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Projeto esvanecendo-se. Um stone outra vez a caminho
Para nós aqui, mimados pela ilusão da segurança, as proporções são pateticamente outras.
Este caminho que agora estou fazendo vai dar na casa da Joss Stone. Ela mora num dessas apartamentículos, um conjunto residencial de predinhos de três andares, só escadas, uma dessas colmeias geometricamente pobres, cubos em sequência, com uma linha de rufo metálico desenhando o topo, que se estendem por dois quarteirões contínuos, interrompendo a tal rua que cruza por ali. Digo assim porque não posso revelar o nome da rua. Nem do bairro. Muito menos o dela, evidentemente. A Joss Stone tornou-se minha amante.
Se eu contasse isso ao doutor Stabile, é quase certo que ele não acreditaria. Mas é claro que ele conhece a Joss Stone. Muita gente conhece. Ele acabaria acreditando. É que tenho interrompido meu tratamento, que já era desanimadoramente espaçado e negligentemente mal conduzido – de minha parte, quero dizer. E talvez por isso, ele, o doutor Stabile, não confie em mim. Acho que ele nunca confiou em mim, de qualquer maneira. Tenho quase certeza disso. Como tenho quase certeza de uma porção de coisas. Só que eu não dou a mínima para isso de confiarem em mim ou não. Não me importo nada, nada, com uma coisa dessas. Assim como não me importo com uma porção, mas uma porção mesmo, de coisas que fazem muita gente que conheço ficar estressada e neurótica. Apesar de minha formação acadêmica, detesto essa gente de linguagem empolada e certinha, que sabe um monte de coisas e finge saber outro monte de coisas. Detesto. (Eu tinha um colega professor que usava linguagem formal o tempo todo, sem deixar passar um mínimo som consonantal ou vocálico, sem o menor vestígio de coloquialismo, como se estivesse escrevendo um livro enquanto falava. Ele pregava que todos deveriam falar certo, deveriam falar bem. Um nojo!) E é claro que não vou contar nada disso a ele, ao doutor Stabile, é claro que não, claro que não, ah, mas nunca. O meu caso, hoje meio complicado, com a Joss Stone é um segredo gigantescamente encantadoramente preocupantemente maravilhosamente bem guardado.
O pior de tudo, no momento, parece ser o fato de eu estar desempregado. Digo parece porque não tenho certeza de que isso seja o pior de tudo, em meio a outros piores, em meio a tantas confusões bem disfarçadas que, em parte, eu mesmo criei. Em parte, eu disse. Outra parte foram outros que criaram, nem é preciso dizer. Sempre há alguém de prontidão para criar problemas para nós. É só estar em contato com mais pessoas que isso logo se mostra, pouco ou muito, claramente ou não, e tomara que eu possa perceber essas coisas a tempo, para o bem de minha saúde em geral. Quanto mais gente eu conhecer, pior: aumentam as possibilidades de problemas prontos a me envolver. Mas eu sei que, de alguma forma, também crio problemas para os outros. Não sei como, mas entendo que sim. Então é melhor pagar o preço de estar por perto, evitando ilhas de náufragos e cavernas de eremitas em nós mesmos. Respirar fundo. Isso.
Na visão da Marjorie, isso de eu estar desempregado assemelha-se a uma espécie de tragédia doméstica familiar matrimonial e social. Um agourento imprevisto. Uma vergonha. Algo que precisa ser rapidamente revertido. Tragédia, mas veja-se considere-se observe-se em que mundo vivemos! Afinal, todos ficam sabendo, e o que vão pensar de nós, não é mesmo? Esse, eu sei, é o maior problema para ela. Porque dinheiro ainda se arranja. Tenho meu fundo de garantia, que deve durar pelo menos seis, sete meses, com nossa rotina de contas e consumo, vida normal.
