Office in a Small City por Edward Hopper

Brincadeira com bichos

O que achei de fato interessante foi o bicho escolhido, um escorpião. Achei interessante mesmo.
E era um rapaz anêmico, olhos fundos, parecia doente.

Cassio Polegatto. Gato preto. 2015.Sempre detestei ter de participar do que quer que fosse. Sempre mesmo, desde que me entendo por gente. Mesmo em criança, isso me parecia repulsivo. Tinha a impressão de ser forçado a ser como os outros, de pensar como pensa um grupo, agir conforme o já esperado, para que fosse sempre um como eles. Por isso. E não é pouco, convenhamos. Depois, por que eu haveria de ser como eles? Festinhas no escritório, por exemplo. Pessoas sem nada em comum, vidas separadas, hipocrisia diária… Nem vou falar sobre isso, assim já é demais.

O fato de não pertencer a nenhum partido, ordem ou religião poupa-me de defender ideias alheias e torna-me sempre mais livre em minhas opiniões. Eis aí algo que me interessa, sim, a liberdade. A liberdade, por exemplo, de poder dizer qualquer coisa fora de propósito num momento em que todos se sintam unidos por algum tipo de… Muito bem. Já me sinto livre por interromper-me, sem dar trela a novas conclusões. Ah, sim! Muito bem. Isto vale mencionar, a última vez em que participei de alguma coisa, que me lembre.

Meu único interesse, quando me inscrevi, era conhecer o Liceu de Artes e a Pinacoteca do Estado. Era um programa barato, planejado a partir das linhas do metrô e de suas estações, perto das quais se localizavam os pontos a serem visitados. Formavam-se normalmente grupos de umas dez pessoas, acho, e íamos todos seguindo duas funcionárias uniformizadas em coletes cor de laranja que mais lembravam salva-vidas. Não, não exageremos. O programa não era propriamente um naufrágio. Acontece que, num certo intervalo entre uma andança e outra, uma das guias propunha que formássemos um círculo, e ficávamos todos ali, olhando a cara um do outro, tentando entender para que diabos serviria aquilo.

“Para que isso?”, perguntei a uma delas, a que estava bem ao meu lado.

“É uma brincadeira de integração”, ela sorriu.

Sim, só podia ser. Uma brincadeira. Principalmente nesse caso, tratando-se de pessoas que não se encontrariam pela segunda vez em toda a vida. Mesmo assim, a outra pediu que cada um de nós representasse, com gestos, um bicho de sua preferência, e o resto do grupo teria de adivinhar que bicho era aquele, claro. Ela lembrou que aquilo servia para exercitar a criatividade que existe em cada um de nós, que todos nós tínhamos criatividade, só o que faltava era desenvolvê-la etc. e tal. Falava sério.

“Todo ser humano é um artista”, concluiu. Disse isso com tal convicção que alguns moveram a cabeça, como se de fato acreditassem nisso.

Apesar das esperanças da moça, e só para se ter uma ideia, alguns imitaram cães, pássaros, cavalos e outros animais tão óbvios que levariam ao tédio uma criança de três anos. E o fizeram com a mímica mais evidente possível, como de propósito para contrariar as palavras da guia. Mas não creio nisso. Eles me pareceram, inclusive, bem à vontade. Mesmo assim, quando o grupo decifrava o bicho em questão, quase ao mesmo tempo em que o imitador se punha a gesticular, a guia mostrava-se excitada: “Muito bem!”. Parece incrível, não é? Pois eu estava lá e vi – vi, com estes olhos! Enquanto os animais se repetiam, eu me perguntava, desconsolado: será que isso tudo é mesmo necessário?

“Um peixe!”

“Muito bem!”

Para não dizer que foi tudo tão previsível, um sujeito ali imitou tão mal sua mascote que manteve o grupo intrigado por mais tempo. O que achei de fato interessante foi o bicho escolhido: um escorpião. Achei interessante mesmo. E era um rapaz anêmico, olhos fundos, parecia doente. Tive vontade de sair de meu lugar e cumprimentá-lo, nem sei por quê.

“Muito bem”, tornou a guia, sem dar-lhe mais atenção.

Os outros iam lembrando mais bichos, sucessivamente, até que chegou a minha vez e… Muito bem: eu me recusei. Isso mesmo. Muito bem. Disse a todos que não estava disposto a imitar bicho nenhum, e só o que queria era conhecer a Pinacoteca. Alguns olharam-me com antipatia, eu sei.

“Não custa nada”, resmungou alguém.

Não, é verdade, não custa. Também não lhes custaria nada deixar-me passar a vez. A maioria não suporta que alguém não queira participar.

“Pelo menos fala o nome de um bicho”, insistiu a guia, sem alterações em seu humor. “Só o nome.”

“Mas por quê?”, perguntei quase choramingando. Eu realmente não compreendia que necessidade todos tinham de coisas assim. “Por quê?”

“Ah, vai, fala…”, pediu uma das nossas, uma moreninha que vinha me observando especialmente, como pude notar, desde a primeira estação. “Fala, vai…”, pedia como num lamento.

“Só pra participar”, ajuntou a outra guia.

Era justamente isto o que ela não assimilava de minha atitude: a ideia de não participar, de forma alguma. O que me obrigava? Eu não me havia inscrito naquela excursão para uma coisa dessas. E me aborrece que alguém fale em participar, tanto que, quando ela disse aquilo, eu me tornei ainda mais arredio.

“Não, droga, não falo bicho nenhum. Acho isso tudo um…”

“Mas que que custa?”

“Fala um e pronto.”

“Ah, vai… Fala…”, repetiu a mesma garota, a bonitinha, ênfase mais suplicante.

“Camelo!”, gritei de repente.

Todos se assustaram.

“Muito bem!”, fez a guia, vitoriosa. “Camelo, muito bem.”

Ia dizer camaleão, mas esse bicho nunca me agradou muito, e o que saiu foi camelo, talvez pela proximidade de sons. Os outros aplaudiram, satisfeitos. A moreninha ficou muito contente. Camelo, Camila. Pior: camaleão. Isso resolve tudo, não é? O fato de eu ter dito camelo e a necessidade alheia de sermos todos semelhantes integraram-me à força àquela brincadeira inútil. Acabou-se o intervalo, e as guias nos levaram a conhecer outros itens do roteiro, uma à frente do grupo, outra entre os últimos de nós, em seus coletes salva-vidas, conduzindo o rebanho. Pronto. Está aí relatada uma de minhas raras experiências em integração.

Outra coisa que tive vontade de fazer, quando insistiram: deixar todos ali, naquele círculo idiota, e ir para qualquer outro lugar. O que poderia impedir-me? No máximo, diria algo como: “Isto não me interessa absolutamente. Não, absolutamente. Com licença. Isto não me interessa…”. Mas eu me conheço, e sei que não sou tão forte.

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Imagem: Cassio Polegatto. Gato preto. 2015.

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