Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Por causa de uma noite de chuva

Os boatos tomaram a frente de tudo que se pretendesse interessante nos corredores da escola.
Só eu não sabia dessa falação.

jackson-pollock-sem-titulo-1950-1Eu sabia muito bem o motivo da minha demissão. E não era esse. Não era digressão coisa nenhuma nem coisa nenhuma desse tipo. Tinha consciência de que não era um professor como os outros, muito bem. Mas não era para tanto. Eu não valorizava tudo o que todos valorizavam, com base em chavões e sem pestanejar, e era também por causa de uma curiosidade acima do esperado, que se aventurava por uma implausível diversidade de temas, contextualizados ou não, aprofundando-se em detalhes, por nada, querendo procurar não sabia o quê não sabia onde (falta de método), de uma paixão incontida por leitura e de uma ingenuidade que eu não me esforçava por vencer, porque não via necessidade disso, e era então como se eu estivesse sempre uma oitava abaixo dos arranjos do mundo. Logo que me conheceu, a Marjorie percebeu isso, não lembro se já disse, mas acho que sim, e me classificou discretamente como diferenciado. Não importa fosse ou não, porque não foi esse o fator decisivo, que deflagraria o evento catalisador no último dia letivo do ano. Não foi esse o motivo da minha demissão. Foi por causa da professora Silvaninha. Isso mesmo. Por causa da Silvaninha. E isso mesmo eu só percebi tarde demais. O motivo era a Silvana Reinhardt Mendes Lobo, professora de Marketing e Plano de Negócios no curso de Administração de Empresas. Vinte e cinco anos, novata, formada há pouco. Loirinha de cabelos desprendendo-se ao redor do rosto e do pescoço, sensual, olhos grandes vivos verdes, sorriso de boca pequena comprimindo as linhas que iniciam as bochechas, pele bonita, de um branco corado de sol, andava apressada, a passinhos curtos, parecia divertir-se com isso. Eu lhe dei carona duas vezes, ao fim das aulas. Só isso. Aliás, foi ela quem pediu. Só isso, mais nada. Tão logo eu estacionava o carro em frente ao seu condomínio, ela já ia saindo e se despedindo e agradecendo. Nada mais. E os boatos tomaram a frente de tudo que se pretendesse interessante nos corredores da escola. Só eu não sabia dessa falação. As historinhas cresceram e fermentaram entre a rotina de todos nós, eu entrando e saindo das salas de aula, subindo e descendo escadas, circulando sobre o piso encerado dos saguões e de alguns trechos do pátio interno, inocente e alheio, a um canto da cantina, uma barra de cereais suco de pêssego em lata um croissant, enquanto o invisível inaudível indizível soprava de uma janela a outra da universidade, às minhas costas. Foi meu colega, o Valério, professor de Matemática Financeira, quem me esclareceu: a Silvaninha era amante do reitor, o doutor Washington. Uma delas. Era por isso que ela estava ali. Protegida dele.

Eu não podia contar isso à Marjorie de jeito nenhum. Mas de jeito nenhum. Mesmo sendo inocente. Ela não iria acreditar, eu sei que não. Como poderia fazê-la acreditar? Por isso, passei a ela a mesma versão oficial que preenchia invisivelmente os termos que assinei: a tal digressão. Pois é assim que funciona. Uma suspeita dessas, mesmo sem nenhuma evidência que a sustente, mesmo sem nenhum fundamento real, é o bastante para pintar de sombra a história de uma relação. Por causa de uma silvaninha. E mesmo sem nenhuma evidência contra mim, rápida e surpreendentemente perdi meu trabalho meus cursos minhas aulas, vencido por uma suspeita. Nocauteado por uma lenda. Atropelado por um boato.

… um conto árabe tratava de três homens exatamente iguais. Quando passavam por trás de uma cortina escura e tornavam a mostrar-se, um a um, em momentos diferentes, o sultão, que assistia ao espetáculo, na cidade de El-Katif, duvidou e exigiu que os três homens se apresentassem ao mesmo tempo, para que ficasse provado que a exibição não era uma farsa. O apresentador mandou subir a cortina, e lá estavam os três, idênticos, um ao lado do outro. Então veio a lição: quando os gêmeos passaram à vista do sultão separadamente, eram de fato três indivíduos distintos, exatamente iguais uns aos outros; quando se ofereceu ao monarca a imagem dos três juntos, era um homem só, multiplicado por um truque de espelhos…

