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Todos nós morreremos na semana que vem. Parte 7
Às vezes torno a embriagar-me de esperanças
Sentia-me tão bem que poderia rir de meus pesadelos. Falo sério.Embora eu pressentisse tal entusiasmo como transitório, pretendia vivê-lo o mais que pudesse, pelo maior tempo possível.
O que pretendo com isso? Justificar, explicar alguma coisa? Absolutamente. Foi só um sonho que tive. Qual seria então a resposta para a existência? O amor entre os homens? E isso seria possível fora dos sonhos? Não sei, não sei. De qualquer forma, foi maravilhoso ter vivido a manhã seguinte ao sonho de amor. Tudo parecia impregnado de ternura e música, os aposentados com o dominó, os músicos em sua esquina e todos os que passavam por tudo. Cultivar a essência desse sonho tornaria menos obscura a condição humana, embora isso não trouxesse nenhuma resposta. E nessa manhã, eu não cabia em mim. Não sabia o que fazer com tantos sentimentos, ardia com um desejo febril de deter o mundo, deter a vida e recriar meu sonho. Isso me parecia melhor que as doutrinas, não pregava recompensas nem exigia virtudes. Propunha apenas o prazer de amar e contagiar a todos, apenas isso. Era o som das flautas e o ritmo das cordas.
Se algo é maior que a realidade, só pode ser o que habita nosso íntimo abstrato e desperta às vezes com tamanha vivacidade, maior do que o que somos, maior do que nós. Se desmontarmos um edifício, viga por viga, bloco por bloco, e tornarmos a construí-lo, ele será novamente o mesmo edifício. Desfeita a trilha de dominó, juntadas as pedras outra vez, surge uma trilha do mesmo tamanho. Mas se pudéssemos desmontar uma pessoa, célula por célula, e se fosse possível montá-la outra vez, ela não seria apenas seu mesmo corpo, com o mesmo número de células. Essa composição passaria a ser algo maior do que todas as suas células juntas. Sim, tornei-me científico. Na música, isso se parece: as notas que se encadeiam para formar uma canção ou uma sinfonia não seriam belas sozinhas, assim como um bloco do edifício e uma pedra de dominó não fariam sentido isoladamente. A diferença é que um edifício não passa de um edifício, enquanto a canção não é apenas o que é, não apenas o tempo de sua execução ou as páginas de sua partitura. O que faz dela música é ser mais do que ela própria. Então, o que há por trás de suas combinações e compassos? E o que nos torna algo mais do que a união de nossas células enquanto vivos? Não sei. Como vou saber?
No mesmo dia, como de hábito, fiquei com o Freire enfiando panfletos nas mãos dos que passavam. Eu me sentia bem. Imaginava que aqueles tabloides impressos também significavam mais do que papel e tinta, que transcendiam sua condição gráfica e eram uma maneira de semear um sonho, montá-lo aos poucos, viga por viga, célula por célula, para que se tornasse um dia maior do que seu próprio tamanho.
Que bela manhã! Eu estava disposto a amar, amar a todos! Sei que é absurdo. Sorria aos que passavam, cumprimentava homens, mulheres, crianças, brincava com o Freire, um idiota perfeito – eu. Sentia-me tão bem que poderia rir de meus pesadelos. Falo sério. Embora eu pressentisse tal entusiasmo como transitório, pretendia vivê-lo o mais que pudesse, pelo maior tempo possível.
Mas pude pouco. Na mesma tarde, enquanto trabalhava em minha mesa, notei que o colega do marco alemão se aproximava com a mão fechada, sorrindo. Sim, com a abominável moedinha, a que lembrava a falta de caminhos. Que diabos eu poderia dizer-lhe? À pergunta de sempre, pensei em dar-lhe duas alternativas: a vida ou a morte. Mas ele nunca perde. O que fiz foi o seguinte: enquanto ele se aproximava, aproveitei para levantar-me, agindo como se não o percebesse, peguei a primeira pasta que encontrei pela frente e fui até a parede oposta do salão, onde a enfiei numa gaveta qualquer do armário de aço. Isso tudo em questão de segundos. De lá, corri ao banheiro e escapei. Fiquei encostado no fundo de uma divisão, esperando que a porta se abrisse a qualquer momento. Mas ele não apareceu. Devia ter encontrado algum colega mais acessível para explicar que aquilo era um marco alemão, jogá-lo para cima e sair ganhando. Eu havia escapado, e até gostei da ideia. Planejei também uns palavrões para lhe atirar à cara da próxima vez, inclusive sugerindo-lhe em boa voz o que fazer com aquela moeda ridícula, sim, isso mesmo.
