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Projeto esvanecendo-se. Dos primeiros dias inúteis
Não queria ficar assistindo a imagens do passado no cinetoscópio precário da memória.
Caminhava e corria outra vez. Até a exaustão, que era boa, e voltava a caminhar tranquilo. Mas inquieto. Com medo do que me escapava. Do que eu não percebia. Por que minha condição atual não me exasperava? Meu fundo de garantia vai durar algum tempo, não muito. Contas por alto, fácil. Repeti esse alerta a mim mesmo mudo em silêncio nos últimos dias, meu fundo de garantia… Mas por que eu me entregava a essa indolência mental, como se um megameteoro fosse pulverizar o planeta na semana seguinte, e eu não tivesse nada mais que fazer? Como podia pressentir, sem o menor arrepio entre as sinapses, que alguma coisa parecida com um desastre estivesse perto de abater-se sobre a minha vida, se o resto do mundo, a partir destas ruas claras, continuava girando quieto, sob sua aparente ordem de repetições, e só podia acontecer alguma calamidade real em alguma outra parte, outro continente, outra distância impalpável? Nós nos dizemos que nada é certo previsível seguro, mas no fundo temos quase certeza de que todas as coisas são sim isso tudo e como esperamos que sejam. Porque o sol nasceu ontem, tornou a nascer hoje, portanto nascerá amanhã, claro, mas é claro que é assim, há uma possibilidade muito muito muito grande de que o sol torne a nascer depois de amanhã, e tudo o mais acompanha esse pensamento simplista, amanhã de manhã lavarei meu rosto, farei o que tenho que fazer, como fiz ontem e há um ano, mais tarde almoçarei, à tarde farei aquilo ouro, então a avenida interditada, então uma tempestade tropical, então um escândalo na política e a queda de um líder, então a morte de alguém, um noticiário um obituário e outra vez um diário ordinário…
… em suma: David Hume…
Sei que vou ver a Josie ainda esta semana, sei que sexta-feira à noite estaremos na Maga, bebendo e nos divertindo e nos deprimindo e sei que nem mesmo esse apanhado de precárias previsões terá qualquer importância quando as coisas estiverem de fato acontecendo, e uma mulher ou outra me sorrir do fundo de seus hormônios. Todos nós Todos Nós TODOS NÓS viajando involuntariamente ao largo de um vasto abismo cósmico, cenário soberano para absolutamente tudo que ocorre e transcorre. Não há para onde ir. Não há como voltar. Não há como cair.
Mas meu corpo não tem nenhuma função fora de si mesmo. Resultado de acasos e decisões alheias. Ele se energiza se fortifica se conserva para depois entregar-se, sem defesa, à própria destruição. A pessoa mais privilegiada do mundo ou a mais desafortunada, a princesa de Mônaco e o pedinte em Marrocos, são todos como eu, com seus corpos, e por isso, por essa mesma razão que a minha, não têm nenhuma chance de sobrevivência no futuro. Mas eu não queria carregar comigo esses pensamentos tóxicos traiçoeiros semitrágicos. Não queria carregar o que havia acontecido comigo recentemente. Nem o que havia acontecido comigo antigamente. Não queria ressentimentos. Não queria ficar assistindo a imagens do passado no cinetoscópio precário da memória. Caminhar e correr, minha saúde em dia, para continuar pensando que nada faz sentido, não, não pode ser. Queria correr, suar. Dar força a mim mesmo.
Eu existo hoje porque meus ancestrais morreram. Não a causa, necessariamente. Mais ou menos isso. Algo inevitável. A vida se sucede, é herdada repassada reciclada, mas os indivíduos deverão necessariamente desaparecer. Nascemos para ser órfãos e para deixar órfãos outros como nós, atravessando o tempo.
… para Helena Cronin, por exemplo, somos arquivos autênticos dessa ancestralidade remota; nossos corpos e nossa inteligência, monumentos vivos dos raros sucessos daqueles que bravamente nos antecederam. Somos a prova de que eles conseguiram. Não, mas eu não acho que esteja raciocinando bem…
Eu sabia a data de nascimento e morte de certas celebridades, como Newton e Darwin, Bach e Dostoiévski, e conforme conhecia outros registros, observava outras mais datas, sem a preocupação inútil de tentar memorizá-las. Sabemos sobre o nascimento e a morte por meio de informações. Nós não vimos o nosso nascimento. E não veremos a nossa morte. Mas então pensei que todos, no passado, tinham suas datas – suas duas datas! Como num sonho absurdo, como atacado pela vertigem que um aleph aleatório poderia produzir sobre meus sentidos, num instante julguei ter vislumbrado todas as datas das pessoas do mundo, e mesmo quando, num passado remoto, não se contavam o início e o fim de alguém pelo mesmo calendário, restos sob pedras e ramagens insuficientes, amontoadas em nome da morte, em cada dia da Era do Gelo e muito antes dela, todos esmagados pelo transcurso do tempo perdido, antes que outros, também condenados, seguissem viagem.
Do que morreram todos? Melhor pensando: do que morreu cada um? Uma infecção forte? Um acidente violento? Um assassinato? Doenças sem nome? Falência múltipla de quaisquer coisas? Insuficiência cardíaca renal hepática? Ou nada, apenas tudo cessou em meio a uma reconfortante noite de sono?
