Office in a Small City por Edward Hopper

Projeto esvanecendo-se. Das coisas todas

Marjorie era uma caçadora. Disfarçada pela etiqueta.
Encoberta pelas vantagens dos bons modos.

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Ainda menino, gostava de escrever livros que não existiam, que não passariam a existir. Criava a história toda, mas não me animava a redigi-la. Adquiri o vício absurdo de associar livros às coisas que me pareciam importantes, referindo-me, por exemplo, ao amanhecer de um dia como ao início de uma página – o que, mesmo em minha imaginação viciada, não se pautava de muito sentido, já que o dia se processava de baixo para cima (da manhã para a noite), assim como eu o percebia, enquanto a página de um texto ocidental me conduzia de cima para baixo. Não importa, de fato isso não importava, porque sempre me senti livre para criar confusões. E me referia mentalmente à primeira amada como Capítulo 1. Ninguém podia saber que eu a amava. Ninguém podia saber que era ela, especialmente ela, a Capítulo 1 de minha história viva. Registrada em foto coletiva da turma do catecismo, ao final do curso, perto de completarmos nossos dez anos de idade: lá estava ela, um degrau acima, à direita, tão longe de mim, que, com cara de pateta crédulo e submisso, me posicionava abaixo e à esquerda. Uma paixão devastadora, sob a égide e o surdo silêncio dos anjos que povoavam as Escrituras. Eu não sabia ao certo o que era o sexo. Não sabia me masturbar. Era um anjo reprimido, potencialmente humano. O fato é que Capítulo 1 me encantava loucamente, e eu não procurava entender os motivos. Tempos mais tarde, revendo álbuns, foi meu irmão quem lembrou, identificando-a. Apontou seu rostinho com indicador objetivo, livre de sentimentos. Você gostava dessa menina aqui. (O quê? Como ele podia saber?) O nome dela era Miriam. Miriam? É, não lembra? Estudou mais um ano na mesma escola que nós, antes de a gente se mudar. Em outro horário, acho que era à tarde. Não lembra? Ahn, sei… Só que eu não lembrava mesmo. Então, Capítulo 1 havia se estendido um pouco mais em minha vida, e eu nem soube mais sobre ela. Em que outras páginas poderia tê-la encontrado sem minha pesada incômoda paralisante timidez? Mas, claramente, nada disso tinha agora a menor importância. Porque estava prestes a ler-viver outro capítulo que me acontecia: a Marjorie.

Marjorie. Capítulo 8. Com subtítulos e desdobramentos, notas de pé de página, citações em outras línguas, termos sem tradução, uma ou outra palavra reinventificada. E eu entendia que a Josie era a minha Capítulo 9 – mas não que fosse a número 9, não isso. Ser a Capítulo 9 envolvia outros fatores, por exemplo, como eu via as mulheres então, diferentemente de como via as minhas Capítulo 3 ou 5, com outra maturidade, mas sempre com as minhas mesmas recicladas limitações. Cada uma se destacava em um ponto diverso de meu livro imaginário, que funcionava mais ou menos sempre. Os primeiros dias do ano são como o frontispício desse livro; os últimos, como os dados da gráfica que o realizou. Uma frase ouvida e memorizada em certa idade continua lá, no passado, naquela tarde e luminosidade, como parte de um todo, acrescida das pessoas próximas, do local onde a ouvi, rente às margens da memória, que guardavam cartazes de cinema e canções de rádio, ela quase aparece escrita no ar, como em algum recurso de audiovisuais. Mas não, nunca chega a isso.

… por que, em minha instabilidade mental emocional sazonal, por que, enfim, recordo um ponto ou outro, mesmo não estando à procura de tal ou qual memória? Um personagem de Coetzee pensou em castrar-se para evitar novos casos com mulheres e para poder pensar melhor na morte. Pensar melhor na morte?! Não, não, mas eu sabia, eu o entendia: isso se traduz por considerar filosofar tentar compreender. À parte esse estúpido drástico ridículo pensamento, valeria a pena, mesmo metaforicamente, trocar uma coisa por outra?…

