Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. As festas na Maga. Pequenos atrevimentos

Eu sabia que algumas garotas ali não aprovavam a ideia, mas não protestaram.
Afinal era uma festa. Nem sempre fazemos festas. Afinal éramos todos humanos. Afinal a vida exige momentos de descontração e de subversão entre os dias e as noites.

Uma semana ociosa difícil opressiva. Eu me comunicava com a Josie por e-mail e por mensagens na rede social à qual nos havíamos adicionado. Me add? Claro que sim. Addicted. Um arrepio levemente ameaçador. Talvez estivéssemos mesmo nos viciando nesse nosso segredo ansioso. Mas isso era só o começo. A Josie sósia Stone: meu motivo de atenção real por esses dias. Por todos esses dias, não sei quantos. Escrevíamos um ao outro manhã e tarde. Eu tentava dizer o mínimo a ela. Cauteloso e sensato, como se isso em mim vencesse sempre. Como se fosse uma daquelas coisas que-eu-mais-tenho. Não posso me abrir com essa menina, ela mal sabe quem sou, o que penso. Também não queria que partisse de mim qualquer incentivo a um novo encontro, cuidava-me com as palavras. Será que ela quer a mesma coisa que eu? Não sei ao certo o que quero. E ela também não, pelo que entendo. Mas nosso caso de atenção recíproca cresceu continuou. Com a Josie, eu constatava minha autoconfiança em franca atividade. Perdia a noção do perigo. Se é para pecar, vá de uma vez. Pecca fortiter, propunha Lutero. Ao máximo! Até que se esgote o motivo de sua luxúria – e isso, ironicamente, irá purificá-lo de alguma forma. Mas não eu, que não vejo deuses nem diabos. Não existem nem podem existir pecados para mim. Porém, receava qualquer possível repercussão dessa subversão, é claro. Medo de mim mesmo, por querer sempre mais. Ah, Josie: despreocupada inculta inocente. Musa de minha autoconfiança perdida.

Combinamos não usar telefones. Jamais. Em nenhuma hipótese. Mesmo. Se ninguém souber nunca, podemos nos ver sempre – tal era nossa máxima nada moralizante, surgida da situação em si mesma e encerrando, sem dúvida, uma verdade. Senhas, que magnífica invenção. Todos podem se esconder. Tudo surgido de tramas de espionagem, necessidade de sigilo, Guerra Fria. Rede social, correio eletrônico. Só. Combinado? Sim. Só. Sem riscos. Não podíamos facilitar em nada, muito menos declinar à facilidade de certas armadilhas que nós mesmos ajudássemos a criar – esse era o erro de muitos amantes, que talvez procurassem mesmo, de maneira subconsciente, ser flagrados, até mesmo deflagrar uma comédia de conflitos que levasse à solução de sua clandestinidade, e eu começava a detestar essa palavra, amante. Celulares, só em caso de emergência. Certo. Melhor, não é? É, mas mesmo assim deixa o seu número. Um-hum… cinco… zero dois… Pronto. O seu?

Mas não havia, nunca houve emergências entre nós. Não além daquelas que podíamos planejar e controlar até o último minuto de uma precária contagem regressiva, que eram não emergências mas urgências, dessas que irrompiam após reprimirem-se por uma ou duas semanas até que a Josie abrisse a porta de seu apartamento e ele a pressionasse contra a primeira parede da saleta um ato de assalto esperado compactuado por ela como um golpe ensaiado de artes marciais prendendo seus pulsos para o alto depois soltando-os entre beijos fortes entre falas sufocadas de bocas conhecendo-se ao máximo uma perna no cio subindo ao lado do corpo dele abrindo-se ao que pretendia às pressas gestos rápidos descendo as calças dele os shorts e a calcinha dela a enfiada forte ali mesmo empurrando essa garota para cima quase sustentando-a em suas virilhas tirando parte de seu peso em suas mãos cheias de sua bundinha uma das pernas dela abraçando-lhe a cintura outra estendida reta até o chão o pezinho rígido controlando o equilíbrio e os movimentos de subir e descer encaixada no eixo vivo em toda a sua tensão irrefreável em posição de ataque sem tempo nem espaço para hesitações preenchendo-a e dilatando-a enquanto a invasão se realiza com voracidade em seu ritmo de busca captura conquista o auge e o limite dessa urgência chega aos dois prazeciprocamente.