Normal, eu disse, mas não para ela – mesmo a Marjorie estando ainda em atividade (ela trabalha num escritório de advocacia e pensa em voltar a estudar, à noite, além de já ter começado seus projetos de mestrado em sociologia), mesmo ela sabendo, sabendo que está tudo bem no emprego dela e que ganha, que sempre ganhou um pouco mais do que eu. Além disso, ela tem o pai, a quem pode recorrer se precisar, um respeitável militar aposentado que eu detesto, detesto, detesto. Não importa. Não agora. É que a Marjorie age como se eu nunca mais fosse conseguir trabalhar. Alguma coisa desse tipo. Ela vê em mim alguma coisa desse tipo. Ela desconfia de minha sanidade mental, é o que me parece. É o que me parece e até soa evidente para mim, que convivo com ela há tanto tempo. Nove anos inteiros. Mais dois anos e… quase meio de namoro. Por isso ela me pressiona a ver o doutor Stabile. Por desconfiar de meu estado mental. Se ela soubesse sobre a Joss Stone, se a Marjorie soubesse da Joss Stone, ela, sempre com tudo tão planejado tão ordenado e alinhavado, se ela soubesse da Joss, eu quase me arrepio, isso sim seria o equivalente à erupção do Krakatoa, e toda a nossa vida voaria pelos ares. Coisas assim parecem estar acima de algumas outras coisas. Sei que ela ficaria do meu lado até mesmo se eu matasse alguém. Mas isso… Bem, são dimensões diferentes destoantes descabidas. Não importam as guerras mundiais ou localizadas, os conflitos sanguinários gerando refugiados e os mais horríveis sofrimentos mundo afora. Para nós aqui, mimados pela ilusão da segurança, as proporções são pateticamente outras.
… grandes tragédias coletivas nunca são suficientes para desmotivar e demover mesquinhas questões pessoais…
Quando fui pela primeira vez por esse mesmo caminho, a saliva me afogava a garganta. Eu e a Joss Stone já tínhamos tudo combinado. Era a primeira vez que eu ia. Ela me disse depois que também respirava um pouco de medo. Mas isso não importa agora. Claro que isso não importa mais, porque já passou. Eu seguia em frente com os olhos estreitos, porque fazia um vento com ciscos. Muitas vezes tive medo de mim, isso de saber que estava me envolvendo com algo perigoso e mesmo assim não conseguir voltar atrás. Tinha medo também quando percebia que não sentia medo. E seguia. Chegava à porta do apartamento, que a Joss abria para mim. E como se repetia nas aulas de ciência: admitindo-se isso, tudo o mais decorre. Um canto de pássaro parecia contido em meu silêncio escuro. Nada disfarçava o fim do mundo.
A saliva me afogava, me entupia a garganta, caso eu não tenha dito isso ainda. Como se fosse sufocar a qualquer momento, desmaiar enquanto andava, cair engasgado comigo mesmo. Um pouco era ansiedade, eu sei. Um pouco era um enorme tesão contido, imaginado, por causa dela, da voz dela, do corpinho dela, um pouco era eu não estar acostumado à felicidade. Isso foi em janeiro.
