava o pouco que ela dizia, palavras interrogativas fracas. Possuí-la a partir do olhar, por inteiro, inteira. As bermudas que ela usava costumavam ser justas em certo ponto, depois não: soltavam-se como por encanto, caíam fáceis. Aí está ela outra vez, calcinha encobrindo a pequena borboleta desenhada na virilha. Desde a primeira vez, a partir daquele primeiro momento ansioso e transpirando até mesmo constrangimento e vergonha, ela em seu colo, seios à mostra, blusinha caída na cintura, sobre a bermuda azul-clara da vez, já se fez uma memória nítida algo tão próximo no passado: a primeira vez que ele a sentou sobre as pernas, com medo.
… na concepção de Franz Brentano, os fenômenos físicos não têm intencionalidade: apenas os fenômenos psíquicos apresentam esse potencial, porque tentam encontrar uma lógica e um propósito, ainda que intuitivo. Por isso, concluí que era eu quem estava sempre forçando tudo…
O corpo agora relaxado reconfortado, na penumbra da tarde mansa, nu sob meios lençóis, silêncio agradável de crianças distantes, vozes inocentes alegres, aqui os olhos fechados, respiração suave, quase um felino adormecido, quase todo um reino adormecido, mas há uma faixa ainda uma frequência uma ansiedade que se extingue desacelerada pela ação do tempo que não existe mais, então lentamente, lentamente, eu acho, o poema que iria declamar no evento da escola e que se esqueceu de levar, para decepção e ressentimento da professora que esse menino representa, lentamente talvez, esse menino, esse poema tímido seria a única coisa de que poderia se orgulhar e com a qual poderia conseguir, entre os muitos de seu grupo, algum afeto em troca, mas é que ele era esquecido e entendia errado, sim, muitas coisas ele entendeu errado, e isso mil vezes o fez sofrer e humilhar-se, lentamente, eu dizia, a trilha de terra esburacada mal cuidada percorrida de bicicleta quase diariamente porque, não importa o que dizem, é uma trilha querida, atraente por si mesma, em toda a sua irregularidade, escolhida por ele com base em seus próprios critérios de beleza e solidão, lentamente também, páginas lentamente folheadas, era isso também, os gibis que não podia comprar porque não tinha dinheiro, o pai endividado, ninguém diz o que todos sabem, e o que conta é que não lhe sobram moedas para essas aventuras literárias inúteis, lentamente eu posso, não, eu não posso, não era bom nos esportes, em nenhum deles, não tinha como ser bom nos esportes, e ficava por último ficava para trás ficava na lanterna, não era querido, é claro, tolerado quando muito, auxiliado por algum colega generoso, mínimo traço de piedade, e quando a desastrosa jogada ganhava corpo, sempre ouvia de alguém: desgraçado, por que você não morre?, lentamente se quebrou, que era vidro e se quebrou, chamado de caolho por causa de seus óculos de aros escuros, miopia progressiva, suficiente para servir de alvo, quando o cercam e lhe quebram os óculos e o obrigam a voltá-los ao rosto, aros retendo uns últimos cristais destroçados, aproveitam para renovar um escárnio sem reservas, dizendo-lhe que não enxerga porque não quer, toma, vai assim pra casa, pode ser psicológico, gargalhadas agressivas, ele retendo, entre um dia e outro, retendo lentamente, lentamente o que lhe custa dizer, não sabem que estão diante de um herói, um herói silencioso que vale sim a virtude de um herói manifesto, só por não ter procurado a morte em meio a essa agitação sem sentido que parece ter sido sua longa enorme vida, e com seus olhos míopes calculava mal a distância que o separava do mundo, lentamente a música, parece que lentamente, copos de cuba-libre, a garota de quinze anos como ele, a graça que lhe inspira uma grande paixão, quase toda a festa conversando sem rumo para que outro a levasse a dançar e a