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Projeto esvanecendo-se. Dias antes, dias depois
Para mim, só mais um dia infinito. De não nascer e de não morrer.
Minha vida tinha se tornado estranha ociosa incerta opressiva, mas pela primeira vez interessante. Por causa dela, da Joss Stone. Do que eu julgava ser interessante, aplicada essa qualidade à minha vida, considerando-se todas as fases anteriores, todas extintas, por lógica. A Josie era uma garota, à primeira vista, bem comum. De uma beleza comum. Discreta. Em nada chamativa. A que muitos nem mesmo perceberiam como beleza propriamente. Mas que me obstruía o bom senso e me prendia como uma garra em torno do pescoço. Forçando-me para baixo. Fazendo-me engasgar com as palavras.
… “Hey, did you happen to see the most beautiful girl in the world?” – assim começava uma canção dos anos 1970, cantada por Charlie Rich…
E então, será que já me aconteceu ver a garota mais linda do mundo? E como ela era? Do jeito que eu queria? Quem sabe o que é a coisa mais linda do mundo? Existe para ser vista, está visível? Não seria um grupo de pequenos acordes no momento especial de minha sinfonia predileta? Ou a impressão comovente que me passaram certas palavras, descobertas por acaso, próximas à costura central de um livro ou à margem esquerda de um poema, como frutas colhidas na árvore de um pensamento impróprio? Ou como flores perdidas entre as lajes de pedra úmida de um jardim que (maravilhosamente) não compreendemos? A Josie não é de jeito nenhum a garota mais linda do mundo. Nem mesmo a pessoa mais bonita que conheci. Ela é alguma coisa como as pedras úmidas de minha pretensa sinfonia sem rumo.
Logo em nosso primeiro encontro, contei a ela de como havia perdido o emprego. Sabia? Não, não sabia. É? Que chato. Não sabia. Que aconteceu? Eu me senti muito bem depois de lhe contar a história da minha agourenta demissão, de como fui conduzido assessorado encurralado pelo Sydney pelo Wellington e pela Adelaide, até por fim assinar um termo escrito que eu nem li. Muito bem mesmo. Estranhamente bem. Quase feliz. Isso foi logo no primeiro encontro, não sei se já disse isso, o primeiro encontro mesmo, não considerando aquela tarde de luz e sombra do dia da carona. O primeiro encontro combinado medrosamente entre nuvens, entre meias palavras e subtons. Pode ser? Você me espera? Espero. Quase não nos dizíamos. Quase não nos definíamos. Quase nada combinávamos que não ficasse a meio passo entre nós, de nossos corpos, a meio passo do que se interrompia e continuava entre rostos nervosos em instantes próprios, nós dois desviando discretamente os olhos talvez para nos poupar um pouco da culpa que começava.
… um homem de trinta e quatro anos engasgado com a perspectiva do paraíso. Uma menina perdida. Um casal que ainda não existe. A vibração subterrânea que dará vida aos vulcões. Os pesadelos incipientes. Como nos versos de Keats, lá vão eles, em direção à tormenta…
Quinta-feira, você pode? Vai estar desocupada? Não, na terça. Terça é melhor. Prefiro na terça. Ela estava tensa, contida. Por pouco não tremia. Seus olhos perderam o brilho, e eu os adivinhava cinzentos ou mel escurecido, adivinhava porque mal podia vê-los, que olhavam para baixo mas não para o chão, pareciam paralisados em algum ângulo de uma dimensão suspensa, oscilando para um lado e outro enquanto ela falava, como se estivesse conversando comigo por algum aparelho, munida de fones de ouvido, e sua cabeça não se firmava de frente a mim. No máximo, ela fixava os olhos em alguma parte de meu peito, por pouco tempo, querendo a base do pescoço ou a garganta, mas na prática na verdade no momento seu olhar permanecia ausente. Mais ou menos quando. Está bom assim. Toco duas vezes? Não precisa, eu desço pra abrir. Fui à casa dela. Eu começava a ser feliz.