Quando conheci a Marjorie, ela me encantou com sua educação, com seus sorrisos e não sorrisos na hora certa, suas expressões faciais agradáveis e convidativas. Sentados, conversando. As cadeiras de madeira escura daquele café, umas plantas em volta. Cardápios plastificados ali à toa. Então, ela ergueu lentamente a mão direita, em minha direção. Olha, um pernilongo aqui, na sua camisa. Era mesmo. Mal tive tempo de vê-lo: o minúsculo inseto subiu ao ar delicadamente rapidamente imprudentemente, e eu nunca me esqueço de como a Marjorie o liquidou certeira, batendo as palmas das mãos uma única vez. E os olhinhos dela, quase arregalados e vesgos, concentrados como os de um felino. Seu rosto todo parecia o de um felino, surpreendentemente. Os lábios presos, as linhas exatas de seu queixo, suas mandíbulas, e aqueles olhos castanhos escuros quase cor de amoras, um brilho rápido de êxtase ao dar como certo, num estalo, o assassinato bem-sucedido. Tornou a olhar-me de frente, outra vez mulher. Sorrisinho de boca fechada, como se dissesse: viu só? E algum alívio, um sutil relaxamento. Marjorie era uma caçadora. Disfarçada pela etiqueta. Encoberta pelas vantagens dos bons modos.

… para o ator Willem Dafoe, devemos ser mais animais, menos racionais, sem nos importarmos muito com as expectativas. Ouviu isso, Joss Stone?…

Você trabalha com aulas, não é? A Marjorie, curiosa e afável. Trabalho com aulas? É, eu… dou aulas. Leciono. Franja de fios negros cobrindo-lhe quase toda a testa, partindo de uma linha curva a separar-lhe os cabelos, que caíam mais de um lado que de outro – isso, no momento, me pareceu acidental. Interessante, admiro professores. Nós dois compartilhando aquela situação maravilhosa de acreditar que íamos mais bem nos conhecendo, por enquanto não tão bem assim, e ainda bem. E aqueles olhos dela, castanhos escuros sensíveis astutos – como me lembro disso! Para mim, naqueles primeiros encontros, eram olhos potencialmente eróticos, por causa de seus movimentos mínimos, esquadrinhando meu rosto, buscando enquadrar meu rosto como um todo, enquanto eu falava de uma coisa e outra. Uma coisa e outra, mesmo assim o que eu pronunciava quase sorrindo parecia produzir coisas vivas acesas nutridas voluntariosas e quase aromáticas, um pássaro instintivo em sua corte, enfeitiçado pela própria atuação na primavera, reativando em sua vez e em sua voz os ritos ancestrais do acasalamento e a engrenagem do amor. Ela me ouvia, erguia um pouco o queixo, como se farejasse minhas palavras.

Uma das primeiras coisas que a Marjorie me disse, quando nos conhecemos quando conversávamos quando começávamos a nos imaginar com igual força de vontade, foi que toda relação depende da reciprocidade de nossas intenções, e funciona bem quando é assim. Gostei de ouvir isso. Reciprocidade de intenções. Expressão elegante. A bem da verdade, como dizem os fingidos, e mesmo tendo em mente que não é preciso comentar isso, a essa altura eu já pensava na Marjorie como uma potencial fêmea ao meu dispor à minha mercê na cama a meu serviço. Criava, como sempre fizera desde que minha soturna adolescência entrara em cena, todas as imagens e falas dessa garota exata disciplinada e bem cuidada que, misteriosamente, parecia interessada em mim. A Marjorie era agora o foco e o fogo de meu bruto interesse masculino. Minha musa corpórea. Meu ícone erótico, como os de Alex Portnoy. Sobrepunha-se às outras, reinava. Dominava-me. Eu lhe despia as roupas e os calçados que bem entendia e escolhia, o que me levava às portas da polução noturna, algo que eu me esforçava por conter, administrando meu tempo meu ritmo meu ritual profano, que é o de todos os homens hormonalmente normais: a sagrada masturbação.

… o Portnoy, de Philip Roth, nos desafia com sua sinceridade, e a jornalista perguntava ao autor por que falar tanto sobre sexo, o que me parece uma pergunta desnecessária, mas, sim, claro, podemos falar de qualquer outra coisa…

Eu estava com ela no carro, fim de noite, deixando-a em sua casa, a rua arborizada e escurecida onde morava com o pai e o irmão, quando recordei essas palavras, pensava: isso de estar apaixonado… Eu não conseguia parar de abraçá-la de olhar para ela de beijá-la de olhar todo o seu rosto beijá-la e beijá-la outra vez e outra vez… Como é possível caber tanta coisa em nós, quero dizer, por que eu agia desse jeito, por que eu não conseguia parar? Não haveria um limite para esse fascínio? Ela riu. Claro que sim. O orgasmo.