Não sei explicar como, mas um e outro passo atravessando a rua às pressas, entre um e outro golpe de vento sujo, e dobrando a esquina perto de uma árvore triste, me fizeram lembrar de quando fugi de casa pela primeira vez. Eu tinha quatro anos e não era casado. Levara comigo meu caminhãozinho de madeira amarelo. Era o que eu tinha de mais importante – uma daquelas coisas que, à época, era dessas que-eu-mais-tinha. Fui resgatado a uns dois ou três quarteirões de nosso endereço junto ao bosque. Contaram que eu estava de péssimo humor. Claro que eu me lembro pouco disso, bem pouco. Mas lembro sim, curiosamente. Difusamente. Como em ondas de imagens em preto e branco, influência dos álbuns de fotografias talvez, porque a vida não era em preto e branco, por mais que os autores acomodados se utilizem dessas metáforas quase automáticas, previstas. Que tédio. Mas, de tudo aquilo, voltam sempre duas ou três imagens em uma exposição mais ou menos viva, uma historinha que se repete desde o início: os degraus de pedra do portãozinho de casa, a calçada de lajes velhas e sem graça, tudo cinza-claro, sem graça, tudo sem graça, eu disse, eu lembro, eu puxando meu caminhãozinho de madeira amarelo pela rua Carlos Gomes, dobrando a esquina proibida, não, não me lembro dessa parte, só da parte seguinte, lá em cima, no outro quarteirão, depois de todo o aclive acentuado da rua Tamandaré, que não sei como venci, não lembro como venci. Sei que até hoje essa parte da rua é ruim, trincada assimétrica desnivelada, raízes estourando lajotas, remendos por toda parte, enfim, irregularidades recorrentes que no fundo ninguém quer consertar de verdade. Não me lembro dessa parte, só da parte seguinte, eu dizia, então meu pai gigantesco, seu bigodinho fino, curvando-se para me pegar, com carinho, eu acho, parece que ele sorria um pouco, ou ria de mim, só que não tenho certeza. As impressões e memórias que não compreendo devem ser importantes, ou não estariam mais comigo. Lembro de estar ofegante – como posso me lembrar disso? Eu estava parado. De certa forma, vencido. Segurando a cordinha que puxava o caminhão amarelo.
… um dia fiquei sabendo que Tolstói também fugira de casa, com mais de oitenta anos. Parece que não há um limite para essas vontades que-mais-temos…
Até vejo, de alguma forma, pensando nas fotos que ficaram daquele tempo, aquele menino emburrado, testa franzida, cabeça baixa, bochechas pequenas e flácidas, lateralmente fechando-se em curva até um pouco abaixo da boca, prenunciando um velho de rosto pelanquento, de faces caídas, como as de Paul McCartney, que também um dia era tão bonitinho.
Eu não queria que isso acontecesse. Mas aconteceu. Estou falando agora da Joss Stone, caso não tenha ficado claro. Nosso caso é que não parece muito claro – mas como poderia ser? Também não quero ser hipócrita de dizer que apenas aconteceu, mesmo tendo acabado de dizer isso. Agora é tarde. Agora é tarde para as duas coisas: já disse e já tenho um caso com ela. As duas coisas são como aqueles tempos verbais estranhos, que ocorrem em algumas línguas, aquilo de o passado continuando e ainda acontecendo, um passado que não passa, que não acaba, a ação que não termina nunca, não sei de onde tiraram isso, uma coisa dessas, afinal. O que aconteceu está acontecido. Aconteceu sim, porque nos conhecemos. Aconteceu isso. Aconteceu que nos conhecemos. Depois, o caso todo é com nossa força fraca, nossa pretensa decisão de reprimir evitar renunciar. Passar fome. Seja como for, já foi: não posso mais desfazer o que acabei de viver, apagar o que acabei de escrever, não posso mudar nem as linhas escritas nem o que acabei de dizer. Porque, mesmo que eu apagasse tudo, isso não se apagaria mais em mim. Deve ser daí aquele raciocínio de Kant, sobre haver algo que não podemos contar, e se há algo que não podemos contar, então é porque esse algo é algo que não poderíamos ter feito. Ou que não poderíamos fazer, ou então que… – e aí estão de novo os malditos verbos, recusando-se a encerrar uma ação para sempre.
Mas eu estou contando o que não deveria contar, portanto o que não deveria fazer. E isso me torna desobediente a Kant. Por extensão, à Igreja e ao Estado. A toda a organização civilizatória que nos orienta e nos obriga a mentir. Que só nos aceita como cidadãos ativos se continuarmos mentindo, como todos sabem. Estou contando, não importa. Contando, antes que eu me esqueça, mas eu sei muito bem que não me esqueço, que eu nunca me esqueço, o que eu não deveria contar, o que eu não deveria fazer. Mesmo assim, corajoso e confuso. Mesmo assim, com desprezo por aqueles tempos verbais de ação contínua, que não querem encerrar nem um sorriso nem um gesto nem um erro para sempre. Mesmo assim, em meio a imagens recentes e antigas, em meio a preocupações avulsas e projetos de eternidade, considerando minha fuga de um passado cinzento e o momento implausível em que a Joss se deita atravessada menina travessa sobre minhas pernas para ganhar palmadas no traseiro.