… você está sob meu domínio… porque quer…
Parecia, sim, que eu começava a ser feliz, como disse. E outras coisas me retornavam, benignas. Minha colega de turma, terceiro ano. Vinte e um, nós dois, e pouco nos sabíamos: rotina de aulas, curso noturno, corredores ao acaso, vidas dispersas, naturalmente sem interesse. Enquanto, então, até um dia quando. Festa improvisada, uma quinta-feira, lembro bem disso. Voltando das férias, retomando o curso. Quinta-feira em agosto. O dia quando. Música alta. Que coincidência, é sua amiga também?! A Vivian: cabelos curtos, corpo consistente reto sem cintura, ombros retraídos um pouco curvados, quase uma corcunda às costas, rosto projetado para frente, inspiradora de pleonasmos, olhos grandes despreocupados, púrpura nas pálpebras, queixo largo levemente prognata, uma garota incrivelmente simpática, sorrindo ou rindo ou fechando o riso e o sorriso, que continuavam por trás de seus lábios finos e longos, seu natural. É sim, e o amigo dela, aquele ali, é meu primo em segundo grau, meio-primo, sabe?! Ah! Legal! Música alta, é preciso falar rente ao ouvido. Sorte minha encontrar você aqui! Vodca, cuba-libre. Sorte minha então, você está linda! Cuba-libre, vodca. Música alta. Brigada! E você é um aluno foda, fiquei sabendo! Ah, não sou não! Ando meio decadente em tudo! E… e… Provas na semana que vem, falta de assunto, é isso sempre para ele, essas conversas de escola, essas coisas chatas que-ele-mais-tem, não é mesmo? Mas ela é proativa, vem, vamos dançar. Música alta, álcool. Beijos. Outro lugar? Vamos sim. Tá de carro? Meu Chevette, aqui perto. Eu sempre ansioso sempre hesitante cético quanto a mim mesmo sempre, temia não acertar o caminho do motel. Não acertei. Encontrei outro lugar, mais caro, não importa. Hidromassagem. Quanto tempo? Tempo? Não sei. Ela ria, alta. Música alta em seu rosto aberto. Vivian, se alguém na faculdade souber disso… Ahahah não ninguém vai saber ninguém pode saber. Nem os professores, promete? Ahahah… Que bobo! Não nunca mas deus do céu como aquela cuba tava boa amigo… Sim, uma bela suíte. Não quero saber de controlar essas lâmpadas luzes spots aí, não vou saber. Não quero saber de nada agora. Está se sentindo livre, não é? Livre! E toda a força fácil da juventude, ereção incontrolável, peitinhos cheios firmes, dilatação perfeita, harmonia cósmica, quanto tempo?, não sei, o mundo é lindo.
… cético, precisa aprender a confiar um pouco mais em si mesmo, essas coisas podem acontecer, e é assim mesmo que muitas vezes acontecem, porque existem pessoas como ela, espertas independentes livres, e a Igreja não pode controlar tudo…
Sem forças, realizado e pleno, outra vez sob meias-luzes artificiais, aproxima-se dela na banheira larga, miniatura de piscina cavada em alvenaria, um degrau acima do piso. Ela sorri tranquila, imersa junto a um dos vértices, só o rosto à tona, água morna em movimento. Retorno-lhe o sorriso, minha gratidão não tem preço. Entro na banheira, escorrego suave, estamos à mesma altura à mesma idade, não à mesma frequência. Viv, você é linda e me faz sonhar. Tapa na superfície agitada, água em meu rosto. Não leva isso muito a sério não, colega. Outro sorriso de fascínio absurdo, tão natural tão comum tão breve. Brincadeiras. Uma palavra deflagrada em cheio, e essa garota sorri e ri e sorri. Inclina o rosto, encosta a cabeça em meu ombro. Em meu ombro, parte do corpo, junto a mim. Ela não é linda como querem: ela é linda como eu quero. Não leve a sério. Essa água se move, esse tempo foge. Sua cabeça inclinada em meu ombro, seu sorriso retido à minha sombra, desaparecendo suave. Por que não seria esse momento, e não qualquer outro da meia hora anterior, atravessada de fúria fogo fome e testes de fôlego, mas esse agora, de seu rosto buscando apoio em mim enquanto se perde e se dilui seu sorriso, enquanto seu nome flutua por trás de meus olhos fechados, mais a minha memória de sua nudez nas sombras, por que não seria esse momento, de nossa sexualidade vencida, de minha virilidade ausente, de sua feminilidade suspensa, o mais feliz de toda a minha vida?