beijasse tão facilmente tão rapidamente tão intensamente, lentamente vamos embora daqui, vamos embora desse lugar, para sempre, lentamente o que seria então, o aniversário de dezoito anos, o pai não percebe que era ali um rapaz, tão ingênuo como aos quinze, é verdade, mas agora já lhe cresce a barba, uns poucos amigos solidários comparecem, para que o mínimo parecido com uma festa aconteça, talvez não viesse ninguém, foi por pouco essa, mas tiveram música bebida piadas, e tudo acabou cedo, não havia motivo para mais, despedindo-se do último convidado lá fora, alguém pede ajuda aos vizinhos, uma idosa passando mal, na verdade está morrendo, precisam levá-la até o carro, o amigo participa, e eles carregam essa senhora agonizante, que geme e ronca, transportam o corpo pesado mole malcheiroso, e enfim tudo termina, você se despede desse bom amigo, agradece constrangido e sincero, agradece o quanto pode, por um instante pensa em lhe pedir perdão, perdão por tudo, perdão por ser assim, por sua festinha medíocre, pelo incômodo da morte, agora que tem dezoito anos completos não deve contar aos outros como chorou no escuro ao fim da noite, lentamente a trama se desenvolve e o cerca, a porta de vidro da universidade, um último ato de coragem antes que tudo desmorone em silêncio outra vez, que é vidro e se quebra, pensa que vão quebrá-lo também, não sabem que estão diante de um herói, você tem direitos, a Adelaide, mas não, mas eu, eu não vou fazer nada disso, chegou o tempo de não se render, quando a carcaça do peixe bateu à praia era só uma curiosidade para os turistas, enquanto todos os heróis invisíveis do mundo somam um caldo espesso no ar, resistindo ao sufocamento, hoje nu sob meios lençóis, na penumbra da tarde mansa, o corpo relaxado reconfortado, sem abrir os olhos, melhor assim. Imerso em si mesmo. Algo entre a redenção e o alívio sobre as coisas que não existem mais. E porque o tempo dispersará tudo de qualquer maneira. Melhor assim. E tudo deixará de existir um dia. Olhos fechados. Melhor assim. Sente a presença dela, próxima: movimentos cuidadosos a não incomodá-lo, a não despertá-lo, pensa que está dormindo, inerte. Ele a chama a mais perto, sem abrir os olhos, um toque frágil da mão. Fica assim comigo… – a Josie se aproxima, toca-lhe a testa com os lábios, deixa um beijo suave sobre uma pálpebra, breve de um instante sobre sua boca… – enquanto eu descanso um pouco.
… Marcel Proust inspirou-se em Henri Bergson ao tratar o tempo como matéria de seu interesse. Para os físicos, o tempo não é algo que passa. Só pessoalmente podemos sentir avaliar perceber isso. O tempo é, para cada um de nós, um fantasma diferente…
Manhã fria, saí para caminhar. Isso foi em junho. Começo de junho. A rigor, tratava-se de uma frente fria, era outono ainda. Cumpria-se a previsão, amplamente noticiada, esse tipo de coisa sempre acertam. Perto de umas cinco quadras de casa, após uma curva própria dessa rua, duas mulheres correndo logo à frente. Uma delas desacelerava, e as duas passavam a caminhar, em ritmo baixo. Uma delas, a que parou primeiro, em moletom cinzento claro tênis brancos boné azul cobalto, por onde descia, na parte traseira, seus cabelos em rabo de cavalo, deteve-se de vez, curvando-se para a frente, mãos apoiadas nos joelhos. Disse algo à colega. Despediu-se, tomou o caminho de volta. Bom dia breve, cabeça baixa, ao passar por mim. Eu as conhecia um pouco, de vista, elas também sabiam que eu era um habitante local. Prossegui caminhando e notei que a garota remanescente parecia hesitante, uns passos lentos, mirando os pés, conferindo cadarços. Voltou-se discretamente, como a acompanhar com os olhos a colega que se ia. Eu me aproximava, afinal era meu caminho. Ela me olhou, sorriu um pouco. Tênis verdes moletom preto nas