Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Maga

Os boatos sobre um possível seu amante partiam, a meu ver, da necessidade daqueles que tentam enquadrar todos nós sob uma mesma perspectiva, estranhando que alguém ficasse sozinho por muito tempo.

A Maga era Magali Lyngstad da Silveira. Descendente de família nórdica por parte de mãe, herdara dela uns olhos cinzentos, por vezes azuis esmaecidos esgazeados, outras vezes variando a imitar levemente algum lilás difuso, fazendo-se, como resultado da luz incidente, dois círculos vivos de ametista – olhos de uma bruxa enrustida. Mas não, ela não era nada disso, é claro. Nem gostava desses misticismos avulsos. Não se importava nada com superstições e pseudomistérios, pelo que ouvíamos dela. No que eu acredito? Sei lá. Não dava a mínima, e ria. Corpulenta robusta consistente. Também um pouco acima do peso, como dizem – por minha conta, sempre achei algo tola essa expressão, acima do peso: acima de que peso? Seja como for, ela estava acima do peso, sempre. Mas pouco, entenda-se, pouco porque era principalmente robusta, como disse. Sim, e bem-proporcionada sólida roliça, por inteiro, das mãos até os pés, desafiando os simplistas que a definiam de maneira eufemística ou equivocada como gordinha. A Maga não era gorda, de maneira alguma. Eventualmente, como todos nós, claro que podia estar, em uma fase ou outra, acima do peso – de novo essa expressão patética, agora já foi, deixe estar.

A impressão que a Maga me passava, eu dizia, era a de que estava longe de se preocupar com uma coisa dessas. Sua feminilidade me parecia intensa. Ela realmente me atraía, assim como era – e justamente por ser assim, como era. Para mim, uma mulher forte. Em todos os sentidos. Pele clara que se podia adivinhar sardenta na adolescência. E o formato das pálpebras escandinavas que se estreitavam nas laterais superiores, algo oblíquas, como se apenas uma parte das órbitas pudesse ser inteiramente visível, parecia emprestar-lhe uns olhos austeros enigmáticos traiçoeiros, que ao mesmo tempo eram os primeiros sinais de vida quando se mostravam entre sorrisos de dentes pequenos e sutilmente amarelados. Havia também algo curioso: o conjunto de seus olhos e sobrancelhas fazia parecer que estivesse sempre zangada – tais eram as impressões de quem a encontrasse pela primeira vez, de quem a conhecesse apenas fisicamente, antes de trocar uma palavra com ela. E quem visse sua foto em um documento, rosto sério ou neutro, não poderia desenvolver delinear desenhar para si mesmo a mulher fascinante magnética rara que ela era. Sua boca, de sorriso fácil (mas que também se desfazia logo), reorganizava e equilibrava essas primeiras impressões equivocadas, porque, mesmo sem sorrir, sua boca, eu dizia, parecia disposta a florescer, aguardando um instante, apenas, para dilatar-se. O câncer que a Maga escondeu de todos nós e que abreviava progressivamente seu tempo de humana atingiu como uma descarga de alta voltagem a rotina acostumada, de tensão mais ou menos prevista, que compartilhávamos cegamente os vivos. Porque ninguém sabia. Porque ninguém esperava. Um período mais longo sem sinal das festas, um hiato estendido entre nossos encontros noturnos, e alguns de nós comentando que ela não estava bem, ouvi dizer que ela não está bem, parece que ela está com algum problema de saúde, não sei, alguém conseguiu falar com ela? Sua morte teve o impacto do fim de uma era para a Marjorie e para algumas outras suas amigas tempos de escola, que ainda se reencontravam entre si e com a Maga nesses eventos avulsos, essas festas sem nome em sua grande casa aberta. O fim de uma era, de certa forma, para todos nós.

Quando a gente chegava a uma dessas festas que ela aprontava em noites de sexta ou de sábado, nosso carro ficava a pouco mais de um quarteirão de seu endereço, numa das ruas estreitas e bem cuidadas de seu condomínio, e conforme eu e a Marjorie nos aproximávamos daquele jardim de verdes anoitecidos e daquela fachada bonita entre arbustos de espécies diferentes, na clara penumbra preservada por lampiões ornamentais, cada um deles um olho sonolento sustentado por uma haste de ferro escura, a primeira imagem que nos cativava a atenção enquanto caminhávamos em direção à conhecida casa da Maga era a grande janela da sala da frente, que se erguia a apenas meio metro do gramado e se estendia quase até a saliência da primeira laje, uma grande tela envidraçada mostrando silhuetas e contornos contra a luminosidade âmbar por trás das cortinas translúcidas. As formas movimentavam-se sobrepunham-se curvavam-se e ocasionalmente riam. Mais de perto, percebiam-se as vozes, o tilintar de talheres ou copos ou pedras de gelo, eventualmente sons de sapatos de salto, alguma movimentação de cadeiras, até mesmo beijos rituais de quem acabava de chegar e cumprimentava seus conhecidos. Para mim, isso tudo era encantador. Para a Marjorie… Para a Marjorie também era, sim, também era, porque ela via essas coisas como representações de grande estilo, enquanto eu sorria quieto como diante de um antigo projetor de imagens ou de um teatrinho de sombras para crianças.