Mas eu não podia agora ficar revivendo coisas boas e mágicas, ou minha situação atual, por lógica simples de comparação, iria parecer sempre pior. Até desconfiava que lembranças quase sólidas como essa com a Vivian deviam agitar-se entre a pressão suave de águas mornas sob meus pensamentos hesitantes – e vinham à tona para respirar, compensando algum surdo sintoma de desordem.
Depois que fui demitido, voltando da universidade, entrei em meu escritório e lancei mansamente os olhos sobre os livros abertos as apostilas as cópias xerográficas as lapiseiras marca-textos encadernações de plástico canetas brochuras velhas brochuras novas grampeador potinho de clipes, tudo me pareceu angustiante e cansativo. Deixei no chão minha pasta negra de alça minha quase maleta disforme minha magra mochila que costumava usar a tiracolo, deixei-a no chão ao meu lado ali mesmo. Todo dia nasce alguém. Este dia é o primeiro dia de alguém. Todo dia alguém faz aniversário, o que não muda nada. Todo dia morre alguém. Este, ainda em curso, é o último dia de alguém. Para mim, só mais um dia infinito. De não nascer e de não morrer. Perdi meu emprego, que todos já consideravam pouco, mesmo que nunca tenham dito isso diretamente, porque essa gente que conheço não diz nada diretamente. Essa gente quem? Vamos, vamos. Não fique aí parado, bancando o ultrarromântico. Não queira ser o herói da depressão. Isso tudo aí, esses objetos tão úteis e papéis em todos os formatos, isso que o incomoda neste momento nesta hora neste dia pode não ser mais do que um amontoado meio solene de intelectualidade capenga. De pretenso profissionalismo acomodado. Como nos versos de Leopardi, filhotes de morcego escondidos nas ruínas. Isso tudo pode ser apenas os restos de inúmeros trabalhos pelos quais você, bem ou mal, já foi pago. Isso tudo pode ser um discreto esmaecido desnecessário monte de lixo. Um lixo.
Nossa vida pessoal não tem importância – porque irá desaparecer. Nossa rotina e os compromissos e os afazeres vão se dispersando de um dia para outro. E todos esses dias, a cada viagem da lua, vão desaparecendo para nós. Depois, desaparecendo de vez. Objetivamente. Sem nós aqui a passar por eles, tentando retê-los, e à sua inutilidade, na memória fraca e fantasiosa. É claro. Um dia, perderemos todos os dias. Sorrindo em paz ou em sobressalto. Com um tiro, sem se dar conta – ou acertadas todas as contas. O fluir da música predileta ou o furioso ataque do vulcão. Hora de se entregar, sem mais. Sem mas. Mas você, mas você que não compreende, que se supõe uma pessoa e tanto, tenta resistir, resistir assim mesmo, sem o menor traço de sabedoria, guerreiro cósmico, bancando o herói: que mérito há nisso? Então o quê? E daí? Daí que deveríamos pensar em coisas maiores do que nós, como os sucessivos legados da arte e da ciência, então alguma coisa faria melhor sentido se todos nós… Ah, mas não é nada disso. Ah, mas nós quem, nós o quê? Que me importa também? Foda-se isso.
… Emil Cioran, ao ouvir de jornalistas sobre sua mãe ter dito que, se soubesse que ele seria tão pessimista, teria abortado, sorriu: mas se tudo é aleatório, que diferença isso faz?…
O que me oprimia no momento, entre obscuros impulsos de não querer, era minha antiga e nunca definida relação com os objetos. Mirando sem rumo um ou outro item por ali, senti mais uma vez aquele leve mas recorrente incômodo da posse e da perda. Pensava nas tribos, no que carregavam. Não haver muito a que se apegar, poucos haveres. Um lugar específico uma casa um terreno demarcado. Coisas grandes. Coisas pequenas. Objetos que amei e perdi. Pessoas que passaram por minha gratidão tardia. Os gibis que se extraviaram depois de brilharem vivos sob meu triste fascínio. Meu relógio e umas moedas. A noite passa por todos.
