Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Liberdade à força

Mas não procurei nenhum deles. Não lhes enviei e-mails, não telefonei.
Deixei que dezembro, com seus dias espessos, passasse.

michael-goldberg-abajur-e-vaso-1963-1Minha vida agora era outra. A Marjorie saía para trabalhar. Eu ficava em casa o dia inteiro. Saía também, eventualmente, algum pequeno pretexto, comprar granola chocolate umas frutas pão de forma, tudo inventado. Afazeres, agora com tempo dilatado. Mais atenção a Coco Chanel, sua comida e a higiene de suas tigelinhas, de sua caixa baixa de cristais de sílica, se bem que ela registre suas atividades também numa parte do jardim, sob as moitas do canto escurecido, à direita de um recorte entre as aleias, como desenhado para a conveniência de uma privacidade perfeita. Levar o lixo para fora. O orgânico e o reciclável, em dias diferentes. Dias iguais diferentes, penso com bom humor. Não importa. Para que a casa funcione, preciso estar vivo.

Mesmo quando lecionava, eu dispunha de manhãs livres. Mas agora tinha de me acostumar com todas as manhãs livres. Todas as tardes. Todas as noites. Não é bom viver assim, tão livre. Não enquanto a Marjorie passa o dia nesse escritório de advocacia onde, segundo todas as referências, ela personifica a perfeita competente admirável secretária assistente. Perfeita e preocupada. Proativa, que eu também sei que ela é. Tudo que um líder empreendedor patrão pode desejar – e que não deve perder de vista, se for esperto. Para um advogado, nem se fale. Lembro-me de umas vezes em que ela se estendia, trabalhando até tarde, nem nos encontrávamos à hora do lanche, eu e minhas aulas noturnas, já saído e já voltado, e ela realmente chegava tarde e depois de mim, eu agora recordando esse dia especialmente, essa noite, aparentando cansaço, cabelos um pouco desfeitos, franja irreconhecível, ela que preza por parecer impecável, mas, claro, a essa hora da noite, depois de tudo, foda-se o cabelo despenteado, talvez de tanto coçar a cabeça, apoiar a mão na testa e na boca, esfregar-se e massagear-se o rosto, coisas assim que fazemos, movidos pelo tédio e pela preocupação. Em outras dessas noites, esses serões que subentendiam maratonas burocráticas exigindo suor e superação, provas de resistência em uma quarta-feira qualquer, ela parecia até alegre. Era incrível. Cansada e alegre. Exausta mas gratificada. Porque a Marjorie é do tipo que se realiza mostrando-se assim, empenhada dedicada orgulhosa. Além disso, confiável. A toda prova. Minha esposa, definitivamente, não é uma profissional que se possa descartar. Quase insubstituível, se não houvesse outras marjories pelo mundo. Eu também me considerava confiável e a toda prova, até o dia em que o Valério da Matemática me pôs a par de todos os boatos excitantes contra mim. Até então. Afinal, eu era mesmo confiável, e os boatos não eram fatos. Depois, quando me sentia o próprio portador heroico da verdade, o sobrevivente ressentido da resistência moral, prejudicado por gente maliciosa e aproveitadora, conheci, sob aquele dia incerto e cinzento, naquela tarde a meio, protegida por nuvens, a garota triste que se tornaria, em pouco tempo, minha improvável amante. Minha felicidade nervosa e renovada. Minha mentira mais linda.

Há mulheres em meus sonhos. Passando ao lado, como sombras. Deitadas em alguma cama, adormecidas; outras sentadas na cama, me esperando – para quê? Por nada. Elas tornam viva a minha vigília e me assombram positivamente, sem que eu as invoque, em meus sonhos. Até mesmo a Queen me perturba de maneira benigna, com seu olhar traiçoeiro. Também outras, como a Eneida Terra ou a Beatriz Dantas, com resultados parecidos. Meu colega Carlos Junqueira, da Psicologia, alto citrino decidido, com seu bigodinho loiro, sua simpatia discreta, pediu que eu prestasse atenção (porque eu havia comentado com ele algo sobre a influência das mulheres em meus pensamentos) em uma professora colega nossa, que a princípio não deveria exercer sobre mim nenhum tipo de domínio, mas que parecia exercê-lo assim mesmo, sim, muito, mas muito sutilmente, se não eram sinais meus enrustidos de masoquismo. Pensei com honestidade sobre isso. Não soube responder com clareza. Não sabia. Disse a ele que a Marjorie é exigente e metódica, mas que eu não sentia que me submetesse a ela. Ele desconfiou que sim.