Mas isso viria depois. Estávamos no café onde ela havia matado um pernilongo. Uma coisa e outra atravessavam nossa conversa, como todas as coisas que acontecem no mundo deveriam atravessar as conversas de todos, embora ninguém se importe. Eu respondia e perguntava, também afável, é claro, mas achava estranho que alguém falasse assim, trabalhar com aulas, não sei por quê. Não sei muito bem por que isso me incomoda sutilmente. Dias depois, convivendo com uns conhecidos da Marje, entendi que era mais ou menos assim que eles se comunicavam. Eles não perguntam o que você faz, qual é a sua profissão, eles perguntam com o que você trabalha e complementam querendo saber qual é a sua parte. Minha parte? Como assim, minha parte? – foi isso que pensei, mas não falei, quando um desses amigos dela quis saber sobre esse tipo de coisa. É que muitos deles são sócios proprietários microempresários empresários, até acionistas de alguma empresa, portanto eles sempre têm… uma parte. Ah, você trabalha na… ? E qual é a sua parte? Na ocasião, eu disse que lecionava, e não comecei a resposta com: minha parte é… Os mais sábios (que eu nunca sei quem são) nos lembram que sempre é prudente evitar dizer o que se pensa, embora isso me cheire a mais uma modalidade empolada de covardia. Mas dessa vez segui esse conselho covarde e me escondi. Porque o que pensei foi que minha parte era ensinar, ao máximo, como é a gente se libertar de padrões paradigmas frases feitas ideias feitas e ciladas feitas, talvez para diminuir um pouco a preponderância daquela casta de pessoas que, situada em camadas consistentes da cadeia alimentar, entende que sua visão de mundo é o melhor que se pode passar adiante.

Mas que importam, em maior escala (já que falam tanto em pensar grande), essas decantadas capacidades empreendedoras ou porcarias que as valham? Porque tudo isso está perdido no tempo cósmico, quem não sabe disso? Desde já, desde sempre. Eu observava alguma particularidade ociosa de Coco Chanel, por exemplo, quando ela lambia uma pata erguida no ar, e pensava que todos os gestos do mundo já se diluíam entre as estrelas sem nenhum propósito futuro. E algum pássaro ou mamífero ou réptil perspicaz que teria existido em qualquer momento entre os vastos milhões de anos passados, possuidor de um talento intrínseco, com habilidades próprias, simplesmente desapareceu no tempo, assim como incontáveis outros, desapareceu invisível, para sempre anônimo, sem deixar nenhuma memória de suas capacidades. E agora, não importa mais que eu lhe dê um nome. E essa gente quer que eu pense grande, não é mesmo? Que eu considere seus nomes e sobrenomes. Mas eu estranho todas essas pretensões alheias e valores convencionados enquanto admiro Coco Chanel, sentada sobre a atualidade, lambendo cuidadosa uma das patas. Condenada como todos. Essa é sua única vida, Coco Chanel: um pouco aqui comigo. E esta é minha única vida: um pouco aqui com você. Enquanto o tempo nos tolera e nos favorece. Todos, um dia, em meio a um gesto. Sei, sei, eram pensamentos simples e evidentes demais, que eu sempre guardava dos outros. Porque os outros pareciam ignorar que eram mamíferos. E que eram, como eu, limitados pelo tempo. E que… Bem, mas tais considerações gratuitas nem chegavam a ser uma daquelas coisas que-eu-mais-tinha. Aconteciam. Uma vez ou outra. E não, eu e a Marjorie não podíamos ainda ler a mente um do outro.

