Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Um último aceno para nada

Ela tentou um último aceno.
Professor, só entre nós. Eu tive acesso a muitas informações sobre seu trabalho e…
 

paul-klee-ad-parnassum-1932-1Depois de consumado meu desligamento da universidade, com minha assinatura em três vias e minha indiferença em quatro dimensões, a Adelaide me acompanhou até o limite daquela divisão, uma porta de vidro grosso que abria um largo corredor antes das escadas para o térreo, lembrando, piedosa, que o dia seguinte seria, como sempre tem sido, “outro dia”. Patéticas palavras sábias, como já se espera em situações desse tipo. Fica firme. Amanhã é outro dia. E como eu não reagia não respondia não revidava, como eu apenas andava ao seu lado ajeitando a alça de minha maleta a tiracolo, ela puxou uma conversa a meio tom, perguntando se eu estava bem e se queria saber de mais algum detalhe sobre aquele processo idiota todo. Não. Está tudo bem. Está tudo bem, de verdade, fique tranquila. É um alívio que isso tudo tenha acabado. Ela apenas tocou meu ombro. Isso tudo o quê? Paramos junto à última porta de vidro. Percebi que ela tentava me dizer alguma coisa. Em particular. Dava para ver que sentia pena de mim – ou estava influenciada por um daqueles momentos em que detectamos algum traço de injustiça. Em sua posição de coordenadora pedagógica e braço direito da reitoria, ela estava atualizada sobre praticamente tudo o que acontecia, de concreto e de fictício, na universidade. Por isso ela sabia também quem eu era e o que de fato teria motivado a emboscada em que me enquadraram sumariamente. Você pergunta isso o quê, Adelaide? Isso aqui, olha… Gesto estendendo o braço, girando um pouco o corpo, olhando ao redor. Isso aqui tudo. É melhor assim, que tenha acabado de uma vez. Melhor assim. Ela baixou os olhos, compreensiva, mas logo tornou a me encarar. Eu sabia que a Adelaide me respeitava, que ela tinha alguma sincera admiração por gente como eu, que vinha de meios sociais rudimentares e acabava querendo estudar aprender entender, gente com esse adestramento ético, que não se corrompia moralmente, que aceitava sua parte no jogo, mesmo convivendo com a suspeita (ou com a certeza mesmo) de que alguém, hierarquia acima, estava sempre trapaceando de alguma forma. Afinal, ela era uma educadora de carreira, devia ter um fraco por alunos ingênuos e confusos, e lá estava eu, agora numa situação crítica, resultante de minha distração e de minha acomodada crença nas rotinas honestas, para renovar-lhe algum sentimento de solidariedade. Azar dela. Você quer saber o que a professora Silvana nos contou ontem, na reunião fechada? Fiquei, por um momento, paralisado. Mas foi piscar os olhos, e minha mobilidade toda voltou. Sem raiva. Sem ressentimento. Aliviado. Era isto, de fato: um alívio acima de qualquer outro sentimento mal definido. Não tem importância o que a professora Silvana falou, está tudo bem. Você não quer mesmo saber? Você já sabia? Não, não quero. Não sabia. A Adelaide é uma mulher de porte rígido, ainda assim delicada, serena em sua maneira de falar, uma mulher em seus sessenta, quando já se deformam as proporções do rosto, e seu nariz arqueado, agora mais fino e pontudo, e suas orelhas alongadas de estátua budista, quase certamente não são os mesmos de seus tempos de moça. Por mais que se cuide da pele, há alguma estranheza nas linhas do queixo, um incômodo na observação de uma série de minúsculas pregas acima do lábio superior, além de uma fina penugem, muito bem disfarçada, nessa região sob as narinas. Eu percebia, sem intenção e distraidamente, enquanto falava com ela, a pele nos antebraços, sutilmente granulada. Seus olhos me faziam pensar que eu estava, ao mesmo tempo, diante daquele brilho característico dos globos oculares dos galináceos e da secura das pálpebras das serpentes. Nunca tive nenhuma desavença com ela, nenhum problema. Mas falando assim parece que estou propenso a criticar a Adelaide, coitada. Criticá-la maldosamente. Não, mas não é isso. Talvez eu me altere um pouco quando me lembro dessas coisas. Quando penso que até mesmo pessoas boas são usadas, mesmo sem saber, para acobertar interesses rasos imediatistas mundanos. Essas mesquinharias. Essas patifarias de homens honrados. A Adelaide sempre foi uma profissional respeitada e honesta, até onde sei. Aposentada na ativa, dessa geração mutante que acreditou e passou a pregar a todos que não se deve parar nunca desistir nunca e trabalhar até o dia de seu próprio enterro. Mesmo influenciado por sua atitude formal e aparentemente neutra, eu ainda sustentava alguma afeição por ela, considerando todas as vezes em que conversamos nesses últimos anos e algumas, em especial, quando ela me atendeu e me ajudou, prontificando-se a resolver uma ou outra burocracia que me atormentava. Ela tentou um último aceno. Professor, só entre nós. Eu tive acesso a muitas informações sobre seu trabalho, sobre sua conduta, por meio dos coordenadores, eu tive que me informar, tive que vir bem informada para participar dessa comissão e… acho que você poderia procurar ajuda com um profissional, entende? Um advogado. Isso ainda pode dar o que fazer. Você tem direitos. Pode conseguir alguma coisa. Mas, pelo amor de Deus, não diga a ninguém que eu lhe falei isso, ouviu? Considere um gesto de extrema confiança. Seus olhos secos de cobra pareciam ter pena de mim. Soltei a porta automática, fui saindo. Não digo, fique tranquila. E não vou fazer nada disso.

Projeto esvanecendo-se

12. Uma coisa tão simples – sequência

10. Por causa de uma noite de chuva – anterior

Guia de leitura

Imagem: Paul Klee. Ad Parnassum. 1932.

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