Voltei para tirar a pasta de onde a havia enfurnado, mas de longe vi que minha colega (aquela, a católica) estava com a gaveta do armário aberta, querendo saber, muito irritada, quem diabos havia jogado uma pasta ali. Eu havia me esquecido de que aquela era a gaveta dela, na hora isso não me ocorreu. O primeiro impulso que tive foi o de voltar correndo ao banheiro e enfiar-me no fundo da última divisão, mas isso teria sido pior. Quando cheguei mais perto e me confessei, tive de ouvi-la ralhar comigo, com uns olhos nervosos, injetados, mas que também não escondiam algum prazer, justamente pela oportunidade de ralhar comigo. Sim, um bombardeio. Enquanto ela falava e falava, olhava para o chefe, depois para mim, chamando-me irresponsável, perguntando-me o que estava fazendo ao invés de trabalhar, por que havia atirado ali a minha pasta, que havia amassado uns cartões tais que ela conservava com zelo etc. etc. Pedia que eu olhasse o que havia feito, apontava a gaveta aberta. Eu fingia arrependimento, enquanto olhava para baixo. De fato, os cartões estavam bem amassados. Suportei tudo com paciência. E ela falava, falava… Quando parecia haver terminado, eu já segurando a pasta com as duas mãos, ela se lembrava de algo mais e despejava-me outros muitos chavões, para que todos ali ouvissem. Então, eu lhe disse:
“Olhe, eu sei que você está irritada comigo, eu sei mesmo. Você está irritada comigo e com razão. Você está certa e coberta de razões. Tem toda razão mesmo…”
Mas ela não me deixava terminar – embora eu só fosse dizer aquilo mesmo. Conforme eu me mantinha calado, ela me espezinhava ainda mais, e eu pensei que aquilo não fosse acabar nunca. Ninguém sabe como fica um cristão irritado. Na hora, cheguei a pensar: “Bem, acho que vou dar-lhe com a pasta na cabeça.”. Mas contive-me. Após um certo tempo escutando alguém, sempre acabo me distraindo, e como já não estivesse prestando atenção a nada do que ela dizia, fiquei me perguntando em silêncio: o que será que vou sonhar esta noite? Ela falava, falava…
À noite, havia passado completamente minha crise de amor. As semanas também passaram. Tive outros pesadelos, ocorreram-me outras bobagens, cheguei novamente a acreditar no sonho com os músicos e ainda distribuía panfletos nas esquinas. A sensação do sonho inesquecível nunca mais se repetiu. Eu estava curado. Podia viver outra vez como o resto dos homens, uma pessoa normal, sem me preocupar com esses ideais de fraternidade, tão sem importância para cada um. Só me restava a consciência de morrermos todos na semana seguinte, o que é inevitável.
Não há tempo para o que escrevo. Talvez um dia não mais exista o meu idioma. Mas haverá gente, luz, manhãs, e quem sabe alguém despertando entre pesadelos.
Como fica então o meu sonho de unir a humanidade? E tudo aquilo que eu iria cultivar? Ora, não sei. Às vezes me lembro disso e torno a embriagar-me de esperanças. Fico repetindo a mim mesmo que tudo é possível, que as pessoas não são tão difíceis, que certos sentimentos são de natureza contagiante e podem transformar-nos a todos, inclusive a mim mesmo, que talvez eu possa amar de verdade as pessoas que me cercam, cultivá-las. Mas essa católica, esse sujeito da moeda…
A conspiração dos felizes
Dias nítidos, claros pesadelos – anterior
Guia de leitura
Imagem: John Houston. Chicago Hancock, chuva em novembro (detalhe inferior).
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