Em alguma parte de nossas primeiras conversas, ela disse que me achava… diferente. Diferenciado. Mais especificamente, ela educada culta agradável e me conhecendo ainda, foi a palavra que usou em seguida, aperfeiçoada: diferenciado. Eu já tinha ouvido algo assim antes, de outras pessoas, mas não sabia se isso era bom ou não, se me faria feliz ou infeliz, que diferenciado pode ser o antissociável ressentido ou o psicopata ansioso que gosta de ler os clássicos, o que, por bem ou por mal… Bem, isso não importa mais. E eu não pretendia, nem pretendo, ser diferenciado coisa nenhuma. Isso acaba por ser uma impressão alheia, uma definição derivada, talvez, de meu interesse potencial por leitura – o que afinal não é tão incomum assim.

Mas eu suspeitava que esse meu interesse ansioso pela leitura provinha de algum sintoma de egoísmo (eu e meus livros) e que minha sensibilidade talvez configurasse algum tipo de patologia, pois essas coisas todas tanto me rendiam ataques de subjetividade quanto ataques de objetividade – em momentos assim, eu ficava em êxtase, arrepiado motivado vivo. Não me importava nada que outros quisessem ler alguma coisa ou coisa nenhuma, nunca me importei com isso, e ficava curioso ao ver colegas engajados em atividades pedagógicas que visassem incentivar leitura e livros, pois não entendia que alguém não procurasse ler textos livros revistas e poemas fábulas sagas e histórias reais por vontade própria, algo assim tão fascinante e prazeroso.

… Max Stirner acreditava que todas as nossas ações eram movidas pelo egoísmo, nós sabendo disso ou não: uma grande associação bem-sucedida de egoístas, controlando todas as nações…

A Marjorie é uma católica inercial. Ela não vai mais à missa desde os tempos de solteira, a não ser em coisas de sétimo dia. O meu sogro e o meu cunhado continuam crentes praticantes. O Sergito a convida (a cobra) sem forçar muito. Quando vai voltar à igreja com a gente, Mar? Quando tiver filhos? (Meu cunhado é um tipo prático, que conserta torneiras e faz orçamentos de serviços de jardinagem. Sofre de autoconfiança congênita: não tem medo de nada. Sobe ao telhado para arranjar uma antena e fala como aqueles pilotos de caça de filmes norte-americanos. Não há de quê. Sempre às ordens. Ele seria o primeiro voluntário a engajar-se em uma guerra louca.) Não sei por que defender a pátria tem a ver com acreditar em anjos, mas o meu sogro, previsivelmente, associa o poder de Deus à religião institucionalizada, à motivação e à proteção de seus guerreiros compatriotas – algo que, com a mesma convicção, o inimigo também faz. Tem de haver um grau de submissão e de negligência intelectual para poder assumir como certas as verdades que norteiam os ideais mais amplos das Forças Armadas, pondo homens como meu sogro na trilha da obediência a uma consistente cadeia hierárquica, cumprindo ordens, cumprindo ódios. Ele hoje vive muito bem com sua pensão, não pode reclamar de grana, mas deve sentir falta de mostrar-se às ordens e de ordenar disciplinas, enfim, deve guardar de maneira algo dolorosa os segredos cansados de seu disfarçado autoritarismo. Sua casa é ocupada em grande parte por mobília escura polida refinada, lembrando alguma distante fase pequeno-burguesa em declínio, talvez despertada de minha memória de livros ou de visitas que fazia na primeira infância, como as de minha mãe a seus parentes em Franca, interiores com influências de estilos sóbrios, copiados dos lares pouco iluminados de cidades centro-europeias do século vinte, na prática uma decoração pobre, cheirando a encáustica, apegada a enfeites e quadros ruins, de apelo romântico-popular. No corredor entre os quartos, há um pôster com uma propaganda do Exército: braço forte, mão amiga. No mais, retratos de família, filhos pequenos, sorriso de sua esposa morta, imagens fixadas nas sombras, repetindo a doçura e a tristeza que motivam o heroico esforço humano contra o esquecimento. Sei que ele tolera a ausência (que lhe deve ser incômoda) de minha religiosidade. Consigo fingir um pouco, não muito. Ele quer bem à filha, por isso. Ou não quer mal. Menor desgaste, que seja. Diplomacias em seu limite de militar. Que percebe e compreende, conforme o tempo passa, que não há mais chances de eu me converter à Santa Igreja. Eu imaginava, quando namorava a Marjorie, quando ainda no  início entre iniciações, entre aquecimentos que sugeriam nossa nudez para breve, para talvez um dia à frente, próximo ou não, quem sabe, não sabia, não queria forçar nada, queria era que ela não escapasse de mim, imaginava, portanto, com toda vontade, sua nudez completa sob meu domínio, quase uma profecia que logo se dera a cumprir, entre beijos fortes e variações de versos salmos cânticos bíblicos que me inspiravam. Paciência, e o deserto irá florir. Parte sul de seu corpo. Toca com fé, e a flor se abrirá.