Assim que adentrávamos a sala principal, a Marjorie identificava um ou outro conhecido, sorria de longe e partia em seu rumo, rebocando-me pela mão. Seguíamos cumprimentando estes e aquelas, apertos de mão, beijinhos soprados à altura de orelhas, passando por uns para chegar a outros, deslocando-nos em certo ritmo, como a imitar a sincronicidade calculada dos semáforos, criando uma espécie de onda verde, enquanto fazíamos a volta na grande sala, repetindo rituais de identificação e simpatia. Eu sempre gostei de observar rostos, olhos vibrando à frente do semblante, movimentos de boca, tentando vislumbrar personalidades a partir desses rápidos relances, curioso por adivinhar coisas que talvez as pessoas não percebessem sobre si mesmas, o que invariavelmente se mostrava, no meu caso, uma tarefa impossível. Mas quando deparava com a Gisele Frota, maquiagem forte nas pálpebras, boca pequena cor de amora, rostinho de cinema mudo, eu gostaria que a onda verde estacasse ali mesmo, que o sinal travasse no vermelho, queria beijá-la com força em algum cruzamento. (Talvez outros é que teriam dificuldade em adivinhar algo sobre meu rosto, pelo jeito.) Num sofá ali perto, a Bianca Cristiane e a Noêmia Sales conversando de cabeça baixa: elas estavam comparando os sapatos.

A Maga, a mesma idade da Marjorie. Colegas-amigas de escola. Separada do segundo marido há uns cinco anos, sozinha agora. Trinta e sete, e contando dois divórcios. Mas não aparentava nenhuma mudança por isso. Parecia tão feliz e tão fútil como antes, solteira ou casada ou divorciada. Os boatos sobre um possível seu amante partiam, a meu ver, da necessidade daqueles que tentam enquadrar todos nós sob uma mesma perspectiva, estranhando que alguém ficasse sozinho por muito tempo. Alguns rumores fortes, recorrentes. Pequenos episódios dados como certos, outros esvanecendo-se naturalmente, de tão forçados. E muitas dentre as pessoas que conhecíamos perguntavam-se quem seria ele, por que não aparecia por lá, por que ela não o apresentava a todos, e assim em diante, aqui e ali, uma ciranda irresistível, mas inofensiva, de perguntas-fofocas. Ninguém sabia nada.

Vanessa indica, uma borboleta da família Nymphalidae, habita as regiões de maior altitude na Índia. E Iùlia Serguéievna, de Tchekhov, dizia que nunca fazia nada, que, para ela, era feriado todo dia, de manhã à noite. Por que isso? Imagens soltas no infinito, que ela me despertava sem saber…

A Maga gostava de mim. Especialmente. Ah, eu quero você pra mim. A Marjorie se aproximava, duas taças de vinho branco. A Maga enlaçando meu braço. Marje, eu quero seu marido pra mim, vou roubar ele pra mim. Abraçada, cabeça deitada em meu ombro. A Marjorie entregando-me uma das taças clarinhas, vinho gelado. Não senhora, esse gato já tem dona. Sim, a Magali Lyngstad da Silveira gostava de mim. Na verdade, ela me admirava. Em parte, porque eu era um estranho: filho de uma classe trabalhadora, não de uma classe empreendedora. E pelo fato de eu ter partido de um meio simplório, gente pobre e honesta, de não ter me tornado rico e mesmo assim ter alcançado alguma cultura, além de um forte interesse por intelectualidade arte beleza e outras coisas inúteis, com exceção da ciência. Sob o ponto de vista das relações sociais, isso não valia muito. Mas eu entendia que ela me posicionava em um degrau mais alto que aos demais, agora sob o ponto de vista da sensibilidade e da percepção. A Maga compreendia, pelo que eu também compreendia, que foi isso que atraiu a Marjorie, como se lhe faltasse esse fator de verdadeiro gosto pelo conhecimento para que o casal idealizado por ela se mostrasse completo. Nem ela, a Marjorie, competiria comigo nesse campo, nem eu competiria com ela na busca do que se convencionou ser o sucesso. A Maga, sim, era inteligente perceptiva observadora. Eu também entendia que sua futilidade e seu comodismo eram resultado de sua inteligência, de sua clara visão de mundo, o entendimento de quem não via por que cultivar algo muito além do cotidiano, que já lhe bastava de maneira tranquila. Eu brincava quando nos encontrávamos. E a senhora, dona Magali, cada dia mais linda. Ah, mas eu preciso de mais amigos como você! Marje, ele é lindo, viu? A Marjorie sorria de boca fechada, lábios dilatados na horizontal, sentinela à paisana. A Maga me beijava o rosto, expansiva e feliz. Tinha um sorriso firme consistente sem hesitações e sem automatismos, embora simulasse um ar ranzinza quando não estava sorrindo, como eu já disse. As sobrancelhas juntavam-se apontando para baixo, logo acima do nariz: uma rapinante delicada.