Essas folhas caíram de ontem para hoje. Secas e quebradiças, carpetes irregulares. Passo por elas, pisando-as. Chaf chaft chasft… O planeta girou um dia. Velhos agonizaram. Bebês morreram. Seu movimento suave esconde um monstro. Gira enquanto corro. Mas não conto a ninguém. Que se esqueçam de mim. Eu sou o monstro que eliminou a totalidade de teus ancestrais. Que distribui ossos delicados pelo mundo. O monstro aleatório ou cirúrgico que conduz multidões ruidosas ao silêncio. Você sabe, pela posição do sol, que está correndo em sentido anti-horário, correndo contra o tempo, sentido antimorte. Rosto e peito suados, corre intenso contra o giro enorme. Mais um dia a menos. Protegendo-se de quê, se a sua vida também vai passar? Inspirando áspero o ar seco que o alimenta. Um giro implacável, um exército de bactérias invencíveis carregando os continentes, matando gente antiga e os filhotes de um dia. As fantasias místicas tentam deter-me, não podem. Eu sou aquele que não se rendeu, que não se renderá. Corre e pisa as folhas secas, velhas e novas, chaft chasft… Eu sou o monstro que trabalha à noite, sob a indiferença das estrelas. O monstro que desfolha as árvores. O assassino da Joss Stone.
Nossa casa fica na parte leste do bairro, onde as fábricas não entram. É que essa região foi formada ao acaso, um lote após o outro, delimitada por um córrego quase invisível, não mais que uma valeta seguindo ao longo das ilhas da última avenida. Os prédios comerciais se detêm pouco antes da rodovia que leva ao sul do estado, uma entre as vias que se cruzam nesse ponto. Outra, que nasce de uma bifurcação, leva à região oeste de Minas Gerais. Tudo isso envolvendo um confuso emaranhado de saídas e desvios, acima e abaixo de uns pontilhões e viadutos que custaram caríssimo à prefeitura, ao que disseram. Por muitas e muitas extensas quadras, quase inteiramente desenhadas por muros e cercas, estende-se uma sequência de construções, em maioria baixas: galpões estacionamentos estruturas de armazéns pátios antigos e novos, caracterizando a geografia das empresas que por aqui se instalaram desde uns cinquenta anos antes, quando essa parte da cidade nada mais era que a última porção urbanizada antes das várzeas nativas e dos campos cultivados – enfim, o limite da cidade. De certos pontos, avista-se ao longe uma barreira mais densa de árvores, diminuídas pela distância, interrompendo uma linha de colinas azuladas e suaves que sobem e descem como se eu as desenhasse com os olhos enquanto sigo sua vontade viva de viajar para longe e sobre as quais tenho vontade de fazer um carinho com a mão. Não sei ao certo que cidade é aquela. Ou que cidades. Pode ser uma entre duas ou três que se localizam por aqueles lados. Não me importo com essas informações definições precisões. Na verdade, eu desprezo tranquilamente esse tipo de coisa. Prefiro nem saber. Que nunca se instalem entre as coisas que-eu-mais-tenho. Amo chegar a esse ponto do bairro, a essa altura do ultimo aclive irregular, e ver aquelas árvores escurecidas minúsculas delicadas e aquelas colinas deslizando até o limite em meu alcance de visão. A que município pertencem? Que linhas traçaram para delimitá-las? Não dou a mínima. As cidades não existem. Não são alguém, não são alguma coisa. São nomes, nomes inventados para identificar conjuntos de terras e todas as coisas que existem (sim, aí sim, as coisas que existem) nelas. Uma convenção idiota que provoca noções de responsabilidade e orgulho nos habitantes dessas terras-nomes. Além disso, essa bobagem toda só piora quando se pensa que alguns políticos locais… Não, não, eu sei: não estou raciocinando direito.
Dessa parte eu me lembro bem. Não imaginava, é claro, que um dia viria a morar aqui. Quando crianças, vínhamos aqui perto, eu e meus primos, trazidos por meu pai e por um tio, para empinar pipas e observar alevinos agitando-se em alguns pontos junto à margem do riacho de águas claras, meio escondido pelo capim alto, que hoje não existe, por ser subterrâneo, sob placas de concreto. Em outra fase da história particular desse ponto mínimo do planeta, nas proximidades de todas essas fábricas e distribuidoras, os namorados vinham de carro esconder-se dos pais e da sociedade entediante que fingia não saber desses condados obscuros onde se exercia anonimamente a liberdade.
O tempo passou, a cidade cresceu. E esses casais se tornaram seus pais, livres das desconfortáveis condições da clandestinidade. Alguns bairros emendaram-se uns com outros irregularmente, sem planos definidos, e se fundiram se fundaram se moldaram à paisagem própria do lugar, que não é a melhor sugestão que nos pode passar a palavra paisagem.
Projeto esvanecendo-se
23. A primeira tarde de areia e mel – sequência
21. Do que eu era – anterior
Imagem: Manhã de neblina no Parque Industrial. 2016.
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