Depois, as amenidades. São amigos íntimos. Contam um ao outro sobre coisas que mais gostam de recordar, joguinhos adolescentes, pergunta e resposta. Ele conta a ela sobre o poema do salteador de estradas e de como Bess, a linda filha do hospedeiro, tornava a se encontrar com seu amado, mesmo depois de mortos, em noites de lua; sobre os barquinhos de papel que naufragavam porque o menino não acreditava em seus sonhos; sobre a montanha que não queria mais viver… Ah, mas eu adoro essas coisas que você fala, sabia? Adoro quando você fala, você é lindo, viu? Ele se soltava absurdamente com ela. Revivendo, por sua conta, o que ele próprio costumava criticar, intelectual acadêmico crescido, muitas dessas historinhas poemas anedotas fábulas, destacando seu lado romântico ou piegas. Porém, aos poucos, naquele lugarzinho mágico e sem propensão alguma para que se encaminhasse o transcorrer de suas ações a uma edificante moral da história, desde que era uma vez outra garota como ela e desde que havia outro cara como ele perdido na noite dos tempos, sua conduta crítica parecia desaparecer por completo.

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Assunto: ontem

Enviado em: 15/02/2005 | 9:31

De: <josieln24@altmail.com>

Para: <pprof@altmail.com>

Oi lindo.. pensando em vc… lembrando as coisas, lembrando de tudo…

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Minutos pensando antes de responder. Tique-taque mudo, dígitos abaixo à direita da tela. Desejando confessar-me. Dizer a ela que poderia arrancar-lhe a roupa agora mesmo, agarrar-lhe os cabelos cor de areia e empurrá-la para a cama com toda vontade. Não. Tranquilo e sob controle, enquanto minha ereção despertava automática e lenta, involuntários sinais de atividade vital natural real, só por visualizar a Josie e sua nudez retroativamente apetitosa. Não responda em meio a essa salivação de macho carente, esse gosto peculiar que todos nós homens reconhecemos de imediato e tão bem. Ela não sabe se você a está lendo agora. E-mails servem bem a tais covardias. Jamais, em toda a história humana, tivemos tantos brinquedos para nos distrair. E-mails, bem, isso ainda não é nada. Contenha-se, não é difícil. Espere um pouco mais.

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RE: Assunto: ontem

Enviado em: 15/02/2005 | 10:05

De: <pprof@altmail.com>

Para: <josieln24@altmail.com>

Oi, Josie. Tudo bem por aí?

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Assim. Muito calmo. Livre da ereção do homem real. Mas não era o que eu fazia sempre. É preciso dizer a verdade, melhor que se diga. Não era o que eu fazia sempre.

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Assunto: ontem

Enviado em: 24/01/2005 | 8:23

De: <josieln24@altmail.com>

Para: <pprof@altmail.com>

sem palavras o que aconteceu com a gente ontem. eu ri e chorei depois.. faz tempo que não aparece ninguém especial na minha vida. Adorei tudo adorei vc morder minha boca… mmm… Bj

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Linda linda linda ah como eu queria agora…

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RE: Assunto: ontem

Enviado em: 24/01/2005 | 8:26

De: <pprof@altmail.com>

Para: <josieln24@altmail.com>

Vc é encantadora. Muito encantadora. De verdade. Adorei tudo também. Desculpe ter mordido sua boca.

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Logo uma resposta dela, com toda certeza. Vamos ver. Vamos ver. Vamos ver…

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Assunto: ontem

Enviado em: 24/01/2005 | 8:35

De: <josieln24@altmail.com>

Para: <pprof@altmail.com>

Amo amei quero mais mordidas…

Diz que vem me ver logo… logo logo logo ♥ ♥ ♥

Vou por uma minissaia e dançar pra vc… bjs

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Todas essas coisas me enchiam de medo. Inclusive aqueles coraçõezinhos arrematando frases, que eu imaginava vermelhos, é claro, cartas de copas. Mas o que é que eu estava fazendo? Tantos lidam tão bem com isso. Eu é que não lido bem com nada. Ia assim me conduzindo e me repetindo, dramático exagerado definitivo, voltando àqueles momentos de forçada autopiedade que-eu-mais-tinha. Do que devo me livrar? da Josie? da Marjorie? do sexo? da perspectiva do amor? No momento em que acontece, o prazer sexual parece ser tudo que existe, tudo pelo que magnificamente procuramos o tempo todo sem saber, mas então, mesmo um pouco antes e um pouco depois dessas delícias, por que não nos sentimos sempre bem?