Intencional ao acaso. Quase, de maneira marginal e distante. Como se estivesse sendo induzido, por mim mesmo, a levar a cabo um caso de clandestinidade, tornando-o efetivo e consistente, já que havia sido punido por ele – por outro caso, entenda-se, um caso-suspeita, que não tinha força para existir. Agora, que eu de fato me encontro e compartilho a cama com uma mulher supostamente proibida e, por minha conta, corro os riscos que a vida não me oferecia por si mesma, permaneço à margem do radar ansioso dos que um dia reciclavam a saliva desconstruindo minha imagem. Minha imagem, mas que bobagem. (Até parece um verso, dizendo assim. Título de um épico contemporâneo, arte do futuro.) Nada deve soar assim, tão sério. Nossa reputação é resultante de critérios alheios, por isso não importa muito. Do que pensaram de mim, do que pensam de mim, no limite do desprezo – porque, além dessa função, não há por que ficar pensando em mim.

De qualquer forma, a Josie tem sido um antídoto contra males e maledicências. Ironicamente, isso. Pontas soltas de seus cabelos e de rumores maliciosos que persistiam em minha memória recente desde o caso com a Silvaninha e seus inconcebíveis inconvenientes desdobramentos. A Josie Joss Stone, com tudo que me inspira e sugere, não sabe muito bem o que significa para mim. Não sabe porque não digo a ela. Melhor não dizer. Isso nos enfraquece. Para mim, que fui emboscado por falatórios irradiados a partir de uma historinha falsa, ela representa um desfecho tentador e surpreendente, próximo à redenção. Mas esse não é o fim da história. E é mais do que o começo. Enquanto respiramos e nos movemos, danações e redenções revezam-se por toda parte, sem fim nem começo. Nós todos, em pleno curso. Sem nenhum certificado à frente. É que nossas histórias nunca terminam. Cada palavra traz um vício novo. Não nos graduamos não damos baixa não temos alta. Nossa memória é passada a outros. Os alunos vão ocupando a sala de aula. A Marjorie continua comigo. As festas na Maga encantam as noites de sexta. A Josie me espera nua.

Meus pais são de Minas, sabe? Minha família. Faz tempo que eu não vou lá, preciso ir. Tenho dois irmãos, um em Belo Horizonte. Já casou, trabalha lá. Ele é gerente de loja. Minha mãe não gosta muito de mim, sempre achei. Meu pai é mais amigo. Ele era meio mulherengo, sabe? Era? Não é mais? Não sei, acho que não. Ele traía sua mãe? A Josie achou engraçado, a maneira como usei a palavra, talvez. Traía? É… Mais ou menos, traía sim. Essas conversas despertavam-me arrepios. Aceleravam meu medo. Injetavam combustível em meu tanque de preocupações, lubrificavam o motor de minhas ansiedades. Por que não vou embora daqui de uma vez? Olha, pra falar a verdade, eu quero separar as coisas, e quero falar de nós agora, meu lindo, sabe, a vida continua. É, mas eu não tenho como pensar em nós agora. Você me entende? Pode compreender isso por algum tempo? Não tenho como… Pega o meu pezinho. Assim. Ficou boa a perna? Depilei ontem.

