Seu carrinho está vazio no momento!
Projeto esvanecendo-se. Uma garota como outras – só que não
Eu mesmo não sabia ao certo o que era.
… associando situações reais com minha memória de livros, com imagens míticas que eu guardava sem querer, revia os cabelos cor de areia da Josie e punha em seus lábios em sua boca as palavras da feiticeira nórdica dizendo que a noite caía, que não havia mais luz, e que eu não saberia mais como voltar…
Uma garota como a Joss Stone não vem sem um preço. Mas afinal qual é o preço? A erupção do Krakatoa em minha vida? Uma revelação de grau 9 na escala Richter? O efeito Doppler traumatizante de uma ruidosa locomotiva cortando o tempo? E daí? Nada é tão drástico quanto parece. Nada é tão dramático quanto parece. Todos superam tudo. Não é nenhuma tragédia. Nem conquistas fáceis nem derrotas definitivas. Chega a ser até bom assim. Mesmo que nem sempre a gente saia ileso de certas situações, dessas que eu classifico, em meu pobre silêncio, como aventuras. Só porque é um segredo, é uma aventura? Que tipo de medo dá início a esses equívocos mal pensados? Uma garota assim em minha vida, e então? Enfim, qual será o preço?
Eu não a chamo pessoalmente de Joss Stone, é claro. Isso é por minha conta. Já disse que não posso revelar seu nome, obviamente. Josie é o apelido mais conveniente adequado simples e belo para ela. Foi o que ela mesma me passou entre as primeiras conversas, naquele dia de nuvens, quando lhe dei carona a partir do ponto do Jardim Zara, o ponto zero de toda esta preocupante e excitante situação em curso. Josie. Pode me chamar de Josie. Mas parecia inevitável que, alguma vez, em outro encontro, um tom a mais de intimidade, eu lhe dissesse isso, que percebia nela uma forte semelhança física com a tal cantora de Dover. Você me lembra aquela cantora, a Joss Stone, conhece? Ela quase riu. Uau! Claro que conheço. Nossa, ela é linda. Imagina, e eu aqui, com essa voz meio essa que eu tenho. E eu meio baixinha, precisando de um salto só pra não passar despercebida na rua…
… Machado de Assis acreditava que uma mulher bonita sabia que era bonita não pela maneira como as outras mulheres a consideravam, mas porque a própria beleza lhe provia acesso a essa constatação, algo como um instinto, e o comparava ao talento e ao gênio – o que, para mim, praticamente, dá na mesma…
A Josie não se importa muito com esse tipo de coisa. Reage com bom humor a esses elogios e aproximações que me chegam aos olhos de um momento para outro, sem que eu precise raciocinar muito. Isso me cativou decisivamente, essa sua falta de vaidade além do aceitável, tão incomum em tantas mulheres, essa sua simplicidade em considerar a si mesma uma garota como outras, sem sinais de inveja ou de preocupação com o que esperam dela. Ela parece não invejar ninguém. Nunca vi a mínima sugestão disso nela. Fica contida em si mesma, naturalmente. Precisa trabalhar para se sustentar, para viver, só isso. Quando pensa em cursar uma faculdade ou qualificar-se em algum curso, é só porque nos cercam o tempo todo com essas pseudonecessidades inerciais, sobre as quais nem teríamos pensado espontaneamente. No fundo, não é o que ela quer, não é o que queremos de verdade. No fundo, o que nós queremos é cantar.