Mas minha falta de fé transparece, eu sei. Em uma ou outra palavra um grunhido bem-humorado um repente de surpresa ao deparar com a notícia de um milagre, para outros algo tão maravilhoso e necessário. Ou a cada vez que ameaço sorrir. Nada de mais. Por essa época, eu ainda cultivava umas leituras intoxicantes. Vivia entusiasmado com a descoberta de novas (para mim) peças de música clássica. Perseguia a beleza das coisas. Enternecia-me com a bondade, com a poesia, e já era tempo de eu ter outra impressão do amor, mas, como disse, ou acho que disse, nunca fui precoce quanto a tais percepções. Eu havia escrito em meu diário, na parte inferior de uma página direita, que “Sim, eu sei, é sempre aconselhável usar a razão. Mas não se emocionar com alguma coisa é uma perda, não um ganho; um esquecimento, não uma conquista.”. À época, coisas que-eu-mais-tinha. E isso tudo, como parece claro, já devia ter se esfumado evaporado esvanecido lá no definhar de minha pobre adolescência, que ninguém adivinhava dura, com um último sorriso triste. Mas não. Eu tinha vinte e três anos quando conheci a Marjorie. É sério. Foi durante uma onda de calor, estacionada na região por influência de fenômenos climáticos distantes, desses que se formam no aberto dos oceanos e ganham nomes em espanhol. Uma onda de calor opressiva e nauseante, ainda na primavera, por isso era comum que nos víssemos com os rostos um pouco suados, quase cintilantes. Isso foi em novembro.

De qualquer forma, eram dias mágicos, quando começávamos a pensar um no outro com inegável interesse, desejando mais encontros e mais próximos e ansiosos e urgentes, quando aquela impressão intensa do encantamento começa a subverter as marcações do relógio e a gerar um descompasso com as situações diárias conhecidas, com as outras atividades da vida prática. Quando nossa noite acabava, seguíamos em meu carro, eu ia deixar a Marje em sua casa, e era difícil nossa despedida. Nossos beijos consumiam todo o tempo, todo o batom. O gosto das salivas trocadas também resultava dessas tempestades biológicas. Ficávamos ainda uma meia hora grudados, até um pouco mais tarde, em meu carro, como já expliquei, o confortável Chevette hatch 84 branco de assentos reclináveis, torno a dizer, quase em frente à janela do andar de cima, e eu supunha que o seu pai ou o seu irmão podiam respirar de longe o nosso calor, o cheiro de nossos hormônios fervendo sob a lua.