A Maga já havia morado no exterior. Estudara francês, arranhava alemão. Um irmão em Petrópolis. Perdera a mãe muito cedo, uma artista amadora, autora de aquarelas que eram vistas no maior shopping center da cidade, em armações de vidro, que cortara os pulsos quando soube que o marido, filho de fazendeiros, bem-sucedido empresário dos agronegócios, tinha outra família. Não lhe era estranho que ele, como tantos outros endinheirados, mantivesse alguma agenda incluindo acompanhantes e meninas de programa, mesmo porque, quando se realizam certos eventos e feiras anuais em nossa cidade, todos sabem dos ônibus e vans fretadas que chegam com prostitutas de toda a região e até de outros estados. Mas a descoberta de uma segunda família mostrara-se devastadora, e ela escolhera desistir. E eu ficava pensando, sobre essas tais histórias das quais as pessoas envolvidas preferem afastar-se, em como após tantos cuidados com a vida, tantos esforços pela prosperidade ou mesmo pela manutenção de um status quo adquirido da família de origem, em como tudo isso se desfaz por um momento de emoção sem controle, talvez mesmo incluindo-se a razão a atitude a ideia de matar-se, tudo isso mal refletido em uma simples lâmina brilhando sangue.

Ela nunca me dissera com palavras, mas eu pressentia que a Maga dedicava, entre suas receitas íntimas, algum carinho especial por mim, como se compreendesse valorizasse admirasse a seu modo esta espécie de sobrevivente, o menino sem recursos, estudante a duras penas a duros pelos e a duras contenções de hormônios, ele, sua irmã adotada e seu irmão mais novo alegres divertidos fazendo palhaçadas quando a família recebia embrulhos de roupas usadas fornecidas pela parenta-amiga generosa que não precisava mais delas, brincando de vesti-las umas sobre as outras até não suportarem mais o calor e o peso de alguns trajes adultos que lhes caíam até os joelhos ou até os pés, e ele relutava com tais memórias, tentando dissociá-las dos valores conotativos que lhes foram ensinados mais tarde, não querendo suportar esse peso e esse calor que sufocavam sua dignidade hoje, como outras lembranças que soavam em parte humilhantes e que poderiam fazê-lo cair de joelhos diante da condição tranquila dos mais abastecidos ou mesmo cair de joelhos, curvado dentro de si mesmo, envergonhado só por recordá-las, e algumas imagens mescladas de ternura seguiam de mãos dadas com o avô pela Francisco Junqueira em busca de botinas Tyresoles, solados reforçados com borracha de pneumáticos, e não que ele e o avô precisassem delas para alguma atividade específica, era só porque duravam mais do que os sapatos comuns, um ano inteiro de escola, no bairro distante de ruas de terra, percorrido com o mesmo par de botinas que não se dariam por vencidas ao final do ano nem ao final do ano seguinte, não, nada disso, que duravam toda uma fase da vida, uma coleção de invernos, um ciclo de novidades misteriosas e de choros sentidos, e o adolescente já se dava conta disso, há algum tempo essa consciência de circunstâncias o atormenta e o desafia, esse garoto pálido quieto frágil que só aos treze anos viu o pai comprar o primeiro carro, um Volkswagen azul-claro usado e já muito velho mesmo à época, esse mesmo pai desorientado, que um dia silenciaria para sempre entre dívidas incontroláveis, sempre lembrando que havia situações bem piores do que a nossa em todo o mundo, era bom que nunca nos esquecêssemos disso, tudo ecoando soando somando uma filosofia consoladora, quantos desgraçamentos se repetem sobre a Terra, e nós agora temos um carro. Sim, senhor. Eu compreendo. Eu sei. Mas antes de cair aos pés dos mais sortudos ou dobrar-me dentro de mim mesmo, esse menino-adolescente-homem-eu escolhera seguir com sua força invisível, sem ressentimentos sem autopiedade sem anjos da guarda, eu agora sem trabalho, driblando um terapeuta experiente com as ruínas de meus sonhos e envolvido com uma jovem vulnerável e carente, simples e sensualmente ativa, entendia-me, à parte de todos os conceitos alheios, o cara mais forte e privilegiado do mundo. E sabia, sem que ela me dissesse, que a Maga gostava de mim apenas por eu ser como era. E que isso não teria mudado até o dia de sua morte, entre a surpresa geral que ela causara com seu silêncio e entre os rumores repetitivos sobre seu namorado secreto.

Projeto esvanecendo-se

15. Casinha de gengibre e os ventos seguintes – sequência

13. Cintilações que não podem ser – anterior

Guia de leitura

Imagem: Paul Cézanne. Jas de Bouffan, a piscina. 1876.

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