Ah Josie Stone, minha aromática amiguinha ignorante: imagino quanto ainda não sabe de mim. Só após o terceiro ou quarto encontro com ela, não me lembro bem, é que comecei a compreender que estava construindo em torno de sua figura não uma fuga mas um gradiente de compensações. Eu estava no jardim, Coco Chanel acompanhando-me atenta, naturalmente curiosa por meu próximo gesto, quando pensei nisso pela primeira vez. Ela se compraz quando me vê portando alguma ferramenta ou utensílio de jardinagem, sabe que vou mexer em alguma coisa, arranjar desarranjar rearranjar. O prêmio a recompensa o merecimento sugerem algum tipo de prazer consequente – quando não imediato, como nos casos dos guerreiros mitológicos e contofadistas que, tendo pronta e vencida sua missão, recebem de presente, logo em seguida, uma ninfa ou uma noiva. Um prazer consequente, eu disse, porque, após a aventura e o sofrimento, supõe-se que o herói, redimido e desarmado, mesmo que ainda enquadrado em rimas, possa agora e finalmente ser amado. Ou desejado. Ou gentilmente valorizado. Ou ter uma mulher com quem trepar mesmo. Alguma coisa. Pelo menos. Sentei-me em uma das muretas que continham o gramado no patamar mais alto. Coco Chanel cheira delicada um pouco de tudo, por vício, pois ela conhece cada sombra e cada fio de erva por ali. Eu visualizava o decote da Josie em uma de suas blusinhas enquanto tentava me entender com meus pensamentos. A linha que era a junção dos seios. A pele do pescoço e as diferenças de tom arranjadas pelo sol. Visões assim passeavam sem querer entre minhas ideias pseudopsicanalíticas investigativas. Se não tenho o reconhecimento de vocês, tenho o reconhecimento dela, estão vendo? Mas não, claro que vocês não podem ver. Uma pena. Porque eu gostaria de mostrá-la a todos, queria só ver a cara de vocês. A Josie sim me valoriza. Ou apenas me deseja, não sei. Até me conhecer melhor, quem sabe. Vi os pezinhos dela alisando o lençol. Será que é isso que está me acontecendo? Essa moça, sem saber, me serve de troféu no escuro? Na invisibilidade de meus dias de nada? Coco Chanel, vamos até ali, vem. Vou ter que podar essas extensões da trepadeira caindo à entrada, olha só, como crescem rápidas, a gente nem percebe. Plact. Plect. Uns ramos delgados finos caem frouxos, folhas macias. Coco Chanel chega perto, farejando o evento. Toma, uma florzinha.

Eu não sabia ainda o que fazer para voltar à ativa. Tinha perdido minhas conexões, que já eram poucas e pouco proveitosas. Dificilmente encontraria aulas àquela época do ano, quando já estariam fechados os contratos, organizados os quadros de horários e definidos os nomes do corpo docente. Como eu trabalhava nisso há muito tempo, sem interrupção, sem precisar me preocupar em procurar aulas em parte alguma, e como nos últimos anos, para piorar, vinha me dedicando com exclusividade a uma única instituição, via-me completamente fora de forma quanto à maratona pouco animadora de tentar encontrar trabalho. Eu pensava muito, mas não agia. Imaginava. Procurar frutas escondidas no alto das copas. Mas o problema maior insinuava-se internamente, fechado em mim mesmo. A árvore toda caíra.

… Jean-Paul Sartre postulava que deveríamos encontrar um sentido para nossas vidas, já que a vida, em seu amplo aspecto, não apresenta sentido algum. Porém, Albert Camus defendia que isso era desnecessário: a vida não tem nenhum sentido mesmo, e simplesmente deveríamos aceitar essa condição…

Pensei em colegas que poderiam me ajudar com uma vaga de docente em escolas de ensino médio, talvez numa dessas cidades próximas, já que a disputa aqui costuma ser agressiva e medíocre. Mas não procurei nenhum deles. Não lhes enviei e-mails, não telefonei. Deixei que dezembro, com seus dias espessos, passasse. Eu quase adivinhava que muitos desses colegas que me ressurgiam à mente, entre imagens rápidas, nem sabiam do que tinha acontecido comigo. Que eu, um dos professores mais ativos e atarefados da instituição, com uma laboriosa diversidade de matérias, desde a mais comum, Compreensão de textos, aplicada a quase todos os cursos, até a específica Semiótica, com mínima carga horária no curso de Educação artística, estava drasticamente parado. A não ser que fossem próximos de um desses tipos muito bem informados, de preferência maledicentes, não teriam ainda essa notícia, no mínimo curiosa, sobre mim. Imagino que reagiriam com alguma interjeição de surpresa, talvez um palavrão inofensivo, desses que não valem mais nada, mas que nos agrada e alegra pronunciar, bem-humorados e autoconfiantes. Que bosta, não?