A Silvaninha é dessas pessoas que destoam das famílias tradicionais, por sua aparência frívola e desprendida, mas que, tão seriamente como seus pares, encarna, sim, todo o tradicionalismo e conservadorismo de seu meio, um meio que se sustenta cultivando (além do dinheiro, obviamente) a ideia de que seus valores são o que de melhor possa servir a um ser humano, determinação e pragmatismo, apoiados por opiniões e frases feitas repetidas entre gerações e jantares juramentados. Porém, mesmo adaptando-se às transformações que se sucedem na história, tais famílias não alcançam evitar o surgimento de uma ou outra ovelha cinzenta, preguiçosa e oportunista, que simula ser partidária dessa valiosa herança dos hábitos enquanto percebe as ideias originais que uma vez formaram seu clã como inadequadas e até patéticas, dignas de sátiras e arremedos. E mesmo esses dissidentes discretos, que continuam sustentados pela posição social de sua rede familiar, não passam de pretensiosos medíocres, ostentando a máscara frouxa dos rebeldes inofensivos.

Isso da digressão, que de fato era muito comum em minhas aulas, porque afinal eu sou assim, fragmatizado, com interesses diversos, discursos que vão e não vão e voltam, períodos longos, noções pessoais da importância de certos tópicos em relação a outros, declarado entusiasmo sobre algum tema que eu não havia esgotado ainda em mim mesmo, depois a substituição de uma coisa por outra, outra ideia qualquer que eu julgava ter esgotado meu interesse e sobre a qual não mais valia a pena falar, não era, nem de perto nem de longe, o motivo da minha demissão. Não podia ser. Qualquer um dos coordenadores podia ter conversado comigo e ter me advertido sobre isso. Nenhum de meus colegas foi jamais demitido por digressão por distração por omissão, por coisa alguma que dissesse respeito às aulas em si mesmas e que nunca fizeram a menor diferença para os sócios proprietários da universidade, muito menos para o doutor Washington, que nunca se incomodou com o mínimo do que bem ou mal estivesse sendo ensinado em qualquer dos pavimentos de sua lucrativa instituição. Esse tipo de coisa didática pedagógica educacional passava longe e ao largo de seus interesses. Um mundo à parte para ele – mas não declaradamente, como já se espera. Nunca ouvi falar que ele interferisse com uma única palavra sobre qualquer questão associada a esses procedimentos. Dispensava que o atualizassem de informações relacionadas. Dane-se o que vocês fazem aí embaixo, as matrículas estão em dia. Não queria nem saber. Não pagaria um centavo de dracma por isso – não importa o que seja um dracma.