A Marjorie, agora minha namorada, ia me apresentando a seus amigos suas amigas seus conhecidos seus parentes, enquanto meus amigos, que já eram poucos e dispersos (colegas eu tinha muitos), iam desaparecendo naturalmente de meu convívio. Já tínhamos uns meses de casados quando, na festa de casamento de uma amiga dela – uma não tão amiga assim, daí porque ela, a Marje, que já se portava com certa formalidade em ocasiões dessas, naquela noite parecia mais atenta às aparências conveniências obediências do que em outras –, eu cometi o erro de acreditar que poderia ser espontâneo. Coitada, sei que nem sempre eu fui o que ela esperava, mas não era por mal. Nunca foi por mal. Tenho verdadeiro carinho por ela, embora ela não perceba – ou não se importe muito com isso. Enfim, uma ou outra manifestação de espontaneidade minha a fazia desconfortável, porque ela tinha as coisas todas mais ou menos previstas, e não se sentia bem se algo não saía bem, o que parece simples de entender. Nessa festa, como dizia, bebi um pouco mais que o normal. Só isso. Nada sério. Todos ali, pelo que eu observava, beberam mais que o normal. Eu estava alegre, solto. A gente já tinha dançado, outros tantos ainda dançavam, e se divertiam com umas bobagens típicas, piadinhas relacionadas aos noivos e à conhecida condição de casados, quando então eu simulei uns passos de dança meio desencontrados, como num ritual de acasalamento, dobrando os joelhos e beijando a mão dela, afastando-me e me aproximando outra vez, imitando aqueles personagens de luvas do cinema mudo, movendo lábios sem som, mostrando-me subitamente apaixonado por minha própria esposa, que estava elegante e linda, cabelos presos, vestido justo, sandálias altas, mas acontece que a Marjorie sorria quase um sorriso fixo, e eu entendi que ela não estava gostando muito do rumo que as coisas estavam tomando. Então eu me deitei no chão liso da pista, blazer azul-marinho aberto, fechei os olhos, sorrindo, via tudo em flashes sons luzes risos e o teto, e a Marjorie bem próxima, curvando a parte superior de seu corpo em minha direção, isso sem dobrar as pernas rígidas, mãos apoiadas nos joelhos. Que foi? Tudo bem? Está passando bem? Tudo bem sim. Tudo bem, minha linda. Eu estava feliz. Feliz. Levanta daí então. Vem. Ali estava a minha mulher linda em meio ao caos. Algo carinhosa, mas incisiva. E eu sorrindo, de olhos fechados, o álcool provocando sensações avulsas suaves gostosas, então eu disse a ela que amava a vida. Acho que amo a vida. Quase sem ênfase, mas quase em estado de graça também. Marje, eu acho que… eu amo muito a vida. Que isso, imagina! Ela lançava os olhinhos rápidos ao redor, mantendo o sorriso aberto enquanto os outros convidados provavelmente riam ou estranhavam aquilo tudo. Estendeu-me a mão. Vem, anda, para com isso. Sempre sem deixar de sorrir, para que vissem que era só uma brincadeira. Sim, esses gestos dela são recorrentes. São toques de mestra. Para que todos compreendam que tudo não passa de uma brincadeira. Que mesmo o fato de eu amar a vida também não é mais do que uma brincadeira inocente. Insignificante. Dispensável. Está tudo bem. Tudo bem mesmo. Seu sorriso dizia a todos que eles não precisavam se preocupar.

Projeto esvanecendo-se

6. Das caminhadas e corridas – sequência

4. Eu não queria que isso acontecesse – anterior

Guia de leitura

Imagem: Lorraine Christie. Doce rendição (detalhe inferior).

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Comentários

4 respostas para “Projeto esvanecendo-se. Das coisas todas”

  1. Avatar de Creusa Maria Maia de Queiroz
    Creusa Maria Maia de Queiroz

    Perce, é sempre muito bom ler os seus romances. Acabei de ler o trecho do seu romance “…projeto esvanecendo-se” que nos leva a lugares que só Freud explica, pois, desde que nascemos, já se dá início à castração da sexualidade, seja ela masculina ou feminina. Deste modo, o texto nos envolve pelo prisma das grandes aventuras e descobertas na fase da adolescência e depois dela. Isso tudo, faz com que o leitor possa se questionar e se posicionar diante de um tema sempre atual e instigante. Fica claro no texto pela figura da personagem Márjorie que por trás das etiquetas, existem pessoas normais, com sentimentos iguais aos de tantas outras pessoas figuradas pelo “Eu Lírico” que segue na narrativa como um questionador das ditas “castas” ditadoras de normas a serem respeitadas e seguidas. A libertação do “Eu Lírico” só acontece pela ingestão do álcool quando ele declara abertamente que ama a VIDA. É um romance fascinante pela profundidade da narrativa. Parabéns!!! Excelente Romance para reflexão. BRAVO!

  2. Avatar de Marcia Helena de Azambuja
    Marcia Helena de Azambuja

    Vou sorver deliciosamente tudoooo!

    1. Avatar de Claudia dos santos Rodrigues
      Claudia dos santos Rodrigues

      Amei. Seus livros estou lendo muito lindos belas palavras muito sucesso realizações felicidades já virei sua fã continue. Escrevendo. Que estarei. Aqui torcendo por vc.bjos abraços 🎈👏👏🙌🙌🙌😍😘

      1. Avatar de Perce Polegatto

        Muito obrigado, Claudia, fiquei contente em saber que está gostando. Abraços, me escreva sempre que quiser.

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