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Um carinho enorme por esta lembrança
Eu retornava de uma noite de sonho. Vivia ainda um sonho estendido.
Quando voltei de verdade ao consultório do doutor Stabile, inventei maneiras de lhe perguntar sobre a Josie. (Ele tinha outra funcionária agora, chamada Regina Mara, morena quarentona, maquiagem forte, franja na testa, forçadamente simpática.) Aquela secretária que você tinha, que sempre nos atendeu muito bem… Ah, a Josilene? Sim, ela não trabalha mais aqui, você sabe. Atendia muito bem, sim, era ativa, me ajudava muito. Mas infelizmente eu tive que dispensá-la porque percebi que ela estava… alterando uns papéis, entende? Eu fiquei constrangido, não esperava isso dela. Mas, numa situação dessas, não resta outra saída, e eu tive que me desfazer dela. Uma pena, eu realmente não queria que isso tivesse acontecido assim. Talvez ela estivesse passando por alguma dificuldade financeira, mas, de qualquer forma, ela poderia ter me falado, eu poderia tê-la ajudado de alguma forma, sou sensível a isso, meus pais também passaram por muitas dificuldades, eu venho de um meio assim, de gente batalhadora, sabe? Bom, mas agora vamos tratar de você. Da última vez, nós falávamos ainda sobre a sua impressão de estar escondendo seus pensamentos da Marjorie, da dificuldade de comunicação com ela. Eu… era. Era isso mesmo. Nesse instante, como se houvesse se tornado uma estátua de cabeça baixa, o doutor Stabile ficou olhando talvez seu bloco de anotações, talvez o carpete logo à frente, não sei. Parecia tomado por uma ideia repentina, ter atinado com alguma coisa, ou podia ser só a impressão que tive, já que não podemos ler pensamentos alheios. Respirei duas vezes antes que ele voltasse a viver. Muito cauteloso, erguendo o rosto bonito, de olheiras e olhos de mocho amigável, ele conduziu a conversa seguinte. Aquele seu sonho… Qual sonho? (Era disso que ele tinha se lembrado então.) De estar em público, com uma garota, na galeria, lembra? Em algum momento você a chamou de Josie ou Josse. E a descrição que fez… Pense comigo: essa figura do sonho não seria… a Josilene? Eu fiquei mudo. Eu queria ficar mudo. Eu queria ficar mudo. Eu queria ficar mudo. Sabia que o doutor Stabile era obrigado, pela ética da profissão, a manter sigilo sobre o que bem ou mal eu lhe contasse. Mas quem controla todos os humanos? Quem garante o quê neste mundo? Não, mas eu não iria lhe contar nunca. Não queria contar, mesmo que isso piorasse minha condição psicológica psíquica psicoquímica ou qualquer coisa que eu pseudoentendesse como parte dessa dimensão louca. Mas decidi olhar para ele. Naturalmente, quase neutramente. Como fosse, era melhor que eu lhe respondesse alguma coisa: meu silêncio agora poderia ser mil vezes pior. Tornei a olhar para baixo. Também um pouco de lado, muito bem disfarçado É. Pode ser. Pode ter sido ela, Juan, não sei. E… ? Ele continuou no mesmo tom, como era esperado, e me tranquilizou. Não sei por que associei esses elementos agora, mas às vezes é assim que acontece. Você pode ter se impressionado com ela, sem perceber, e seu inconsciente a usou como um modelo referencial, uma imagem feminina que possa ter servido a suprir a carência de uma mulher mais próxima, mais apegada a você, mais acessível do que a Marjorie. Você costuma comentar com a Marjorie sobre esses sonhos, sonhos desse tipo? Eu quase o interrompi muito bruscamente. Não! E como você se sente escondendo isso dela – isso ou qualquer outra coisa que prefere esconder dela? Pensei um pouco, tentando ser verdadeiro. Protegido. Protegido? Do quê? Protegido dela, porque ela parece estar sempre me devassando por dentro, você sabe, aquele jeito cortante de ela olhar e… parece que fica faltando pouco pra que ela fale por mim, pra que ela mesma fale em voz alta tudo o que eu tento esconder. Mas você entende que isso pode ser uma impressão sua, uma distorção, que talvez a Marjorie não seja assim tão astuta? Bom, eu… Pode ser. E você sente que há algo tão importante a esconder, algo que ela não possa saber por você? Isso me arrepiou, na hora: saber por mim? Como assim? Ela acabaria