E pensar que, dias atrás, mas que vida irônica, eu tomava um café na cantina da Jéssica! – aquele cantinho gostoso entre a lanchonete mais iluminada e o recorte arquitetônico que serve de entrada à xerox. Eu saía de umas aulas de reforço, fim de tarde. Estava escurecendo de nuvens. O que vai hoje, professor? Um café como você sabe, no capricho. E… um pão de queijo, desse maior aqui. Ela não é muito bonita. Mas sorri com facilidade. Agrada, de qualquer forma. Talvez eu fosse feliz com ela. Coisas da literatura. Pensando por minha conta, não por conta dela. Sentia um certo conforto em saber que a Jéssica não precisava ler nada do que eu lia, que sua rotina não a derrotava, uma encarnação eficiente de energia e felicidade. Pãozinho de queijo… Estende um pratinho de plástico, forrado com um guardanapo de papel. A cantina não é da Jéssica, explica-se. Ela é a funcionária. Mas claro que fica sendo esse nome para mim, porque ela, com sua simpatia incansável, é a minha melhor referência nesse caso. Talvez ela seja a pessoa mais bacana do mundo. Eu sempre só venho aqui. Não sei quem são os donos, não faço ideia, meus colegas fofoqueiros devem saber, que eles querem saber de tudo o que está em volta, no seu quintal e sob o seu nariz, mas acho que é por isso mesmo que não ultrapassam esse bairrismo limítrofe e continuam indo à igreja. Quanto a mim, não dou a mínima para esse tipo de coisa. Afinal, ninguém pode garantir nada sobre o que vale a pena. Ninguém pode provar nada quanto a esse ponto. Pão de queijo quentinho consistente saboroso enquanto a Jéssica tira o café novo. Escurecia por causa de uma sombra de tormenta. Quase anoitecia antes do tempo. Mas não há nada antes do tempo. Prontinho, professor. No capricho. Ela e eu, o mesmo dia a mesma tarde o mesmo lugar. Depois os ventos viajando desde os estados do sul, e uma ameaça de chuva forte à frente. Todos nós iremos sofrer um processo de desaparição completa. Aconteceu alguma coisa hoje, profe? Pensativo…! Devolvi o sorriso. Não, nada. Por isso mesmo é que ando pensativo. Ou não é nem por isso. Fico brincando de pensar. Umas brincadeiras que são só minhas. Já pensou, Jéssica, que na nossa cabeça ninguém, mas absolutamente ninguém pode entrar? Ela riu, despejando na lixeira uns copos de papel e canudinhos. Ah, mas graças a Deus, credo, já pensou se não fosse assim? Um trovão distante. Olha aí, profe, vem tempo feio hoje. Não sei como que meu marido vai me buscar hoje se chover forte. Ele vem de moto. Coisas da vida de hoje. Todos nós. Um pouco mais à frente. Sempre um pouco mais. Absorto com o café que tomo devagar. Olho o espaço do pátio, céu acima, concordo com ela. Escurecendo mesmo, muito. Menina, não dava pra imaginar isso no começo da tarde, com tanto sol no almoço, não é? Tempo louco, professor. Mas não é nada não, Jess, não tem nada de louco, é assim mesmo, um dia assim, um dia assado… É tudo uma brincadeira. No fundo, é tudo uma grande brincadeira. A Jéssica não ouviu o arremate, que enunciei baixo, e ela estava tirando uns talheres da água fervente, cuidando de suas coisas. Trabalho responsabilidades horários. Não parece uma brincadeira, eu sei. Dia claro, depois escuro, tempestade… Pensei no menino que eu era, brincando à toa, sem saber das desgraças que os adultos faziam acontecer. Meu mundo ainda era maravilhoso. Adorava ver relâmpagos. Sem medo. Nunca um raio daqueles despencaria em cima de mim, jamais seria eu atingido por um golpe assim violento, vindo das alturas, que não valia a pena desperdiçar tanta energia com um menino franzino inofensivo insignificante. Para que me matar? Mesmo certo de estar imune a muitos perigos, só de ser como era, eu já não fazia diferença alguma neste planeta enorme. Mas não me lembro desde quando passei a entender que estávamos todos sob a mira da fuzilaria do tempo, sendo eu um menino sem importância e sendo outras as pessoas mais importantes do mundo. Acho que umas ilustrações e fotos muito antigas me fizeram ver isso, não lembro ao certo. Mas o menino um pouco mais velho, agora com instrução escolar, raciocinava, convicto: se eu não fizer nada, absolutamente nada, tudo irá desaparecer do mesmo jeito. Não há um só rosto que não esteja predisposto a dissolver-se de maneira definitiva. Nem um minuto que não prossiga sem minar cada célula de todos os que ainda vivem. Meus inimigos todos irão desaparecer, assim como aqueles a quem mais admiro. Só os vivos existem. Tudo é um agora, um enquanto. E eu ficava brincando com este meu poder: bastava não fazer nada – nada! –, para que tudo isso acontecesse. Uma brincadeira de nada. Assim como o planeta gira, e não percebemos, avançamos em nossos dias sem intuir que eles, os dias, nos mordem nos mastigam nos põem de joelhos enquanto reagimos, altivos. Livros que lia juvenis aventureiros espionagem e guerra, lema de submarinos de ataque: “Invisível e silencioso, eu trago a morte.”. Dias tranquilos. Seguros. Sugerindo imunidades. Inspirando esperanças. E picam-nos em pedaços. É sério. Inevitável. E sendo assim, não importa o que eu faça. Brinco com meu poder de saber. Brincadeira sem maldade. Não é meu desejo. Não sou o culpado e não posso mudar o final. Inventar algo para mim mesmo não faz sentido. E não me poupará, nem a ninguém, no fim das contas. Fazer a barba assinar um documento voltar para casa. A Jéssica recolhe a xícara o pires o pratinho. Mais alguma coisa? Não. Nada. Muito obrigado por tudo. Imagina, sempre às ordens. Imagino. Sempre às ordens. Consigo olhar esse menino de frente, ouvir sua crítica. Brincando num dia assim? Claro, por que não? É tudo uma brincadeira. Brincando por nada. Brincando de nada. Você parece doente, menino, essa pele pálida essas olheiras, quer que eu o leve ao hospital? Não. Quero saber como continua a história. Quero saber como acaba essa história. É isso, eu sei. Acaba com a minha morte, naturalmente. Encontrar alguém que queira contar uma história. Que saiba criar-lhe uma continuidade. Que possa continuar com ela em sua própria vida. Não importa o quão absurda seja nossa existência, uma história interessante nos faz vivos. Nos torna magos. Gênios. Demônios do bem. Gratidão pela arte. Sempre.

De minha parte, admito que eles premeditaram tudo muito bem. Eu poderia ter me defendido da suspeita de um despropositado affair com a Silvaninha, que afinal, dado seu caráter particular, não poderia constituir motivo formal de minha exclusão do quadro docente. Mas não conseguiria defender-me da digressão. Foi bem pensado, sim. E eu, sempre distraído. Somando tudo à minha súbita indiferença e ao meu real desinteresse por coisas desse tipo, eles me acertaram em cheio. Fiquei como picado por algum inseto que me transmitisse uma paralisia um torpor uma preguiça doentia. Não tinha a menor vontade de me defender. Nenhuma.