A semana continuou. A sexta-feira chegou. E nessa sexta a Maga nos convidava novamente, outra festa sem pretextos entre um mês e outro, contando com mais ou menos as mesmas pessoas – que já eram muitas, segundo meus critérios de tédio e sociabilidade. Encontrei o Alex o Victor e o Guilherme, que nessa noite maldisse especialmente e com mais intensidade a ex-esposa, além de conseguir mais uma vez entrar no assunto guerra, que parecia ser o seu favorito. Eu não estava disposto a guerra nenhuma. Não queria ouvir seus argumentos sempre-os-mesmos. Tédio e sociabilidade. Exercícios de seguir a Marjorie, de estar com a Maga. Vamos lá, aguente firme ou caia fora de uma vez. Mas, por favor, mostrem a esse sujeito imagens de verdade das crianças mortas das famílias fugindo gemendo chorando, mostrem a ele a desgraça o medo o desamparo o Guernica, esse sonho de horror. Ah, Guilherme, tolo ressentido e inconsequente: é uma vergonha que você possa viver com toda essa segurança e imunidade.

Fiquei sabendo que você perdeu suas aulas, é isso? É isso. Tá fazendo o quê agora? Ahn… Refazendo meu currículo… Reorganizando minhas coisas… e… vou começar a estudar para uns concursos públicos. O Alex entendeu tudo, mas encerrou a conversa com palavras simpáticas. Ah, que ótimo. É por aí mesmo. Concurso público ainda é o que há de melhor neste país. Era nada. Não para eles. Para proletários como eu, sim. Mas ele não especificou. Eu é que andava crítico cético impaciente – ele só quis agradar, eu sei. O Victor, também sem ironias, mostrou-se solidário, tentando ser motivador à sua maneira, com seu fraco arsenal de discursos, que eu até prefiro aos tipos prolixos e hipócritas, ele em sua linguagem própria acaipirada, revestida de autoconfiança e indiferente ao que diz (e como diz) e pensa a maioria letrada. É que nem eu falo: quanto mais a gente procura quanto mais a gente acha. Nesse dia, ele estava bronzeado de sol, coisa de andar por suas terras.

Nós quatro ocupávamos uma das mesinhas redondas nos quiosques à margem da piscina. O Guilherme começou a conversa, observando-ouvindo uns gritinhos de alegria vindos das representantes femininas. Disse que essa mulherada é que manda no mundo. Mostrei-me simpático. Como é? Elas mandam no mundo? Lógico. Não percebe, velho? Não é nada pra nós, é tudo pra elas. Você quer ter um carro bom pra quê? Pra levar uma delas com você. Você nem percebe que tudo acaba na mão delas, não é? Essa é a desgraça do mundo. Eu ri um pouco, mas com o cuidado de fingir estar concordando, que ele parecia feliz com sua argumentação. É aquela história: sempre de dieta, comendo salada verde e bebendo o sangue dos homens. É ou não é? A certa altura, aproximou-se animada a Rose Levy, pediu que sorríssemos, foto. Ela usava uma roupa que me pareceu extravagante, blusa muito larga com uns brilhos pontuando costuras, mangas bufantes enormes, calças também largas, sapatos incrivelmente altos, que condicionavam seu deslocamento, como se ela tivesse de pular de um pé ao outro em vez de andar. No geral, lembrava uma bandeira ao vento, isso se o vento não aproveitasse mesmo para carregá-la convenientemente dali. O Alex, como adivinhando e desdobrando meu pensamento maldoso, talvez impactado pelas cores distribuídas por aquelas esvoaçantes peças de roupa, amarelo azul vermelho rosa entre uma echarpe larga e a barra da calça, resmungou em voz baixa. Parece a bandeira de algum país idiota. Ficamos quietos, rindo por dentro. Muita gente, todos os dias todas as noites. Tudo despejado no fluxo das redes virtuais. Esforços coletivos para que ninguém escape das selfies, mais pra cá, chega mais, vem você também, anda, abaixa um pouco, isso, mais uma… mais uma… Gritinhos de alegria ou simulação de aplausos rápidos. Um dia ou algumas horas, e ninguém mais quer ver uma coisa dessas. Páginas virtuais rolando sem fim. Rostos que irão esvanecer-se como num sonho silencioso e opressivo. Quanto mais se esforçam para firmar-se, renovando imagens de si mesmos, mais deixam claro que mais tarde não estarão mais aqui. Mais tarde, outro dia, outro ano, tarde demais, ainda não. Nossos rostos em outros. Todos condenados. Parece incrível, sim, que isso seja verdade. Alex! Alex, olha pra cá! Você também. Isso, digam uísque… Erguendo copos, a mesma baboseira de sempre. Tict. Ai, que lindos! Valeu, gente. O Guilherme, que já nunca sorri por inteiro, propôs que fôssemos dar uma volta lá fora. Cadê meu cigarro? Essa gente muito animada me dá nos nervos, velho.