Você se parece com ela sim. Não é? Seus cabelos, seus olhos estreitos, essas covinhas aí. (Eu mesmo não sabia ao certo o que era – estava tremendo.) E a sua voz é um pouco grave, admita. Ligeiramente grave, como a dela. Não é? Ah, lindo, que bom que gosta assim. Ficou assim de um problema que eu tive quando era menina. Na traqueia, aqui. Fiquei até internada, acredita? Essa rouquidão sutil, quase imperceptível, a não ser em alguns breves pontos rascantes da entonação de sua fala, em nada afeta sua feminilidade, além de tornar sua voz meiga medida modulada algo singular, que agrada à memória. Dependendo do que ela diz, acrescenta-se uma nota desafinada ao final da frase. Pega pra mim, naquela porta do armário, o filtro de papel? Sua voz parece subir de alguma parte do peito e mudar de tom na laringe. Poderia jurar que se forma, não sei como, antes de chegar às cordas vocais. Eu sei, eu sei que não é assim que funciona, mas é essa a impressão que me toca. É verdade, fico tocado com uma coisa dessas. Uma coisa tão simples. Mas tão humana – no caso, tão naturalmente feminina. Uma das coisas que-ela-mais-tem. Nas sombras de minha tosca masculinidade, alguma coisa responde como um rugido abafado a essa provocação inocente. Não sei se outros homens valorizam esses aspectos mais ou menos singulares em uma mulher ou sentem com isso algum leve arrepio de desejo se desdobrando, algum fio de atração escapando no ar, motivado por uma voz, umas palavras faladas, alguma entonação característica. Mas eu sim. Percebo a força de uma confusão erótica adormecida em minhas entranhas. Vontade de rosnar de prazer.
Chego a pensar que, se observássemos com atenção a voz de alguém, sua maneira de falar, conheceríamos mais acertadamente seu verdadeiro caráter. Josie, eu adoro a sua voz. Ela fica na minha memória. É uma coisa importante, não sei como. Ela volta em mim. Ela me acompanha enquanto eu ando. A Josie me afaga um lado do rosto. Ah, mas você é um doce, viu? Onde é que você tava que não me achou antes? A gente se via lá no consultório, por que a gente não se enxergava? Toco o rosto dela lateralmente, levando o polegar ao cantinho de sua boca, perto das covinhas. Não consigo parar de olhar a sua boca, puxa, como você é linda… Um sorriso. Ela sorri. Você é muito linda… Continuo mentindo enquanto entendo estar confessando a verdade. Agora, além de um sorriso, um suspiro repentino: desses que precedem uma breve risada ou uma palavra solta, como se soltasse o ar após um breve mergulho. A-ham… Baixa um pouco a cabeça, volta: olhos cintilantes, claramente agradecida. Mas ela não ri. Não diz nada além desse lento “a-ham”, como quando emite aquele seu “um-hum”. E é só isso mesmo: o retorno do mergulho.
Mas o que é que eu estava fazendo? Já não bastava a situação em si mesma? Já não bastava a Josie como era, sua proximidade de tirar o fôlego? E eu me confessando ridiculamente. Piorando tudo.
… Coetzee também me disse, de maneira simples, em um contexto envolvendo mulheres, que, se você começou a cair, não há muita coisa que possa deter essa queda. Mas, sinceramente, não me lembro agora, não tenho certeza se o contexto envolvia mulheres. Pode ser um daqueles casos em que a memória seletiva toma a frente e decide por nós…
Preciso falar de meu envolvimento com ela, com a Joss Stone. Preciso falar sobre ela e sobre mim. Eu: estando com ela. Preciso falar de mim, com ela. Inspirado por essa nova percepção de mim mesmo. Assim como os ipês florescem violentamente ao toque de um inverno súbito, eu também, sob a ameaça de ventos novos e estranhos, disparava ideias desesperadas entre sinapses, buscando alguma chance ansiosa de sobrevivência: rápido assustado urgente. Instintivo e mal direcionado. Era assim que eu sentia estar Assim como os ipês florescem violentamente ao toque de um inverno súbito, eu também, sob a ameaça de ventos novos e estranhos, disparava ideias desesperadas entre sinapses, buscando alguma chance ansiosa de sobrevivência: rápido assustado urgente. Instintivo e mal direcionado. Era assim que eu sentia estar me agarrando a ela. Talvez superasse o inverno, de alguma forma. Só não alcançava florir.
Lembrando sempre que não sou inocente, nunca fui. Nos filmes nas séries nas telenovelas, quando acontecem coisas assim, o protagonista é mais ou menos inocentado justificado compreendido perdoado, ou porque a amante o seduziu irresistivelmente ou porque ele não se dava bem em seu casamento ou porque estava bêbado ou porque sua solidão se fazia insuportável ou… – enfim, os roteiristas sempre dão um jeito. Eu não. Não tenho nenhuma justificativa a meu favor. A Josie não me provocou muito. Eu e a Marjorie não íamos tão mal assim, quando isso começou – coisas de vida a dois, nada sério. E eu sempre fui acostumado à minha solidão, que nessa fase não era tão incômoda. O que me aconteceu foi uma vontade muito forte de experimentar a vida. Diferentes riscos. Clandestinidade. Desobediência civil.