A Silvaninha é dessas pessoas que eu poderia ter conhecido numa das festas na Maga. Ela vem de repetidas uniões entre famílias tradicionais que, com esse malabarismo de entendimentos e fusões, acabam se sustentando em sua classe social por mais tempo, talvez para sempre, apesar da incompetência de boa parte dos representantes masculinos, que costuma perder-se em farras que vêm a público e cafajestagens milionárias. Por isso ela tem esses sobrenomes sobrepostos – que afinal não são tantos, reconheço. Quanto mais essas famílias se unem, mais extenso fica o nome completo do ente querido, pois nenhuma das partes quer abrir mão de sua heráldica carcomida, sua marca registrada no mundo, como se isso tudo não fosse relativo ilusório inútil.

Não sou distraído de tudo. Para alguns, posso parecer ocioso e fútil, já que não me interesso por uma boa porção de coisas práticas, mas não é verdade. Mesmo em silêncio, estou sempre fazendo planos. Talvez mesmo por causa do silêncio. E das projeções estranhas maravilhosas ou terríveis que nascem da trama involuntária conduzida às cegas pela floresta iluminada das sinapses. O caso é que esses tais planos não coincidem com o que os meus semelhantes esperam de mim. E que importa isso, se os planos são meus? E essas ideias e esses ideais alheios pouco me atraem, embora não façam de mim um alienado: eu já os considerei e considero a todos, em algum momento e de alguma maneira.

… Musil dizia algo sobre odiar ideais alheios, e Beckett sobre frases pegajosas que chegavam a parecer verdadeiras, só porque todos as repetiam com empenho…

Você está no assento do motorista, seu futuro é você quem delineia. (Não é tão simples. Nem mesmo é isso.) Nada é mais real que nada. O cosmo segue um destino de felicidade. Você já é um vencedor: o espermatozoide que ganhou a corrida. A vida é uma travessia, e nada acontece por acaso. A função do ser humano é ajudar seu semelhante. As coisas todas conspiram a seu favor. Gaivota que se aproveita das correntes de ar. No fundo de sua alma é que mora a sua imortalidade. A verdade tem que ser dita. Tudo tem uma razão de ser. O amor é muito maior do que o universo, porque o amor é infinito. Todo espírito é revestido de bondade, e só pratica alguma maldade quando entra em contato com alguma vibração ruim do cosmo… Incrível, não? Sim: incrível, uma boa palavra nesse caso. (Não também.) Era espantoso que esse tipo de coisa, vazia e sem significado real, pudesse consolar ou motivar alguém. Existem passarinhos verdes, portanto você deve ser feliz. Não correspondem, na realidade, a coisa nenhuma, já que o universo se constitui de espaço tempo matéria e energia, sem qualquer vestígio de personalidade. Mas nisso outra vez se insere a Josie Joss Stone, pronta a libertar-me de tais delírios, já que nada é mais real do que seu rosto real depois de um beijo real.

Na segunda vez em que a Silvaninha me pediu carona, caía uma noite de chuva. Ela, como alguns outros, parada sob a ampla marquise frontal da universidade, me viu chegando, saindo da sala dos professores, guarda-chuva querendo abrir, pegou-me pelo braço, brincalhona e chorosa. Ah, eu estou sem carro de novo. Me leva, me leva com você? Os alunos mais próximos, que esperavam por ali, observavam tudo. Eu também sorri, compactuando com a brincadeira. Claro, amiga. Quer ir comigo, vamos? A Jaque, do atendimento, e o Dema, segurança da entrada, nos viram descer as escadas e desafiar as águas, juntapertadinhos, fortes contra o vento, um guarda-chuva para os dois, ela enlaçando meu braço, tentando andar depressa, sapatos de saltinho, rindo de quase ter resvalado no último degrau um instante atrás. E como um escândalo, mesmo em pequena escala, é sempre um serviço à comunidade, essa foi a semente dos boatos que alegrariam os enrustidos desafetos do reitor e seriam o ponto de partida das próximas más notícias para mim, surgidos da noite para o dia entre o efeito Doppler dos gracejos da Silvaninha e de minhas respostas animadas, passando pelo público ocioso desse fim de noite, seguindo a passos menos desencontrados que os nossos, multiplicando-se num calendário sem números, ecoando entre silêncios furtivos, germinando com as chuvas. Isso foi em setembro.

Projeto esvanecendo-se

11. Um último aceno para nada –  sequência

9. Como contar a ela? – anterior

Guia de leitura

Imagem: Jackson Pollock. Sem título. 1950.

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