Não: o Alex o Guilherme e o Victor não são meus amigos. São figuras de conveniência, acontecidas no contexto. Aparecem nesse teatro todo por meio de amigas e conhecidas da Marjorie, as esposas e uma ex-esposa deles – tanto faz de qual deles, pouco me importa que sejam casados separados fiéis adúlteros honestos sonegadores: não fazem parte da minha vida. Esqueço que existem. Destoam do que canto em segredo em certa frequência, inaudível a esse tipo de gente, e devemos ser, uns para os outros, melhor dizendo, eu para eles, uma espécie de tela consumida por ruído branco, sem qualquer significado real. Esses homens com quem convivo civilizadamente, em escassos momentos, não fazem parte de meu meio de meus afetos de meus interesses, aliás eis aí uma palavra que eles apreciam muito, interesses, cujo sentido primário pode parecer egoísta e questionável, e mesmo assim costuma ser bem-vista em qualquer roda de conversa, com o aval do consenso – sabendo usá-la de forma adequada, você até ganha pontos, não é mesmo? Mas eu não quero ganhar pontos. E não me importo com essa escalada tola essa progressão calculada essa hereditariedade protetora, e não, eu não os tenho como amigos. Só nos vemos na Maga, e acabamos nos aproximando apresentados por esta ou aquela pessoa que apresentaria mesmo um ao outro, do mesmo jeito como apresentaria, àquele ou a este, outro e um.

Robertinho, vem cá, posso te pedir um favor? Um favor? Você, Marta, pode me pisar com salto agulha. Para, bobo. Eu quero que você vai falar com a Fernanda, dizer pra ela que eu não tô mais de mal dela, entendeu? Eu via-ouvia esse tipo de coisa, bem ali, a uns passos de onde girava meu copo ocioso, observava como essa gente, mimada pela boa sorte, chegava aos trinta anos conservando melindres da infantoadolescência, e também me intrigava que isso não dispersasse o curso das coisas: continuavam tendo dinheiro, atividade profissional definida e até o afeto dos amigos, mesmo dos que haviam crescido de verdade. Mas isso, de novo, sou eu julgando quase automaticamente e por nada. Deve ser muito bom ter dinheiro, ser criança, e não se importar com outra qualquer porcaria nenhuma. Marta, Fernanda… – com a lacuna descritiva, fica em nossa mente o padrão de imagens adquirido, alguma visualização moldada por uma estética própria, como quando lemos-ouvimos o nome feminino de uma canção, música dedicada a Esta ou a Aquela, mulheres sobre as quais se supõe, naturalmente, que não sejam idosas ou sujas ou feias. (Mais de uma vez a Marjorie me disse, em tom crítico, que eu não me esforço para conquistar as pessoas, daí, por lógica, eu não ter amigos. Só que eu não me altero ao ouvir esse tipo de coisa. Se é assim… é assim.) Além de serem homens como eu, mesma idade mesma cidade mesma língua, temos pouco em comum. Se não me conhecessem e me respeitassem, eles seriam a parcela do mundo que escarneceria de minhas ideias e de minha relativa sensibilidade. Os três têm como origem e base de sua estreita formação aquela visão empresarial do mundo. Pertencem àquele clube disperso de empreendedores que, de uma maneira ou de outra, jamais serão empregados de alguém, mas sempre os investidores os gestores os detentores do negócio. Nunca fariam (e talvez nunca tenham feito, mesmo quando mais jovens) uma entrevista de emprego. Ou confeririam um comprovante de pagamento, atentos aos descontos em folha, ou se alegrariam aliviados ao verificar o crédito, o líquido de seus vencimentos, em sua conta bancária. Isso de eles serem assim não constitui problema algum, nem para eles nem para mim nem para o resto do mundo. Apenas não nos parecemos. Quando observo como eles se divertem com um e outro palavrão, como se os estivessem ouvindo pela primeira vez na vida, entendo que somos resultados de processos culturais distintos, como se ao longo da história natural da Terra, se nos coubesse identificar diversidades longínquas nas linhagens, houvéssemos emergido de pântanos diferentes. Sim, eu sei: eu sempre exagerado. Nenhum deles jamais diria isso.