Toquei uma caneta verde. Depois, um peso de acrílico. Um estilete. Estou sujo de sangue, mas não o bastante. São crises breves, creio. Forças fracas. Sempre me defendi, de uma forma ou de outra, eu me recordo muito bem. Recordo tudo muito bem. Colecionador involuntário. Como se catalogasse o que foi meu: amuleto da sorte, bússola de bolso, lupa de aro negro, miniglobo medieval, figurinhas de astronautas… – itens que moravam em meu quarto, pontuados em fases distintas, trincados por microtraumas. Associações inevitáveis. No fim, só a minha história é uma história. Porque foi real. Porque eu sei do que foi. Outras são imaginadas, contadas. A outra é imaginada. Nomes-números para não esquecer. Ninguém sabe como foi. Como era a voz de alguém, o que foi dito de fato, que cheiro tinha seu suor, seu hálito. Trajetórias absurdas, individuais ou coletivas, fracassadas ou triunfantes, quase sempre orientadas por horrores. Só a minha história vale a pena, nenhuma outra. As outras nos chegam em código. Tradução da narrativa. Interpretação do registro. E a história-pesadelo da qual o professor Stephen pretendia libertar-se não é senão mais uma memória tenebrosa de armadas vencidas e mínimos momentos de ilusão. Patriotismo e cinzas molhadas. Em minha pequena vida, meus crimes de criança todos prescreveram. Jamais confessados ao padre rouco, em seu nicho escuro. O tempo os cobriu de areia e pedras. Eu não fiz nada.
… se Chardin estiver certo, e o valor das coisas depender da complexidade delas, critério segundo o qual uma bactéria vale mais do que um cometa, a vida de determinada pessoa, por mais medíocre que seja, pode mostrar-se mais curiosa e mais importante do que a história de um país…
E minhas ilusões de menino caídas por terra, hoje menos que cinzas, e minhas crenças adolescentes queimadas até o chão, incineradas até o pó, processadas por alguma alquimia invisível, fervendo lenta por trás de meus olhos, e minhas jovens ambições imberbes carregadas água abaixo, arrastadas pelas primeiras chuvas torrenciais, antes que minhas últimas proposições adultas se evaporassem no ar, raptadas por ventos invencíveis. Destruídas por todas as forças da natureza. Acabou como era de ser. Como tinha de acabar. Reciclagem necessária. Terrra. Fogoo. Águua. Aar. Línguas que serão outras. Tempo e química. Todos nós, em processo: continuidade e cansaço. Minhas palavras, uma vez claras, também condenadas. Olhei o espaço aberto ao redor. Pensei no menino acariciando pequenos animais, cuidando de seu bem para sempre. Um dia seco, de baixa umidade. Caminhar me pareceu difícil.
Ainda adolescente, movido por aquele fascinante instinto enciclopédico de querer saber tudo, eu não conseguia esquecer o que pouco ou muito vivera até então, um passado tão próximo, considerando-se o que eu julgava definitivo e eterno. Tempo em que eu pensava comer mingau de aveia a vida toda. E queria entrar para a Marinha. Queria ser detetive. Queria fazer sozinho um filme inteiro de desenho animado. Queria ser independente e nunca, jamais namorar. Queria ser um dos Beatles. Queria não crescer muito, para que meu pai pudesse continuar me transportando sobre os ombros, a mostrar-me coisas mais altas, como a luzinha vermelha da torre, no bairro distante onde minha tia querida morava. Queria que meu pai nunca morresse. Minhas recordações de primeira infância, aquela fase remota, a um tempo nítida e perdida entre alusões oníricas, já foram todas revistas revividas exploradas por minha curiosidade incessante e inata. Certas situações havia que me eram contadas pelos adultos, e não se encontravam entre minhas lembranças próprias. Mesmo assim, de minha parte, caso não haja um flash quase miraculoso, iluminando algo inteiramente novo, posso dizer que, em relação à minha primeira infância profunda, já se encerraram todas as possibilidades – e dela tenho minha obra completa.
Enquanto eu corria e andava, um hábito que passou a ocupar-me principalmente agora que o tempo se mostrava meu amigo, enquanto me deslocava pelas ruas calmas silenciosas semidesertas, pouco habitadas, de nosso bairro, em meio à manhã ou à tarde, sofria levemente com a ideia de ter sido passado para trás, quase num instante, por causa de um… de uma… Enfim, tinha a impressão de que qualquer movimento contra mim soava como um retrocesso um atraso uma interrupção na continuidade de todas as ideias que eu passava a dezenas centenas de alunos quase todos os dias, ano após ano, como um indefinido e não declarado projeto em andamento, uma contribuição cotidiana que influenciasse, como tantos gérmens de outras ideias que construíram a civilização, a própria civilização.