A fusão entre minha agora inútil cultura de docente e a vivência arriscada de minha mais nova aventura incerta silenciosa tentadora produzia em minha imaginação incidental resquícios de trabalhos escolares e aplicações de seu conteúdo e de suas práticas, como sempre os mais respeitados educadores quiseram e pregaram, em contextos reais e consistentes da vida do aluno do educando do escolar, com certa comicidade, eu sei, mas no fundo provocando-me desejos tristes de gritar ou chorar. Só por eu ter me envolvido nessa rede, não muito complexa, admito, de situações que se renovavam diariamente, com alguma previsibilidade, mas com perigo cada vez maior. Só porque o tempo não pode retroceder. Só porque eu não tinha forças para decidir algo definitivamente. Velhos livros didáticos. Anexos. Atividades complementares. Que outro título você daria a esta história? A desgraça. Não? Pobre. Pensar mais. Que outro final você escolheria para esta narrativa? Resposta do grupo. Trabalho em equipe, envolvendo outros atores da sociedade. Por que foi necessária uma patética comissão ad hoc de gestores para eliminar um simples docente, por si só um frágil assalariado, tão fingidamente reconhecido e enaltecido como tão verdadeiramente menosprezado e desvalorizado, como é comum em relação a todos os professores em nosso país? Pergunta longa, não é? Buscar concisão. Reescrever. Atribuir as opções aos participantes, talvez por votação, resultado de maioria, respeitando-se todas as possibilidades, porque é assim que é no teatrinho escolar, onde o mais forte não predomina. Por que o protagonista não consegue se decidir? Por causa da liberdade. Por causa de sua outra vida dentro da vida. Mais ou menos. Que pensamento lhe vem à mente quando contempla as pernas os pés da Josie sobre os lençóis? Quero você para sempre.

Minha forçada ociosidade fez surgirem hábitos aos quais eu me dedicava enquanto ainda percebia, em silêncio, dissimuladas vibrações de culpa. Caminhar e correr. Mexer no jardim. Internet por mais tempo. Ler mais, o que era só o agravamento de um entranhado hábito em curso – em curso desde que aprendi a decifrar o código absurdo que usamos para registrar e repassar ideias. Convivia em tempo integral com a asseada Coco Chanel, que aliás preferia alienar-se docemente, sabendo-me seguro e próximo, indo acomodar-se a algum canto perto de mim, a deixar-se adormecida boa parte do tempo num lugar qualquer. Seguro. No aconchego do lar. Na casa que pertence a meu sogro.

Enquanto tais atividades pretensamente redentoras me ocupavam, minhas caminhadas e meus grifos em páginas novas, eu não conseguia evitar uma incômoda impressão de que minhas funções como professor profissional e pessoa não eram e não seriam mais as mesmas. Eu tinha de voltar a trabalhar, fosse como fosse. Com janeiro a meio, o verão entrecortado por tons arroxeados no céu, entre o entardecer e as primeiras estrelas, nas proximidades do bairro industrial, preparei cópias de meu currículo, cuidando de esperanças mais ou menos mortas. Eu olhava esses papéis, um cego de olhos esgazeados. Sem nenhum interesse. Olhava-os, por nada. Há pouco mais de dez anos, com frescas lembranças de minha formatura e de meus colegas de faculdade, eu entregava meu breve histórico profissional em finas pastas de plástico de cores discretas. Esse cuidado ingênuo, quando revisto, inspirava-me uma patética desagradável amargurada pena de mim mesmo.

Projeto esvanecendo-se

21. Do que eu era – sequência

19. Nossa juventude em fatias de espaço-tempo – anterior

  Guia de leitura

Imagem: Michael Goldberg. Abajur e vaso. 1963.

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