Andando devagar, passamos pelo segundo poste baixo do jardim, com uma lâmpada pálido-amarelada, e paramos perto da terceira casa a partir da Maga, outra enorme residência no padrão de seu condomínio. Os sons da festa pareciam distantes ali, por caprichos da acústica. As alamedas eram praticamente desertas. Um ou outro morador passava pela curva da esquina, chegando com seu carro silencioso e confortável, virava à esquerda rumo à pequena rotatória gramada entre as ruas estreitas, e dirigia-se ao declive centro-sul dessa pseudocidade. Nessa noite, o Victor e o Alex usavam camisetas polo; o Guilherme, camisa de manga; eu, uma camisa de mangas compridas dobradas no antebraço, antes do cotovelo, como costumo usar. Olho para eles, tão tranquilos. Será que o que me falta é arregaçar as mangas? Não, não. Eu sabia que muitos ali faziam pouco e ganhavam muito. Essas minhas alusões avulsas definitivamente não faziam sentido. O Alex começou a nos contar que estava pegando a menina da faxina, que ia duas vezes por semana a sua casa – com seus horários de autônomo, conseguia driblar a esposa facilmente. O Guilherme baixou o cigarro e disse que nunca se sujaria com uma mulherzinha desse tipo. A chance de chantagem e de escândalos e de coisas piores era muito maior. O Alex sorriu. Porque você não viu a garota. Ela é muito, mas muito gostosinha. Você não viu, velho. Então o Victor contou de um caso recente dele, já terminado. Uma jovem empresária do agronegócio. Nenhum de nós desconfiava. Ele simplesmente (simples, como é simples, simplesmente…) não comentou nada a respeito enquanto a pegação acontecia. Esses caras sabem fazer as coisas. No fim, acabam todos respeitados, alguns até homenageados, uma salva de palmas para o homem do ano. Por um instante de uísque tive vontade de contar sobre a Josie. Mas entendi que estava apenas sendo influenciado pela pauta da conversa deles, e resisti bravamente. Eu havia jurado a mim mesmo que não contaria nunca a ninguém sobre a Josie Joss Stone jamais a ninguém nunca. Nós ali, muito próximos, tanto em frequências de ondas como fisicamente, admitindo-se essas tais ondas não como fenômeno físico mas como representações de nosso nível de afinidade e corporativismo, o Alex anunciou com discrição, voz em volume médio, que havia descoberto umas meninas de programa novinhas e com esquemas bem organizados. A gente podia combinar de um dia… Tem alguma moreninha baixinha, dessas que eu gosto? Ahah… Claro que sim. O Victor dirigiu-se a mim. Então, vamos nessa? Não, não, Vic. Valeu pelo convite. Eu não vou entrar nessa não. Elas não cobram muito caro, eu já me informei. Não, mas não é isso, Alex, é que eu quero evitar essas coisas, sério, que só podem me complicar depois. Ah, essa não, hein? Complicar o quê, velho? São profissionais, não vão te sacanear, não tem perigo. O Guilherme segurava um toco mínimo entre os dedos, ele é do tipo que consome um cigarro até a última fagulha. É isso aí, o Guilerme tem razão das coisas. (O Victor, quando não o tratava por Gui, ou quando falava sobre ele, pronunciava Guilerme.) Não, olha, alguém sempre comenta com alguém, alguém sempre fica sabendo, desconfia, é sempre assim… Tá certo, eu te entendo, já te conheço um pouco. De boa, mas se quiser ir com a gente… O Guilherme soltou um bloco suave de fumaça pela boca. Tranquilo, velho. Ninguém vai saber. Estamos todos de rabo preso, entendeu? O que se faz em Vegas permanece em Vegas. O Alex e o Victor riram ao mesmo tempo. Ahahah… Eu não topei, e eles não insistiram. Insistir, para quê? Pelo jeito, quem perdia era eu. Mesmo demonstrando compreensão, parecia claro para mim que eles não assimilavam o motivo de minhas hesitações, que era mesmo fraco. Já faz uma meia hora aqui, vamos voltar pra Maga, gente. Vamos? Vamos. Percorrendo devagar a diversidade dos jardins, deixando para trás uma e outra porção de sombra entre as árvores e os arbustos e as trepadeiras e uma solidão que, após uma brisa inspiradora ou a passagem de alguém, sempre voltava a cercá-las. Nós quatro sem pressa. Uns de cabeça baixa, mãos nos bolsos, outros não, uísque e cerveja no sangue, sensações tranquilizantes, nossa proximidade mansa, união entre os homens, paz na Terra aos homens e suas vontades. Enquanto caminhávamos de volta à festa, eu observava a beleza de inúmeros detalhes por ali, não apenas porque os jardins eram bem arranjados e harmônicos, mas também porque, em meio a qualquer dessas simulações de paraíso, eu conseguia adivinhar a fada má morando embaixo de uma pedra.