Mas isso eu via hoje que era algo tão vago e mal delineado, tão pretensioso e ridículo, embora carregado de boas intenções, que acabaria mesmo, independentemente do desfecho que me excluíra, também de maneira muito civilizada, do quadro docente. Acabaria mesmo, eu dizia, esvanecendo-se por si próprio, sendo minha confusa impressão de meu destino recente algo semelhante àquela história do nó górdio, em que a lâmina afiada de um conquistador decidido eliminava de uma só vez um processo aparentemente intrincado que, no fim e na prática, certamente não iria dar em nada. E só servia para alimentar, enquanto transcorria, a autoilusão de seu agente, eu, de quem a humanidade dependia para ser melhor, algo que a Silvaninha, por exemplo, jamais iria entender ou, pelo menos, considerar válido.
Sofria levemente, eu disse antes, porque no fundo eu me reconhecia aliviado. E livre. Só não esperava que, em tão pouco tempo, a simples memória do que eu vivera até há umas recentes mudanças de lua me causasse tal aversão e me inspirasse esse prazeroso escapismo, uma espécie de fuga discreta e cada vez mais palpável consolidada tentadora perigosa. Para alguém que se supõe inteligente, não há nada mais ofensivo e humilhante do que se reconhecer encurralado (ou mesmo arruinado) por um golpe frágil do acaso, algo que, sendo tão pouco, consolidando uma conjunção medíocre de circunstâncias, poderia ter passado ao largo, como nuvens, como passaram, tão rápido, os dias em allegro ma non troppo da boataria infundada e da surda falação maliciosa, as caronas para a Silvaninha e a temporada de chuvas.
… penso às vezes de maneira um pouco dispersa, é a minha natureza nervosa, a minha ansiedade adormecida, o que parece ser um problema. Mas não é. Não sinto que seja. Talvez, para outros. Minha falta de método. Foco. Prioridades. E a minha velha conhecida criticada digressão…
Mas, Juan, como é possível, em tão pouco tempo, eu sentir essa aversão quase tóxica ao que fazia antes? Alguns meses… Algumas poucas semanas, se pensarmos assim. E eu não sei como fui capaz de ter feito tudo aquilo que fazia, como fazia, pelo tempo que fiz, envolvido com as aulas, com os alunos… Parece que, a partir de um dia qualquer, uma noite qualquer, sem sinais e sem presságios, os próprios dias se tornaram insuficientes para mim, e desse dia-noite em diante parece que nada mais não mais nunca mais será suficiente. Um pouco opressivo sim, admito. É como se eu próprio tivesse chegado ao fim nesse dia. Nessa noite sem lua. Só não consigo descobrir quando, qual. Não, mas evidentemente não é o dia da minha demissão, da conclusão de toda aquela farsa. Não, não. Isso veio depois, bem depois. Eu me sinto essencialmente bom, entende? Um homem naturalmente bom. Sempre me senti assim. Tento entender isso até hoje. Penso que a seleção natural, não sei, ou mesmo a artificialidade da construção das comunidades organizadas, nos foi tornando bons porque as perversidades se mostraram prejudiciais à nossa sobrevivência como grupo. A maldade pode servir para manter o poder de alguns, mas, para o resto do grupo, só causa sofrimentos. Quando era menino, ocorreu-me uma fórmula simples: a maldade não é boa. A maldade não é boa. Já pensou nisso? Parece engraçado hoje, sei. Mas aos doze anos eu me sentia um pequeno filósofo por ter ideias assim. Eu também, também acho engraçado, sério. Ainda bem que nunca escrevi nada, imagine, seria uma vergonha. O primeiro voltairiano de plantão, com sua inteligência sua perspicácia seu ressentimento seu poder de sátira e na escolha das palavras mais corrosivas, teria me esmagado. Não importa, claro. Não importa o que digam sobre o que pensei, sobre o que penso, sobre o que eu nunca escrevi. Nunca gostei de ver maldades, nem mesmo no cinema. Não gosto de trapaças, de injustiças. Por isso eu sempre tive alguma dificuldade em compreender o que acontece no mundo. Mas eu penso que não é só porque aprendi a ser assim, nem sei se aprendi a ser assim ou se isso já tinha força, por si só, para crescer comigo, circulando em meu sangue, já que sempre fui propenso a me arrepiar de tristeza só de saber sobre algum sofrimento, não meu, entende?, mas de alguém mais, de um animal que fosse. E então? Tudo que reconheço de bom em mim não serve para nada? Pode até ser motivo de gozação para os outros? Uma esperança equivocada que me alimenta, com a ilusão de valor?