sabendo por ele? Mas eu não lhe disse nada. E precisava continuar atento às ciladas dele. Ciladas terapêuticas, com o objetivo de me salvar. O ideal seria que ele soubesse de tudo. Eu estava ciente disso. Por que perder meu tempo (e meu dinheiro) nessas sessões se não queria lhe contar o que havia de mais importante de mais preocupante de mais perturbador? Muito tentado a me entregar. Talvez devesse ter feito isso, definitivamente. E começar algo de um marco zero. De outro divisor drástico. Desviei-me a contar sobre outro sonho, ele não teria como impedir isso. Outro sonho e outras memórias, que me acudiam em ondas melancólicas e fascinantes, que sempre eram impressões dessa espécie o que me tornava intenso em relação à maioria, e era algo que só eu percebia, pelo jeito. Minha imaginação inquieta, inacessível imperceptível invisível aos outros, furtiva e secreta, em meio ao cotidiano dos que me conheciam e mais ainda em meio ao cotidiano dos que não me conheciam. Obviamente. E devo estar me perdendo de novo. Digredesviando-me de novo. Desmoronando de novo. Golpes suaves que eu mesmo atraía, por querer. E por não querer esquecer. Radiação decorrente de sinapses subitamente velozes, procurando saída. Tão triste tão apaixonada tão necessária à minha curiosidade implacável. O sonho é bem simples, Juan. Parece ser. Não sei. Uma conversa tranquila, sob as árvores lá da frente. Frente de casa. Prokofiev ali, ao portão. Calvo óculos olhos claros. Então, é aqui que você mora? Ele me entrega uma pasta fina, papéis dentro, vejo que são partituras amareladas mal-arranjadas, margens escapando do retângulo verde-escuro que é a pasta. Eu lhe trouxe um último concerto. Um último concerto? Como? Não compreendo. Isso me fazia culpado, repentinamente. Culpado, constrangido. Olha, Sergei Senhor Prokofiev, é, foi assim mesmo que eu disse, coisa de sonho. Sou um grande admirador do seu trabalho, do seu trabalho magnífico intenso emocionante. Para o senhor ter uma ideia, a única coisa de que eu me arrependo em toda a minha vida foi daquela vez em que dormi durante um de seus concertos, particularmente o Número 2, para piano. O mais lindo. O que mais me fascina. E eu adormeci. Eu estou em falta com muitas pessoas, com muitas coisas, comigo mesmo até, nem sei mais com quê e com quem mais. Na verdade, eu cochilei apenas, sem defesa. Dois ou três minutos, quando muito. Sem defesa. Mas eu estava exausto, entenda. Entenda, eu estava exausto. Era um momento de minha vida em que as coisas estavam perdendo todo o significado. Em que eu não conseguia mais identificar as coisas que-eu-mais-tinha. Deve ter sido isso o que aconteceu comigo, com a minha vida: eu cochilei, sem defesa. Exausto. E alguém, não sei quem, se aproveitou disso. Também não sei como. E a sua música ainda era o que de melhor e mais humano eu podia identificar. Um último sinal de vida nas trevas. Quando eu era adolescente, sabe, sonhei que os Beatles é que tinham ido até minha casa. Mas eu cresci. E hoje é o senhor quem está aqui, comovendo-me sem saber, imenso. Prokofiev entrega-me a pasta, tranquilo neutro genial. Tome, fique com isso. Um último concerto. Um concerto sem número. E assim termina, e eu desperto. Interessante, não é? Mas ainda tem algo que eu quero… que eu quero… enfim, que é uma das boas lembranças que-eu-mais-tenho. De um menino que não queria arrancar as flores de suas hastes. Sim, eu a quero de volta, essa lembrança. Eu a quero comigo para sempre. Um carinho enorme por ela. Por essa mulher a quem nunca mais vi. Um carinho enorme por esta lembrança.
Baile de formatura de um amigo, o Nivaldo Capretz. A Marina Lot, de nossa turma, viera com uma convidada, conterrânea de sua pequena cidade distante. Nós nos conhecemos conversamos dançamos juntos, nos atraímos. Ela era discreta, bem-educada, sorria pouco. (Seu nome está protegido.) Queixo pequeno, rosto triangular. Morena clara, cabelos negros encaracolados cheios, cobrindo a testa e os ombros, à moda de nossa juventude. Um vestido bege ou salmão (nunca tenho certeza dos nomes dessas cores), também sóbrio, até os joelhos, sem sinais claros de sensualidade.