Outra vez lá dentro. Os ambientes se misturam, que a sala se perde em cantos aconchegantes, outros bem arejados. Pode-se sentar em sofás banquetas muretinhas de alvenaria. Passando e parando, por este e aquela. Olha só, a Renata Miranda de calça justa. Simplesmente espetacular. Já vi, Alex, por favor, disfarce. Nós, entre outros. Sempre assim. Sônia, ei, tudo bem? A Sônia Santos matou o namorado por engano. Que situação terrível. Foi absolvida. Mídias locais. Faz um tempo. Justiça, sim. Chorou no tribunal. Uns três anos, acho. Era isso, Victor? Menos: dois anos e pouco. Dois anos e pouco, certo. Jovem ainda. Era mais jovem. Chorou no tribunal. Como vai, Sônia? Beijos perto da orelha. Olha-me de frente, olhos cintilantes. Brincos de argola. Pescoço aromático. Daiquiri, estou vendo. Alta em saltos. Bem-disposta, o tempo passa. Chorou no tribunal. Não me olhe assim, Sônia. Que situação. Sou casado, você sabe. Essas festas são a expressão de uma diversidade de loucuras sutis. É tudo um grande erro. Acidente universal. Impessoal inconsciente cósmico. Nenhuma entidade ninguém. Iludindo os místicos. A gente inventa um sentido que não existe. Menos eu, que admito ser parte da natureza, só. Escapei de ser o morto. Acontece. Por nada. Justiça, sim? Foi inocentada. Um acidente, em todos os sentidos. Estarmos aqui. Daiquiri, pescoço aromático. Bem vestida, de volta à vida. O tempo, sem nada de estranho, acabará com tudo. Uns três anos nisso, Victor? Dois anos e pouco. Jovem ainda. Somos todos aqui. Sangue circulando entre nós. Fluxo ininterrupto, apenas os indivíduos se substituem. E daí?

Ali estava a garota mais linda que conheci, que eu podia identificar facilmente a distância, em meio a movimentos e ruídos de todos nós, talvez a mulher mais linda que ainda vive nesta cidade. Não, não. Vamos riscar esse talvez. A Natália Victória Wiermann era, com toda certeza, a mulher mais linda que eu jamais vira de perto. Mas por que eu e tantos outros a vemos linda assim? Porque ela é próxima à simetria? Sim, eu sei. Já li sobre isso tudo. A necessidade mental da simetria. Projetada no rosto de uma pessoa. Acaso genético. E seus cabelos escuros de ondas suaves, bem cortados, fechando logo abaixo do pescoço, quase flutuando sobre os ombros, abrindo em pontas nos dois lados de seu rosto preciso, um rosto a um tempo rígido e suave, porque ela tem o ar de uma mulher madura, isso mesmo, às vezes ela passa por uma mulher madura, embora seus vinte e sete anos guardem ainda uma menina ofendida, uma criança querendo sair por seus olhos. E seus olhos são claros como os da Maga Lyngstad, quase cinzentos, quase translúcidos – mas enquanto os olhos duros da Maga, de fundo hipnótico, parecem nos atingir com sua mira certeira, os olhos indefesos da Nata Wiermann pedem ajuda. E antes que eu me animasse apenas por ter à minha frente a mulher mais linda do mundo, outros sinais vinham com ela, carregados em seus trejeitos mínimos de cabeça e ombros levemente curvados. Ela mora com a mãe, que sofre de alguns distúrbios mentais – ela própria está submetida a um acompanhamento psiquiátrico permanente. Seu sorriso nunca se mostra por inteiro, mas, em pouco que se dilata sua boca, como desenhada a traço, ele se promete magnífico – eu nunca a vi sorrindo de verdade. Contam que há fortes suspeitas de que seu pai a molestava na infância, e mesmo enquanto se tornava mocinha, entre carinhos, segredos e sangue. Ele se casou três vezes, e hoje cumpre pena em um presídio no centro do estado, porque, durante um surto de fúria, estrangulou até a morte sua terceira esposa. A Nata Wiermann e sua mãe ainda vivem de parte dos lucros do negócio dele, hoje administrado por um sócio, uma fábrica de móveis finos, de alta qualidade.