Circunstancial. O fato de eu ser casado com a Marjorie, de eu ter um caso com a Josie, de conhecer bem ou mal esta e aquela pessoa, colegas professores e uma diversidade de alunos, isso tudo seria algo parecido em qualquer lugar, com qualquer outro como eu como eles como elas. O que conta é essa curiosidade ativa, que sobrevoa toda a teia da circunstância, se desprende dos hábitos e quer ser forte, decifrar tudo. Que ultrapassa tudo o que eu próprio, bom aluno, havia calculado antes. Que tenta assimilar esses tantos tipos físicos repetindo-se por combinações genéticas, todos produtos de desejos também repetitivos recorrentes reincidentes, como pássaros infestando as árvores as alamedas as alvoradas, gorjeando grasnando gritando, essas vozes todas, incontidas e intensas, formando, com a interação de suas famílias, espécies e subespécies, atravessando o tempo espargindo vaidades e ecos de inconfessáveis desejos criminosos.
Até então, como dizia, eu saía de casa motivado entusiasmado bem-humorado, para as aulas da noite, mesmo as mais cansativas, inclusive, enfim, eu… eu… Será que meu inconsciente se transformou tão rápido? Meu inconsciente mudou, Juan? Isso pode acontecer assim, como se eu mudasse de ideia ou de… ou de…? Seu rosto bonito largo pensativo, com olheiras, quase sorriu de minha ignorância. Não sorriu, e passou a explicar-me algo melhor. Não, não é assim. O inconsciente não se transforma rápido, não é assim. Ele tem propriedades plásticas, de adaptação, sim. Mas você era guiado por seu subconsciente. Alguns processos partem do subconsciente, não do inconsciente. Músicos como Beethoven e Brahms eram movidos por seus subconscientes. É mesmo? Como o doutor Stabile sabe disso, eu não sei. E os outros músicos, são movidos pelo quê? Sei, sei: hoje todos ganham dinheiro, não importa. Não argumentei, não disse nada. Também não queria entrar nessas conversas específicas, apoiava a lateral da testa na mão direita e me sentia abatido, exausto. E aqueles fantasmas das cortinas imóveis tinham ido embora. Comentei com ele algo sobre Hamlet, sobre o Hamlet ter perdido, em tão pouco tempo, o interesse em retomar o trono, em definir sua posição política pessoal premente, enfim… Como foi que isso aconteceu, Juan? Por quê? Ele me considerou por um instante sólido, um breve silêncio espesso, essa a impressão que eu tive. Talvez Hamlet nunca tenha tido real interesse em ser o que era, com sua condição de príncipe herdeiro. Os assassinos o surpreenderam, e ele então se viu forçado a assumir uma posição que nunca deve ter sido, nem de longe, seu principal interesse, se é que ele tinha algum interesse especial. As questões envolvendo a existência humana adquiriram proporções absurdas em seu psiquismo. Ahn. Sei… Eu gosto desses momentos com o doutor Stabile, sei que ele é culto, deve ter sido um menino estudioso, consegue me acompanhar. Só que, de qualquer maneira e como já disse antes, em meio a isso tudo, eu evitava ao máximo confessar a ele meus encontros com a Josie, porque havia prometido a ela e a mim mesmo que ninguém nunca jamais ninguém nunca saberia sobre nós – que iludido eu era, como isso parecia fácil. O fato é que eu não conseguia evocar uma só ideia ou imagem que não fosse respaldada alicerçada espelhada por algum elemento da literatura. Era o que eu fazia de novo, mais uma vez, sim, mais uma vez, eu disse, em meio a essa tarde silenciosa. (Em outra sessão, ele me fez atinar com esse aspecto, esse ponto vulnerável de minha ansiedade curiosa: associar tudo à literatura.) Real interesse. Principal, príncipe. Eu já estava brincando com as palavras outra vez, em meu… subconsciente?
A Marjorie chegou do trabalho. Ouvi o carro, o crepitar dos cascalhos lá fora. Porta do carro. Porta da casa. Eu de camiseta bermuda descalço. Nessa minha camiseta escura, lia-se em letras brancas: “You are your only limit”, de quando eu achava isso bonito, coisas de ciladas motivadoras da new age, que já definhava entre as gerações finisseculares dos anos 1990, passado outro ciclo fascinante de ingenuidades e vibrações coletivas, coisas esmaecidas que já não me serviam bem quando ainda eram coradas – e que agora, definitivamente, não me servem mais. Normalmente, nesse horário, eu estava pronto para comer algo com a Marje, antes de sair para as aulas noturnas.