Outros sabem preservar-se enquanto continuam com suas amantes e com suas sacanagens, mas eu não. Só fico imaginando a hora em que todo mundo ficar sabendo. Porque muita gente conhece a Joss Stone. A Marjorie também a conhece. E também não acreditaria, eu acho. A gente sempre ouve coisas como: não é a primeira nem a última vez que, você não é o primeiro nem o último que, esse gênero de sábias óbvias bobagens repetitivas, sobre qualquer coisa que se diga. Sim, eu sei. É claro que não sou o primeiro, nunca o primeiro em coisa alguma. Todas as coisas humanas que aconteceram pelo menos uma vez, em algum lugar, tendem a reciclar-se. E ela, a Josie, essa garota com cabelos cor de areia, mechas claras e menos claras, essa pele também cor de areia, e esses olhos… mais ou menos da cor da areia… Sim, parece falta de imaginação de quem a descreve. Mas não é. O caso é que essa é a verdade, por isso não fico inventando muito. É isso mesmo: ela tem cabelos, pele e olhos cor de areia. Ou de mel. Quem tiver raiva dela dirá que é uma menina encardida. Mas quem sentir sua nudez saberá como ela é de verdade, dirá que ela é uma jovem especialmente clara, de uma cor intensa, disfarçada de outono. Seus cabelos são em parte tingidos, eu sei, com aquelas mechas mais suaves, como eu disse antes, agora como farinha de aveia, destacando-se da cor natural dos outros pelos, que são de um castanho-quase-escuro, aquela cor sóbria da areia molhada: o melhor que as heranças genéticas conseguiram, sobre variações de um mesmo tom.
Já existiam os Stones, mas muito mais tarde, mais que adulto, é que fiquei sabendo essa coisa toda de as pedras rolantes não formarem limo. E mais tarde ainda é que entendi o que significava essa palavra, limo. E pensar que a nossa casa da Carlos Gomes tivesse tanto desse limo distribuído em trechos dos muros e das muretas, nas pedras irregulares do quintal perto do limoeiro… – não, não: isso do limoeiro foi apenas uma coincidência, eu juro. Foi dessa casa que eu fugi pela primeira vez na vida. O caso é que eu era um desses. Um Tolstói tardio e precoce. Um rolling stone de quatro anos.
.Projeto esvanecendo-se
3. O sonho com a jovem calva – sequência
1. Abertura – anterior
Imagem: Edgar Degas. Mulher se enxugando (detalhe superior). 1895.
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Comentários
8 respostas para “Projeto esvanecendo-se. Um stone outra vez a caminho”
Belo trabalho, desculpe a demora em visitar seu blog, voltarei mais vezes, achei bem atrativo.
Um abraço. Rafael Reis do facebookobrigado !!!
parabéns, ótimo trabalho .Percebo que apesar de seu enorme cabedal de conhecimento cultural é uma pessoa simples. Esta é a minha impressão e não é porque você menciona este seu perfil – é seu e não do personagem – no texto. Brilhante!
João, muito obrigado. Sim, sou mesmo uma pessoa simples. E quero continuar sendo. O que me interessa muito é aperfeiçoar textos indefinidamente.
Grande abraço.
Parabéns!! Texto de leitura agradável que realmente prende a atenção.
Estou começando a conhecer o seu trabalho, mas até aqui, estou empolgado com o tenho visto.Izac, muito obrigado. Fico contente em saber que gostou. Eu espero contagiar os leitores com a ficção, de maneira inspiradora. Comente e me escreva sempre que quiser, será um prazer.
Abraços.
Francine, muito obrigado, é uma honra ouvir isso.
Fique à vontade para me escrever quando quiser.Amo seu trabalho, sempre que posso venho visitar seu blog!
Parabéns!!!!! Continue nos presenteando com seus textos!!!
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