Minha imaginação influenciável projetava a Josie como uma antiga jovem guerreira chegando para libertar-me. Uma guerreira pequena e atrevida, agora ironicamente capturada, uma camponesa encardida empunhando armas, ela e sua espada ou seu tridente ou seu martelo destruindo arrebentando fragmentando tudo o que se havia acumulado em minha formação honesta, e essas imagens vibravam por um instante, não eram ideias elaboradas, prontas a deflagrar uma narrativa qualquer, eram impressões rápidas, inspirações esquivas, como se outro pensasse por mim e tomasse a frente, propondo chances imprevistas em estado bruto, criando fascínios para destruir-me. Todas as obrigações que nos regem e nos oprimem até o dia de nossa morte, e mesmo os princípios rígidos, detestáveis, que regem também a nossa morte, a partir de uma hierarquia invisível impalpável implausível absurda, pareciam esfacelar-se ali. Eu conduzia o corpinho estreito de minha parceira secreta, pequeno alcançável real, pela cintura pelas ancas pelos quadris, então, num último impulso, incentivado pela estética de uma visão estonteante logo abaixo, meu pau enrijecido insaciável extremo enfiava-se por inteiro na bocetinha firme da Joss Stone, da minha Josie, sua bundinha a pressionar-me as virilhas, tudo isso perfazendo um rito completando um ciclo definindo uma era geológica de minha biografia inútil, que fascínio terrível é libertar-se da civilização, que risco prazeroso e atraente, que grito gratificante em nome de nossa natureza bruta!
Eu sei que disponho de algo selvagem em mim mesmo, embora pareça uma pessoa séria. Mas suspeito que todos sejam assim. Não sei. Talvez não todos. Uns agressivos, outros apáticos. Sei, eu nunca poderia dizer isso a ela. Nem à Marjorie. Nem ao doutor Stabile. Muito menos aos meus colegas ou aos meus ex-alunos, programados em massa para exercer a cidadania e a civilização. Não poderia dizer isso a ninguém. Fodam-se. Não vou dizer a ninguém. Fodam-se todos.
E embora eu mesmo não considerasse exagerado o que disse, quando disse, agora, tão pouco depois, gravadas em memória recente, essas minhas palavras soavam quase patéticas. Talvez patéticas mesmo. Seus cabelos, seus olhos estreitos, essas covinhas aí. Não, eu não tenho pena de mim, não mesmo, e não me concedo nenhuma isenção. Não me importaria dizer palavras patéticas, remetendo às minhas próprias, mas creio, a bem da verdade, que não chegaram a tanto, basta lembrar. Enfim, que diferença faz? Cabelos, mas que história é essa? – cabelos podem ser mudados coloridos descoloridos. Mas foi o que eu disse, estava dito, e era o que era quando eu disse e pensei nisso. Eu não sabia ao certo o que era. E sendo sincero, até me esqueci do que estava pensando. Coisas que desaparecem fácil. Mesmo assim, estava convicto de que, no conjunto, a Josie era uma espécie de irmã mais nova da Joss Stone, com trejeitos específicos e sorrisos pequenos. E não que isso mudasse alguma coisa para mim. Ela me atraía do mesmo jeito. Era só uma observação. Natural. Instintiva. Platão associava a recordação ao amor. Mas há muito erotismo nisso, há muito de sensualidade e sexo em minha memória, entre os pontos que mais valem recordar resgatar reviver. E ela, a Josie, passava a ser, em minha mente cansada, uma espécie de estrela próxima, simples como sua matriz acidental, a verdadeira Joss Stone, descalça no palco, uma deusa real. E era como se o seu preço subisse do dia para a noite, sem que ela soubesse, na agitação feroz de um mercado financeiro invisível, em meio a outras tantas confusões e convulsões minhas. Sim, por certo: um relacionamento de risco. Um perigo cada vez maior.
Projeto esvanecendo-se
8. Dias antes, dias depois – sequência
6. Das coisas todas – anterior
Imagem: Scott Harding. Nu (detalhe superior). 1965.
por
Publicado em
Categorias:
Tags:
Leia também:
Comentar