… para o historiador Michel Pastoureau, coisas como a estrutura do dia, o ritmo do tempo e das cidades, tomaram forma durante a Idade Média. Muito de nosso cotidiano ainda é medieval, e não o percebemos claramente. Ele tem razão. Eu só odeio saber disso…
Os olhinhos escuros dela, os olhinhos cor de amora inquietos vivos despertos perguntavam. Ela estava de cabelos presos, repartidos ao meio, uns fios de franja em intervalos bem planejados. Um fundo mínimo de arrogância feminina sempre exerceu algum tipo de poder erótico sobre mim. Eu o reconhecia imediatamente. Não adianta, eu sempre me sinto atraído por ela, não consigo detestá-la completamente. Como isso não é recíproco, ela é livre para me detestar, como tantas vezes percebo. Um mínimo oscilar de seu queixo já demandava qualquer explicação. Seu rosto rígido bonito simétrico à minha frente. O momento de um desenho animado em que o personagem move a cabeça para um lado e outro – no caso dela, em um tempo invisível imperceptível: um movimento irrisório sutil pequeno. Sua expressão se fez meiga, eu sei que ela gosta de bancar a mocinha silenciosa, como se não percebesse o efeito que causa, um leve ar de surpresa inocente, como ela usou quase o tempo todo quando lhe apresentei o Nilson del Lama, quando nos reunimos e bebemos pela primeira vez – rapaz, como eu adoro isso nela. Quase aceito a rendição imediata, um masoquista indolente. Fui demitido, Marje. Ela quase riu. Parou, com o rosto a meio gesto, sustentando a imobilidade, como naquelas fotos de pessoas rindo com a boca aberta, as arcadas dentárias distantes uma da outra, piscou os olhos três ou quatro vezes, sem se mover. Sério? Moveu-se. Passou por mim como sempre faz nessa hora. Deixou a bolsa sobre o sofá. Seus sapatos de salto ecoavam discretos em nosso piso frio enquanto ela passava à cozinha, sem sair de minha vista. Vai, pelo menos, me dizer por quê? Fui até a copa, em seu rastro, fronteira com a cozinha, não passei dali. Encostei-me à parede. Será que ela não pode dispensar essas ironias bobas numa hora assim? Pelo menos! Por que isso? Por que ela faz isso? Abriu um armário, fechou. Abriu uma gaveta, fechou. Eu não me dispunha a perguntar o que ela estaria procurando. Essa movimentação toda era um disfarce. Mas ela não parecia alterada – era a Marjorie de sempre, calibrada, sob ótimo controle. Nesse dia, agora sem as aulas, eu não tinha pressa alguma em lanchar. E ela não tinha mais que sair de casa. Por isso eu não tinha me adiantado com a preparação da mesa do lanche, pratos talheres bebidas e tudo. Podíamos ter tido um final de tarde tranquilo sem horários sem agendas sem pressa, como já disse, eu sei que já disse. Mas não sabia o que esperar dela nessa noite. Além disso, essa não era uma noite qualquer, ilustrada por uma notícia qualquer. Era o arremate arrepiante de meses de conversas sem as ações correspondentes. Planos mal alinhavados, expectativas dela tendo-me como protagonista, sempre suavemente frustradas por algum sopro cotidiano que continuava. Voltou à copa com um vinho tinto. Vamos comemorar alguma coisa, Marje? Claro que não. O outro acabou, não viu? Joguei a garrafa hoje, depois do almoço. Ah, sei. É verdade. Vai me contar ou não? O que aconteceu? Ela não me olhava de frente. Olhava para baixo e para os lados, aquele tom de estar procurando alguma coisa, de ter se esquecido de alguma coisa. Fui acusado de digressão.
Projeto esvanecendo-se
9. Como contar a ela? – sequência
7. Das coisas todas – anterior
Imagem: Mark Rothko. Sem título (detalhe inferior). 1946.
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Uma resposta para “Projeto esvanecendo-se. Dias antes, dias depois”
Mais uma palavra que eu ainda não conhecia: Digressão.
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