Perto da meia-noite, alguém sugeriu que uma das convidadas mostrasse os seios. Ela estava próxima ao bar, que fica um degrau acima do piso da área externa, como um palco estendido entre dois quiosques, pouco antes da primeira fileira das mesas plásticas ao longo da borda da piscina. A Mig era quem estava eventualmente no centro das atenções. Ela devia ter uns vinte, vinte e um anos, não mais que isso. A Mig é a Miguelita Herrera Bim, filha de um proprietário de supermercados de bairro e de uma engenheira química, e eu não me lembro de uma dessas noites na casa da Maga em que ela não estivesse presente. Não mesmo. Desde que comecei a frequentar, com a Marjorie, essas festas combinadas ou improvisadas de sua amiga Maga, sempre vi a Mig entre nós. A Marjorie a tem em boa conta porque ela promete seguir os passos do pai nos negócios, enquanto cursa Administração de Empresas – não sabemos, claro, se ela cumprirá a promessa ou se mudará de ideia. E o pedido seguia valendo. E a Mig ali, hesitante sorridente vaidosa, repetindo nãos enquanto se divertia com o tom de súplica de um rapaz que eu não conhecia, que parecia ter vindo com a Rafaela Brittes e uma de suas primas, não sei, eu não sabia, não tinha certeza. Mostra pra gente, vai, faz esse carinho. A Mig o afastava com um tapinha à toa. Não, Fred, que isso, tá louco? Outros engrossaram o coro e passaram a incentivar a brincadeira. Ao fundo, Lou Bega cantava seu “Mambo n. 5”. A essa hora da noite, soprava um ventinho gostoso e vivo, vindo dos descampados próximos ao condomínio. Vai, mostra rapidinho, vamos ver, que que custa, que que tem de mais? A Mig levou a mão à testa, cobrindo o rosto enquanto sorria. Gente, não. Tô com vergonha. Preciso de mais um drinque. Drinque, no caso, claramente um eufemismo – ela parecia ter tomado umas boas batidas de frutas bem a seu gosto. A Rose Levy deu-lhe um copo alto de vodca gelada, fatia de limão presa à borda. A Mig então tomou meio copo de uma vez, engasgando enquanto ria. Mesmo assim, indecisa teatral maliciosa, ameaçava a todos com a desistência e a frustração. O Gilberto Roma, marido da Verônica Braga, que estava ali, a meio passo de mim, acima do peso, caminhando para a calvície, mãos grossas prontas a aplaudir, convocou-me à ação. Fala alguma coisa, vai. Você é bom nisso. Fala. Eu sorri, toquei o braço dele em sinal de que prestasse atenção ao que eu iria dizer em seguida. Vamos lá, Mig. Você sabe que é bonita. E está entre amigos. Isso dá um tom à nossa festa. E muitos pontos pra você. Homens e mulheres riram. Apoiaram arremedaram aplaudiram, sem tirar os olhos de cima dela. A Queen, num vão entre uma e outra pessoa, olhava-me especialmente. Séria ou apenas curiosa, não sei. (Uma observação: a Marje não comentou nada sobre isso, em nenhum momento. Eu nem sabia onde ela estava quando isso aconteceu – isso, eu digo, a minha fala incentivadora. O resto ela viu. Nem uma palavra. Mesmo. Nem na viagem de volta. Nem quando apaguei a última luz, em nosso quarto, ao fim de tudo. Nada.) Como parte de uma esperada encenação, a Mig tornou a cobrir a testa com uma das mãos enquanto com a outra fazia descer delicadamente pelo braço a alça esquerda de sua blusinha cor de vinho. Um murmúrio quase infantil de admiração e felicidade ocupou o espaço ali, partindo de diversos pontos, vozes masculinas e femininas, atravessando-nos a todos com um entusiasmo alternado entre uma ansiosa perspectiva de silêncio e um possível clamor de glória. Em um e outro intervalo entre as variações de vozes, alguns acenavam para que todos se calassem. Eu sabia que algumas garotas ali não aprovavam a ideia, mas não protestaram. Afinal, era uma festa. Nem sempre fazemos festas. Afinal, éramos todos humanos. Afinal, a vida exige momentos de descontração e de subversão entre os dias e as noites. Afinal, não era algo tão absurdo assim. Era só uma brincadeira sensual, um capricho de momento. Afinal… não era nada. A Mig fez um charme de um instante e pôs à mostra um de seus peitinhos, um peitinho de agradável proporção, jovem e pronto, ligeiramente voltado para o lado externo do torso, aréola pequena castanho-clara coroando a forma macia que ela sustentava com a mão colada ao corpo, como apontando seu lindo seio, à prova de críticas, em nossa direção. Era inevitável que eu o comparasse, num relâmpago secreto da memória, aos peitinhos lindos da Josie e aos peitos consistentes fortes não menos lindos da Marjorie. No fundo acho que me encanto com todas as mulheres do mundo – mas isso já é a vodca. Lou Bega cantava: … a little bit of Rita is all I need, a little bit of Tina is what I see… Fez um sinal para a Rose, pegou de volta a vodca, girou um dedo no líquido gelado e tocou-se no mamilo, arrepiando-se do próprio susto e provavelmente fazendo-o eriçado instantaneamente, o que eu não podia ver de onde estava. Risos e aplausos esparsos dirigidos à estrela do momento, que parecia nos dominar com seu feitiço enquanto a voz do cantor, sobrepondo-se às nossas, lembrava: you can’t run, you can’t hide, you and me gonna touch the sky. Isso não se estendeu por um minuto inteiro. A Mig subiu a blusa, guardou o seio.