As horas passaram por nós, rolando sobre a música e os ruídos humanos. Ofereci à estrangeira levá-la à sua casa, que até o dia seguinte seria a república da Marina – ela estava com a Marina, não tinha as chaves, mas não, não me importavam detalhes assim, isso não era calculado enquanto acontecia. No fundo, o que eu não queria era deixá-la. Pensava em beijá-la em algum momento, e não sabia como. Talvez não acontecesse. Mas já era muito agradável tê-la por perto, estar com ela. Eu pensava na noite lá fora e me esforçava por conter meus sonhos de adolescente tardio. Minha ansiedade masculina me denunciava. Tentava disfarçar o desejo que crescia em meu sangue, queria afastá-lo de mim. Queria que ela soubesse que eu podia ser o que quisesse ser, um homem determinado e consciente. Entre uma e outra palavra, entendi que era virgem. E por que não seria? Não importa a cidade. Não importa nada disso. Eu próprio havia perdido minha virgindade havia pouco tempo, de maneira constrangedora, com uma mulher mais experiente. Então, eu lhe fiz uma proposta. E uma promessa. Ela concordou.
Era tarde dessa noite, uma noite calma. Por algum motivo, uma noite calma. Percorríamos a cidade deserta em meu Chevette de pintura metálica, do qual eu me orgulhava secretamente, por ser meu primeiro carro, comprado com meu próprio dinheiro. No caminho, ela disse, com sua voz bonita, que era como se me conhecesse há muito tempo. Eu sentia o mesmo. Coisas que nos ocorrem em noites assim mágicas.
No motel, relaxamos e deixamos para trás todos os ruídos de um passado mínimo, como também as canções que nos aproximaram nas últimas horas, nos minutos que há pouco estavam ali, ao nosso redor, antes dessa última porta definindo o tempo.
Tirei os óculos, não me importava mais ser míope – que ela também parecia não se importar com isso. Continuamos conversando, convenientes e cautelosos, como já vínhamos fazendo, agora sentados na cama, mais ou menos inclinados, mais ou menos improvisados. Então, um beijo lento, tímido. Sem avanços. Próprio a dois estranhos em um acordo. Dois estranhos em justa sintonia. (Era uma vez uma princesa, de um reino distante…) Beijei seu pescoço, seu ombro. Um animal sedento dava sinais de assumir o controle. Mas ela delicadamente me lembrou do que eu havia prometido.
Era tarde dessa noite, dessa noite na penumbra – uma luz macia, vinda de um recorte junto à entrada, cuidava de nossos gestos. Minha parceira viajara durante o dia, estava exausta. Tirou os sapatos, deitou-se de lado. Seus cabelos quase cobriam todo o travesseiro baixo. Logo ela adormeceu. Eu também estava cansado. Tirei meus sapatos, deitei-me ao lado dela. Acariciei sua testa, sua fronte, um pouco de seus cabelos, seu queixo… – foi só assim que eu a toquei.
Percebi, emergindo de um sono breve e profundo, que estava amanhecendo. Eu retornava de uma noite de sonho. Vivia ainda um sonho estendido. O silêncio no motel era o de um reino adormecido. Dava para ouvir um trem, muito longe. Ela despertou, me fez um carinho. Foi ao banheiro, se arrumar. Ouvi o som de seu xixi. Fechei os olhos, feliz com essa impressão infantil de intimidade. Trocamos outro beijo, firme e carinhoso, abraçados ante a porta aberta. Ela me agradeceu por tudo. E eu lhe agradeci por nada – que esse nada me faria grato a ela por toda a vida.
Deixamos o motel, percorrendo a cidade ainda quieta, querendo ser manhã. Eu a deixei na frente da república da Marina – uma república modesta para abrigar uma princesa distinta.
Seu nome está protegido, ela toda está protegida em mim. Minha memória volta a ela e a uma canção que havíamos compartilhado no baile, com a delicadeza de seu corpo tocando o meu enquanto dançávamos: “We’re all alone”, cantada por Rita Coolidge.
… por algum tempo, estes versos soaram fortes em mim: “Let it out. Let it all begin.”…
Não houve sexo. Ela confiou em mim. Eu a respeitei. Foi uma noite de amor.
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Imagem: James Whistler. Noturno em cinza e ouro. Ponte de Westminster (detalhe). 1871.
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Comentários
Uma resposta para “Um carinho enorme por esta lembrança”
Simples e profundo. Gostei, Perce!
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