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Todos nós morreremos na semana que vem. Parte 6
Dias nítidos, claros pesadelos
Eu mal podia afirmar se ainda sonhava ou não, se estava vivo.Em minha memória desenrolava-se outra vez o pesadelo do passado.
Sou o que chamam uma mente atormentada. Não importa. Tenho tido dias difíceis, mas tem valido a pena. Acreditava em certas coisas que hoje sei falsas, mas não me incomodo, prefiro a verdade. Sou um homem comum, um homem qualquer, e tenho meus pesadelos. Num dos últimos, tive uma impressão maluca e anacrônica, aquela sensação de eternidades em um instante, de ter assistido a batalhas históricas – cenas que devo ter visto em filmes, pelo jeito. Vaguei entre muitos povos e por épocas diferentes; participei da miséria que identifica todas as gerações humanas e, quando me dei conta, tudo isso estava contido em uma pequena arca de bronze que eu segurava com as duas mãos. Eu estava no topo de um penhasco, frente ao mar, e das alturas via os rochedos escarpados lá embaixo, emergindo das ondas. Não suportando mais a visão do passado, fechei a arca com tudo o que acontecia nela, o que já havia acontecido, o que tinha em mãos. Fiquei inerte, olhando a cor do bronze – o mesmo que se usa para os monumentos. Tornando a abri-la, o que encontrei foi um punhado de poeira. Virei tudo para baixo, dispersando essa poeira no vazio e no vento, fazendo-a partículas insignificantes, perdidas para sempre.
Despertei, outro dia de sol. Diante do espelho do banheiro, os olhos nublados, restava a sensação confusa que era a minha vida a cada momento. Eu mal podia afirmar se ainda sonhava ou não, se estava vivo. Em minha memória, desenrolava-se outra vez o pesadelo do passado. Ao mesmo tempo, sabia do que me esperava como sempre: as ruas do presente, pessoas em movimento, o povo e a época a que eu pertencia por acaso. E mirava o espelho da história, meu próprio rosto à luz da manhã.
Fecho os olhos, imagino que morro. A morte não importa. Falo de outra coisa, falo a mim mesmo, enquanto também repito que não há mais o que dizer. O que era eu ter sido criança, ter vivido variadas impressões da realidade e então morrer num momento qualquer? Morrerei na semana que vem. A história e a minha infância não existem. Tudo não passa de um sonho de poeira, antes um de meus pesadelos, o pesadelo de estar vivendo qualquer vida. Os dias nítidos, tão claros, e tudo certamente perdido. Como hoje, haverá um último dia de sol, e nunca mais a história tornará a acontecer. Aqueles que talvez lerem isto no futuro estarão apenas assimilando pesadelos, nada mais. E morrerão na semana seguinte.
Os homens jogando dominó, as trilhas de poeira, labirintos de pedra, tudo tão vazio como um sonho cinzento de nada. E todos nós, na semana que vem… Os músicos andinos: o som de suas flautas, o ritmo de suas cordas, canções cristalinas como o tempo jovem que se vive, os dias do presente. Depois, Freire e eu distribuindo panfletos, minha colega cristã, que não tinha pesadelos, seu desprezo por mim, o outro com sua moeda de duas faces, suas duas opções, seus dois caminhos para coisa nenhuma… – vida, morte, tudo se tornara insuportável para mim.
Só a música dos estrangeiros permanecia bela, cativante, separada da realidade. As notas perseguiam-me, voltavam-me assoviadas quando distraído, acompanhavam-me. À noite, aconteceu-me memorizá-las até bem perto do sono. Repetia, com murmúrios, uns trechos cristalinos que eu já conhecia inteiros. E adormeci.
Nessa noite, sonhei com os músicos. Com as canções e os dias de sol. Não era um pesadelo, apesar de tão nítido. Os músicos vestiam trajes típicos dos Andes e tocavam as canções que eu conhecia. Depois, percebi que eles não tocavam seus instrumentos: a música fluía por si mesma, vinda de toda parte. De mãos dadas, os cantores formavam um círculo de pessoas que dançavam e cantavam, do qual eu fazia parte e onde estavam também o Freire, meus colegas de serviço, pessoas conhecidas. O sol se detinha sobre nós, foi o que a intuição me mostrou. A música, cada vez mais bela. O sentimento que nos unia era de uma ternura, de uma sinceridade contagiantes. Era o amor, como tão raras vezes o sentimos. Tais sensações de plenitude invadiram-me de maneira tão intensa que me fizeram despertar em lágrimas, lágrimas emocionadas do que eu não sabia. Não me lembrava de ter vivido algo assim tão poderoso e não pensei que isso pudesse ocorrer, sem aviso, numa noite qualquer em que normalmente eu estaria sendo surpreendido por algum novo pesadelo. Não, não se trata de sentimentos piegas. E mesmo que o fossem, e daí? É que sinto uma enorme admiração pela vida.
A conspiração dos felizes
Uma pergunta perigosa – anterior
Às vezes torno a embriagar-me de esperanças – sequência
Guia de leitura
Imagem: Carl Spitzweg. O hipocondríaco (detalhe superior). 1865.
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