Desde então, a festa parecia outra. Nossa memória dessa noite era outra. Nosso tempo cronológico não podia mais vencer o efeito desse capricho desse encantamento dessa magia simples. A Mig nunca mais foi a mesma para nós. Ela nos brindou com a libertação. Como eu previra, isso contou pontos para ela: todos passaram a simpatizar mais com ela, principalmente nós homens, tocados por um inconfessável sentimento de gratidão. Eu via esse gesto de ousadia malícia música e álcool como uma superação das culturas repressivas, um fator de redenção do que jazia estancado em nós mesmos, em nosso invisível ressentimento, uma conquista de todos. A estrela nascida do instante etílico, inspiradora de ansiedade e risos, realizando nossa reintegração à condição legítima de nossos hormônios. O momento de fazermos as pazes com o melhor de nossa natureza. A fêmea representativa, a musa da vez. A renovação dos votos de todos com nosso próprio senso de liberdade, com nossos caprichos sublimados, com nossa permissividade contida, com nossa inocência.

Circunstancial, tudo no mundo. O fato de eu ser casado com a Marjorie, de ter um caso com a Josie, de conhecer esta e aquela pessoa, vizinhos colegas professores e uma diversidade de alunos, mais e menos vistos e lembrados, seria algo parecido em qualquer outro lugar, qualquer outro como eu, quaisquer outros, mesmo considerando que minha condição atual ia ultrapassando tudo o que eu próprio havia calculado. O que conta é essa curiosidade ativa, que sobrevoa toda a teia da circunstância, se desprende dos hábitos – e pretende ser forte, decifrar tudo.

Projeto esvanecendo-se

 26. Seu perfume suave estranho novo – sequência

24. O jardim do hoje – anterior

  Guia de leitura

Imagem: Fabián Perez. Sabá com copo de vinho tinto

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Comentários

3 respostas para “Projeto esvanecendo-se. As festas na Maga. Pequenos atrevimentos”

  1. Avatar de Natalia Fernanda Chagas

    Sei que você sabe, mas direi novamente: sou tua fã!

    1. Avatar de Perce Polegatto

      Sim, e fico feliz em ouvir isso novamente. Sempre grato pelo apoio e pelo carinho, isso significa muito, pode ter certeza.

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