pernas, vermelho com capuz arriado na metade superior do corpo. Mãos nos bolsos, quase como se me esperasse. Fez oscilar ligeiramente o corpo, trocando a perna de apoio. Estranho. Eu a conhecia, sim. Bom dia. Bom dia. Fui seguindo, educado, imaginando que a conversa acabaria aí. Andando nessa manhã fria? Pois é, saí agora, vamos ver até onde vou. Vai por aqui? É… é, vou. Andando ao meu lado. Mais ou menos sincronizamos os passos. Eu não contava com essa, queria estar sozinho. Nessa manhã, particularmente, desde muito cedo, eu me afetava por uma espécie de tristeza física, que não saberia explicar muito bem. Bastava olhar o céu frio, ainda no portão de casa, e constatava um peso invisível de algo diluído em meu corpo, mas não em meu cérebro, como se eu precisasse muito me sentar ali mesmo, no meio da rua. Não era um cansaço, apenas. Eu não podia estar cansado, que minha cama confortável até há pouco atravessava a noite comigo. A vizinha parecia animada, devia ser assim sempre, é o normal de muita gente que conheço, ser o tempo todo assim, não entendo como. Agora, eu teria de disfarçar um pouco, depois inventar um jeito de tomar rumo por outro caminho, algum pretexto, vamos ver. Você mora naquela casa com uma árvore alta, não é? Isso. Uma maneira delicada de inclinar de leve a cabeça, como se assim pudesse enxergar ou ouvir melhor. Movimento mínimo e cativante. Lembrando um pássaro. Eu moro depois daqueles coqueirinhos, na esquina da avenida. Ah, sei. Um sobrado com frente de madeira. Ah… Sei. Você é casado com aquela moça advogada, não é? Ela não é advogada, estudou outra coisa. Eu não queria explicar muito, perguntar nada, pensei falar o menos possível e tentar me soltar dela assim que pudesse, sem bancar o grosseiro. Essas mulheres têm um pouco mais de tempo sobre a Terra do que eu. Devem estar próximas dos quarenta, quase isso, pouco mais talvez – enfim, não sei. Essa, me acompanhando: especialmente simpática em sua discrição sua capacidade de confrontamento seu estilo. Olhos estreitos e bonitos, prontos a nos perscrutar de sua perspectiva. Nariz minimamente arrebitado bochechas coradas gordinhas, arredondando seu rosto, boca horizontal de lábios finos. Frio hoje, não é? Manchinha rosada perto da têmpora direita. É, mas não era pra ser, nessa época não costuma ser, ainda não. Você faz esse caminho até onde? Não, eu não planejo muito, às vezes sigo por aqui, outras não. A essa altura, já parecia difícil livrar-me dela. Melhor não forçar muito nem ser descortês. Tudo bem. Andando lado a lado, vamos em frente. Tudo bem. Não seja um ermitão. Também não precisa conversar muito, basta parecer polido civilizado. Não perguntei nada, mesmo assim ela discorreu sobre o que corria. Eu subo a última rua perto do posto policial, aí desço a Vicente Oranges. Ergueu um braço, gesto apontando mostrando ilustrando sua fala agradável. Enquanto explicava, servindo-se desses movimentos acessórios, mantinha a cabeça imóvel. Suas narinas pareciam sempre contraídas, talvez o frio, e ela movia apenas a ponta dos lábios. Depois, percorro a Figueroa, volto pela Wlamir Pupo. Ah, sei. E faço um vai e volta nessa parte de baixo, subindo e descendo as quadras em sequência. Sei.
… pássaros inquietos vivendo sua única vez. Um sonho sempre. Nada que pedir perdão…
Eram visíveis sua boa forma seu ritmo preciso sua disciplina respiratória. Umas quadras e uns minutos à frente, e ela me disse que gostava de parar na conveniência da Mascarenhas ou da Castelo Branco, café cappuccino pão de queijo. Com esse friozinho então… Sei. Vamos correr?
Projeto esvanecendo-se
35. O sumiço de Coco Chanel – anterior
37. Um carinho enorme por esta lembrança – próximo
Imagem: Ludwig Sander. Verdes. (detalhe superior). 1970.
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