Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Como contar a ela?

Certo, ela tinha razão.
Quando estou irritado, estendo mais do que devo o que tenho a dizer, sempre torcendo tudo a meu favor, é claro.

chelsea-james-sylvia-2009-1A Marjorie apenas repetiu a palavra. Digressão – e comprimiu os lábios em seguida, estendendo à frente o inferior mais que o superior, fazendo beiço a alguém invisível, simulando surpresa e admiração. Tudo isso sem olhar para mim. Passando por mim. Digressão… Deu a volta à mesa, sem deixar a garrafa de vinho, que segurava firme na mão esquerda. Faltava o saca-rolhas, pelo jeito. É, digressão. Os alunos alegaram aos coordenadores que eu não me importava em acompanhar a matéria. Digressão. Assim como perversão delação sedição felação, seja lá a porcaria que for. Com esse ar formal e medíocre de alguém anunciando algum tipo de contravenção ou crime. (Como a Marjorie trabalha num escritório de advocacia, ela sabe mais dessas nomenclaturas do que eu.) Eles pareciam satisfeitos com essa coisa toda, assim, como se tivessem chegado a um diagnóstico, entende? Precisava ver como se sentiam inteligentes importantes concludentes, só porque fecharam o processo todo em uma palavra. Deixaram para anunciá-la quase no final da segunda parte da conversa, que eu nem sabia que era uma segunda parte da conversa. Mas eles adoram essas divisões e classificações, como se estivessem articulando um texto, um relatório com subtítulos, um… A Marjorie ergueu e desceu a mão no ar, impaciente, enquanto andava para um lado e outro. Sei, sei, já entendi, não seja exagerado de novo, não precisa complicar mais ainda a coisa toda. Certo, ela tinha razão. Quando estou irritado, estendo mais do que devo o que tenho a dizer, sempre torcendo tudo a meu favor, é claro. Pois é, Marje. Pelo jeito, a primeira parte da conversa eu mal identifiquei, porque no começo ficaram só me enrolando. Digressão, entende? A Marjorie ficou quieta. Talvez estivesse mais irritada do que eu. Mas quieta. Era só esperar que eu falasse, não precisava forçar muito. Imaginei que ela estivesse, além de irritada, chocada com a notícia. Nervosa. Com raiva de mim. Devia estar. Mas fingia tranquilidade normalidade naturalidade. Ela é muito boa nisso. Um autocontrole nojento. “Na primeira parte deste nosso encontro…”, era assim que o Sydney falava, com seus oclinhos de Himmler e seu bigodinho horizontal grisalho, aquela gravatinha antiquada dele com meio-windsor, seu papel à mão, demonstrando sabedoria e calma, imagine a cena. Primeiro me elogiaram, falaram da minha empatia com as turmas da minha pontualidade do meu conhecimento geral e todas essas coisas bestas. Conhecimento geral! E daí? E eles com isso? E disseram que não tinham nenhuma outra, nenhuma outra!, reclamação sobre o meu trabalho. Então, o que eles chamaram de segunda parte da conversa era a parte em que se revelava a única reclamação, pelo jeito gravíssima, que sua análise cuidadosa classificou como… digressão. Dá pra acreditar, Marje? Ela achou o saca-rolhas. Estava na segunda gaveta, mais ou menos escondido. Isso foi de manhã, não foi? Por que não me telefonou? Por que você não me avisou antes? Não queria te incomodar no trabalho, não com uma notícia dessas. Eu fiquei surpreso, claro, mas você sabe como sou prático nessas horas. Alguma coisa emerge em mim e me faz raciocinar em alta velocidade, e isso me torna frio mudo impassível. Aparentemente impassível, você sabe. Saí de lá tranquilo racional inteiro. Isso foi importante, sabe? Minha dignidade. Prático… Ela de novo, repetindo em voz baixa. Forçou a rolha com um último movimento. Não dava nenhum sinal de arrumar a mesa para o lanche. Nem pedia que eu o fizesse. Nenhum de nós estava pensando em comida. Faltava pegar copos. Ou taças. Aquela iria ser uma noite diferente. Escurecida por uma emergência. Limítrofe. Pesada. Isso foi em dezembro.

Projeto esvanecendo-se

10. Por causa de uma noite de chuva – sequência

8. Dias antes, dias depois – anterior

Guia de leitura

Imagem: Chelsea James. Sylvia. 2009.

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